O AMOR CRÍSTICO À LUZ DO MUNDO ATUAL
TEM SE tornado corrente no trato entre as pessoas,
hoje, a desavença, o desamor e a falta de ética no trato entre as pessoas,
comportamentos que quase sempre contribuem, cada vez mais, com o egoísmo e o afastamento,
até mesmo entre indivíduos do mesmo lar, da mesma cidade, bairro ou prédio de
apartamento. Ocorrem, por assim dizer, fatos decepcionantes, desrespeitosos,
somente críveis entre seres inferiores.
Será que nós, seres humanos, que, de há muito ganhamos
o foro de sapiência, por isso jubilados cientifica e espiritualmente a “homo sapiens”, agora perdemos o passo,
fomos reprovados no exame final, quebramos o código de honra ao mérito e
regredimos? Voltamos à condição de botocudo, o homem das cavernas?
Pois é esse o escabroso cenário que nos obrigam a
assistir, e mais, compartilhar e ter de
ouvir vociferações as mais inócuas, absurdas, como se não bastassem os
ultrajantes atos, nas telas de TV, nos jornais, revistas e também ao vivo.
O presente ano, como tem sido apregoado alto e bom som
pela Igreja Católica, o Papa Francisco outorgou-lhe a santa condição de Ano da Misericórdia, na liturgia a cor
branca e nos Evangelhos a orientação de
São Lucas. Nosso representante espiritual maior, o Papa Francisco acaba de
publicar sua exortação apostólica “Amoris
Laetitia”, que vem se juntar aos demais textos de sua lavra.
Embora só conhecida na Internet - a Igreja sempre
morosa nas providências, quando os tempos modernos exigem rapidez e eficiência -
as orientações exortativas do Papa já se espalham entre as Paróquias, aqui e no
mundo inteiro, acreditamos. Tem-se como infalível o Papa em termos de dogma e
Direito Canônico, ou seja, estritamente na doutrina específica, não nas
demais áreas, nas quais se incluem as exortações, as homilias e os atos
apologéticos de sua função vicarial e administrativa. Por isso, em “Amoris
Laetitia” o Papa Francisco apenas exorta, convida os fieis ao partilharem
suas ideias, as mais adequadas para o comando da Igreja. Ele não está obrigando
o fiel católico a ter misericórdia, pelo menos de forma incondicional,
absoluta, irretratável, preceito inatacável, ou seja, “cláusula pétrea”, como ocorre
no Direito.
Ora, sob nosso juízo – que não discrepa da doutrina
evangélica – a misericórdia apresenta duas perspectiva: a do amor e da justiça. Expliquemos. Veja-se o significado da palavra misericórdia, segundo o Dicionário
Houais: vem do latim “misericórdia, ae”
= compaixão, piedade, dó, misericórdia.
Por extensão: compaixão, piedade, ato de manifestação deste sentimento, como
perdão, indulgência, graça, clemência ou benefício prestado a um sofredor.
Do ponto de vista laico, o amor é uma manifestação psicossomática
atribuída ao ser humano. Já justiça deriva da aplicação mais justa possível do Direito,
disciplinando os atos e relacionamentos humanos.
Portanto, o ser humano a rigor seria ente amoroso, teria que demonstrar atos de
amizade e fraternidade para com seus semelhantes. Na prática, porém, nem sempre
o é, dada a complexidade de que se reveste a psiquê humana. A justiça, algo contrário
da energia amorosa, tem sua sinergia na cogência, de cuja força se imite para
garantir a obtenção e exação do que é justo, tendo´em vista as prerrogativas do
Direito. Consequentemente, nem sempre amor e justiça se equalizam.
Na perspectiva evangélica, pensamos que amor e justiça
se orientam no mesmo sentido. Mas, com um senão: amor e justiça embora não
se equalizem, como no Direito, têm
medidas diferentes e a argamassa dessa
conexão é a misericórdia. Se a justiça divina tarda, mas não falha, ela é
complacente com o pecador, menos para o
pecado em si. Deus na realidade se manifesta pela misericórdia, exercida
através da graça que Ele dispensou aos seres que criou.
Essa visão extremamente mística e ao mesmo tempo vinculada
à vida cotidiana, deflagra-se em todo o Novo Testamento, o Mestre judicializou-a
em abundância em suas parábolas e ensinamentos aos seus discípulos, quando se
referiu ao “novo mandamento”: “... nisto
todos reconhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor aos outros.”(Jo
13, 35, Mt 7,12; 19,19; Jo 13,34s et allia).
Mas o Mestre também exercitou o arbítrio da cogência
jurídica, no cumprimento do dever e na punição ao ilícito, contra o aético e a
favor da proteção ao sagrado, quando em ato enérgico expulsou os vendilhões da
porta do templo. Se benevolente foi com
as criancinhas, os pobres e a adúltera, entretanto, não tergiversou quando respondeu ao homem
rico, que, para segui-lo, teria de se desfazer de todos os seus bens. Noutro
passo, por ocasião de Seu processo infame na Pretoria Romana, responde com a
dignidade de um ilibado ser, quando Pilatos O indaga se Ele era o Rei dos
Judeus: “Tu o disseste.”
Entrementes, em recente missa na Paróquia Cura d’Ars, em
Brasília, o pároco, de origem polonesa, Padre Mário, a propósito do Quinto
Domingo da Páscoa, fez uma homilia inspirada. Conceituou o que era o amor
crístico, o amor que já estava programado no coração do ser humano, diferenciando-o
do simples amor vigente no mundo. O cristão é aquele que ama a Deus e se
solidariza com o outro na sua circunstância, mas não na sua errância, no seu
pecado – isto é exercer a misericórdia para com a fraqueza do outro. Amar, ser
misericordioso, todavia, não é se humilhar, se rebaixar, porque o cristão
também é digno e justo, tem a perspectiva da justiça à frente. Mas – e eis o cerne
da magnífica homilia do Padre naquela inspirada missa – se o outro repele
aquele sentimento de entrega, significa que ele não lhe inspira confiança, não
adianta tentar demovê-lo: que o
discípulo não entre naquela casa e, ao sair, limpe o pó das suas sandálias. É
desmerecida a benevolência que lhe seria
atribuída.
Resumindo: o conceito do amor, quando exercido no nosso
mundo, repleto de contradições e excessos, onde as pessoas tornam-se paradoxais
em seus atos, ideias e realizações, o amor, a solidariedade e a misericórdia atuam
como veículos. O amor crístico é como o sal na insólita iguaria humana, desde
que condimentada na medida certa, justa, porque somente a graça resgatará um
duro coração.
Bíb., 27.04.16
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