LIVROS

                               

O QUINZE — A GRANDE SECA

 

                                                    Murilo Moreira Veras

 


 

O livro para discussão no próximo encontro no Clube do Livro, 24.04.25, é O QUINZE, a epopeia da maior seca no Ceará pela pena da escritora cearense Rachel de Queiroz. Vale dizer que já lemos livros da autora.

 

1.    Prólogo

 

A  autora    tem  carreira literária muito lisonjeada, pertence a Academia Brasileira de Letras e sua obra laureada, inclusive com o famoso prêmio Camões. Lembremos que ela impressionou o leitor pelas crônicas editadas pela revista Cruzeiro, sob o título   Última Página. Ganhou fama, dinheiro inclusive por novela adaptada pela Globo, as Três Marias, que ela diz não ter gostado. Sabe-se que foi filiada ao Partido Comunista, mas   desvinculou-se dele, também apoiou a Revolução Militar de 64,  devido  seu primeiro presidente ser o General Castelo Branco, cearense como ela, mas deixou depois de  apoiar o movimento.

 

Em termos de fortuna crítica, o livro teve encômios positivos de Augusto Frederico Schmidt, Mário de Andrade e Davi Arrigucci Jr. e prefácio de Elvia Bezerra. Vê-se que o livro granjeou prestigio inusitado, à custa dos suposto melhores críticos do País, pelo menos à época.

 

2.   Enredo

 

A autora diz ter escrito este livro aos 20 anos, muito nova, mas que já praticava a escritura desde os 12. O assunto é a grande seca no Ceará em 1915, tanto que o título, em tradução francesa, ficou como L’Année de la Grande Secheresse. É a história de uma família retirante impelida pela a terrível seca que sofreu o lugar chamado Logradouro, interior do Ceará, região do Cariri, sempre sujeita à seca. É a família de um vaqueiro, o Chico Bento, empregado daquele sítio, propriedade de Vicente, herdado dos pais. Com a seca desbragada que atacou toda aquela região, Vicente, o proprietário, obrigou-se a despachar o vaqueiro. Chico Bento, com a mulher Cordelina e seus cinco filhos, teve  que sair, por conta e risco próprio, e cuidar da vida, sem indenização, só a palavra seca do proprietário. Não tendo direito ao trem, como alguns poucos tiveram, o vaqueiro Chico Bento com a mulher e uma trempe de filhos ainda pequenos, teve que enfrentar a retirada a pé,   em busca de uma espécie de Eldorado, que seria o Amazonas, onde poderiam ter vida melhor e escapar da tragédia. A travessia que eles fazem é terrível, passam fome, chegam a esmolar, sofrem decepções horríveis. Um dos filhos morre por ter comido uma planta venenosa. O mais velho, de 12 anos, na caminhada, acaba fugindo, tentando livrar-se da fome e nunca mais é visto. O menor a mãe tem que se desfazer de um dos filhos, por estar em situação crítica, doa a Conceição, a neta de Dona Inácia. Conceição é uma das principais personagens da estória. Com ela, corre outra linha de narrativa  no livro — um affair amoroso, subliminar. Vicente oculta uma espécie de paixonite por Conceição, sua prima e neta de Dona Inácia, a matriarca da família. Mas há um desentendimento entre os dois, a moça é professora e não tem nenhuma vontade de casar, conquanto tenha uma certa inclinação pelo primo. Já ele nutre uma paixão enrustida pela prima. Por fim, com o comportamento arredio dela, acaba se desiludindo.

 

Depois dos trancos e barrancos que Chico Bento passa com a família, com a ajuda de Conceição, esta com sua influência junto as autoridades, consegue passagem em vapor para São Paulo. Para aliviar o fardo, Cordulina e Chico Bento deixam o filho mais novo, que estava muito magrinho, com a madrinha. E Conceição aceita e vai criá-lo como filho. O livro termina com a chegada da chuva.

 

3.   Impressão e Conclusão

 

Este relato da maior seca havida no Ceará completa 95 anos, a autora a famosa escritora Rachel de Queiroz, falecida há 22 anos. A nosso ver, a autora sofreu influência de A Bagaceira, do paraibano José Américo de Almeida, talvez o primeiro a tematizar o infortúnio da seca de 1915. O assunto seca nordestina viralizou à época em autores como José Lins do Rego, com Menino de Engenho, Graciliano Ramos Vidas Secas. Também João Cabral de Melo Neto, com seu famoso Morte e Vida Severina. A autora assegura que escrevia desde os 12 anos e que lia autores famosos, Dostoievski, por exemplo. De alguma forma, ela se imbuiu desses relatos. Nota-se pelo peso trágico das palavras, a descrição da miséria, a linguagem seca, igual a aspereza do sertão, a fala dos personagens, dura, direta, rascante, o dialeto rude dos sertanistas.

 

Não é uma estória agradável, é miséria pura, urubu estraçalhando carne morta, criança com fome engolindo planta venenosa. Criança morrendo, sem alimento. Miséria. Ingratidão, perversidade. Abandono total das autoridades. Mas, Enfim, vem-nos a telha:  por que o vaqueiro, trabalhador da fazenda do proprietário há tanto tempo não foi indenizado? Deixou-o abandonado com a família de mulher e cinco filhos?

 

Houve época em que, à busca de conhecimento literário, ousei ler tudo quanto foi livro, coisas boas e ruins ou péssimas. Hoje  sou  muito  mais  seletivo, em termos de leitura. Lí tudo o que seria a fauna literária do chamado modernismo  brasileiro. Penso que a escritora, influenciada por certa literatura negativa, usou neste livro o sensacionalismo. O livro da autora é interessante como relato até mesmo histórico do que foi essa terrível calamidade no Ceará.

 

                                          Bsb, 17.04.23

 

 














MACHADO — BIOGRAFIA LITERÁRIA

 





        O
livro em pauta para discussão no próximo dia 28.11.24 é MACHADO, o autor Silviano Santiago, escritor, crítico, ensaísta, doutor em letras pela Sorbonne e não sei quantos badulaques mais. O autor premiado pelo Camões 2.022.

Sobre o livro farei apenas uma apreciação sob minha modesta ótica. Se critica for, perdoem-me os amigos e amigas, a culpa é da minha leitura, dos parcos conhecimentos que tenho sobre literatura e talvez  o fato de não me levar por esses  presunçosos que considero verdadeiros saltimbancos literários à busca de louros.

Entrementes, à guisa de crítica, meço minhas considerações, conforme os mandamentos da verdadeira crítica,  criados pelo próprio Machado de Assis — que também foi crítico literário. Um deles, o principal, por sinal, é de que o crítico nunca deve depreciar o criticado, ao contrário sempre encorajá-lo e dar-lhe, se for o caso, os esclarecimentos necessários.

No caso em espécie, em que leio o livro de tal sumidade, sinto-me até meio receoso em ousar criticar essa potestade em que se tornou, em nossas letras,  o sr. Silviano Santiago. Primeiríssima coisa: não sei com catalogar seu livro, se memórias, descrições, biografia, ensaio, memórias, generalidades, dissertações, tratado de medicina ou considerações gerais e etc.

Eis o que penso sobre o livro:

1 — Machado é comparado a Flaubert, ambos são escritores e epiléticos e daí segue-se uma lenga-lenga sobre o assunto (págs. 13 – 47);

2 —-  Cheio de salamaleques, como se Machado fosse igual, o autor cita Marcel Proust e faz o que Jorge Amado alcunhou de laisser faire laisser de parler, o leitor fica confuso. Lembro a famosa carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal  sobre as novas terras descobertas — em se plantando tudo dá, o negócio é escrever, encher páginas;

3 —  O autor escreve como se fosse uma metralhadora, é um sábio ou um doidivana literário?

4 —  Relembra o suposto romance havido entre Machado e D. Georgina Cochrane, esposa de José de Alencar, amigo de nosso biografado. Trata-se de um imbróglio amoroso, criado por certos críticos de plantão, que ficam mexericando sobre a vida particular de escritores famosos. A propósito, o sr. Antônio Carlos Sechim, também da ABL, fez palestra, revelando esse caso, inclusive informando que Mário de Alencar, filho de José de Alencar, seria na realidade filho biológico de Machado;

5 — O autor sem perceber o mal gosto da informação, expõe uma verdadeira catapulta de notícias do trivial carioca à época de Machado, como que colocando o escritor na berlinda dos fatos;

6 — O que nos é intrigante é  que o autor abusa da amizade entre Machado, já ancião e doente, e Mário de Alencar, os dois sofrem do mesmo pesar, a epilepsia — o fato diagnosticado pelo dr. Miguel Couto, clínico de ambos.

7 — Observe-se o Cap VIII, pags. 292/378, cujo título é A Faca têm duas pontas, uma delas assassina — o título é realmente surrealista. O autor inspeciona e aproveita a vulnerabilidade de Machado, especulando sua literatura e cria detalhes fantasiosos, quando ele, o velho Machado faz confidências a seu amigo Mário;

8 — Embora elogie Machado, considerando-o um grande escritor, o autor critica, até mesmo de forma cruel, toda a literatura do Mestre, com que se alia a seus inimigos, Silvio Romero, José Veríssimo, Araripe Junior e Capistrano de Abreu, agora alinhados aos estrangeiros, também críticos da literatura brasileira, como John Gledson, Paul Dikson, Helen Caldwell e Susan Sontag, todos americanos, certamente por inveja da obra universal e imortal de Machado de Assis.

9 — Último capítulo – Transfiguração. Pensei que o autor se recompusesse de seus aleives velados à obra e à pessoa de Machado. Mas prefere usar um escape, apela para a ilusão, a identificar a pessoa inusitada que teria sido Machado. Compara-o ao menino que retrata Jesus no quadro famoso de Rafael — Nossa Senhora e o Menino Jesus. Insinua que o Menino Jesus do Quadro é o menino negro, carioca que se tornou escritor.

Vêm-me à mente a peça de Shakespeare Júlio César, depois de seu assassinato, quando Marco Antônio no Senado, concita os senadores com estas palavras:

“The evil that men do, lives after them,

The good is off entered with their bones.”  

Ou seja, no idioma do velho Machado — “  O mal que os homens fazem, vive para sempre, o bem é sempre enterrado com seus ossos.”                                                                                                                                                                                                                                      

                                                        Bsb, 21.11.24

 

 

 

 OLISMO DE JON FOSSE

 


                           Murilo Moreira Veras

 

É a Ales é o livro a ser discutido no Clube do Livro no próximo dia 31.1024. O autor é Jon Fosse, escritor norueguês, segundo postado na capa do livro editado pela Cia das Letras — “Um dos maiores escritores da Europa” conforme o escritor Karl Ove Knausgard. Resta dizer que o autor Jon Fosse recebeu o maior galardão mundial de literatura  — o NOBEL 2023.

De antemão devo informar aos companheiros que indiquei este livro por dois motivos: Primeiro porque é obra premiada pelo Nobel e segundo, porque gostaria de ouvir a opinião de nossos novos críticos e apreciadores das letras, no Clube, no que se refere a uma escritura literária mais moderna, não só moderna, mas sobretudo diferente, simbólica, melhor dizendo. É o teor deste livro desse escritor norueguês.

1.    Enredo

 

Devo logo dizer que não é fácil deslindar o enredo de É a Ales. Não sei se sabem, creio que sim, que as categorias da prosa literária, depois do classicismo, naturalismo, realismo, surgiu várias formas de expressão literária sob a égide do chamado modernismo. Dentro desta modalidade, autores há que ousaram escrever de forma diferente, até mesmo para se contrapor a certas imbricações utilizadas por certos escritores, à guisa de virtuosistas na arte de escrever. É assim que surge o simbolismo, inclusive fonte da chamado o realismo fantástico, usado e abusado pelos escritores sul-americanos, Garcia Marques e quejandos, em Portugal o tão aclamado pela nova crítica, Saramago.

 

Tentarei, resumidamente, deslindar o enredo do livro de Fosse. No início, a cena é trocada por dois personagens Ales e Signe, sua esposa. Signe está muito preocupada com a saída que seu marido Ales quer fazer, numa fria e chuvosa noite nos fiordes. Ele diz que vai dar uma volta no seu barco nos fiordes, que voltará logo. Ela continua apreensiva, com medo de acontecer alguma coisa. Mas ele acaba saindo, enfrenta o tempo, mas volta são e salvo. É então que as coisas se embricam, porque agora já entram em cena outros atores, Kristoffer e Brita, cujo filho de sete anos, que também se chama Ales,  saiu para os fiordes num barco muito frágil. Acontece que o menino que estava com o pai, acabou afogado e o pai o traz nos braços, morto. Brita, a mãe, não acredita que o filho morreu e pede que viva. Aparece ainda outra figura a Avó, que tem também o nome de Ales, para confundir ainda mais.

 

Assim, Signe a todo instante se recorda da tragédia, embora tenha ocorrido há alguns anos, tragédia que ela transplanta para o marido, que se chama Ales, o menino morto na tragédia, que também se chamava Ales. Ora, o que significa isso? Não seria a tragédia de nosso tempo, as famílias afogadas nos barcos da artificialidade? Os seres humanos fragilizados por suas próprias estroinices, lutar contra a natureza, as verdades consagradas? O naufrágio não seria o ser humano sem sentido nesta vida? A família perdida com seus entes naufragados pela inépcia, afoiteza e falta de sentido?

 

2.    Impressão Final

 

Confesso que o livro É a Ales de Jon Fosse me impressionou muito. Acredito mesmo que o livro tenha vários significados, que não se trata de uma simples narrativa. Observe-se, por exemplo o final — que considero fantástico, até mesmo com sentido metafísico. Cito-o in-verbis:

 

e ela olha para ele então desvia o olhar para o nada leva as duas mãos à barriga e fica de mãos postas e eu ouço Signe dizer, Jesus me ajude “

 

 

                                                        Bsb, 12.10.24

 

 

 

 

             





MINHAS  GAVETAS  DO  MONSTRO

                                              

                                  Murilo Moreira Veras

 



Kacal Pires é poeta de Brasília-DF e o livro que acaba de publicar com ilustrações de Adriana Moraes — tem o título de  Minhas Gavetas do Monstro.

Trata-se de uma coletânea de poemas constante de 253 páginas. O Autor  é nosso conhecido de longas datas — desde quando seu pai, Abelardo de Gomes Pires, nos mostrou seus primeiros poemas, isto há mais de meio século, ele, o autor, um rapaz de doze ou treze anos. Na ocasião disse a meu amigo: Esse menino vai longe. E foi. Ai está o poeta, agora já adulto, com este fabulário completo de poemas, temas ora simples, ora complexos, pequenos desvairos aéticos, extravasando éclogas de pequenos e grandes desvios de nossa atualidade.

Até o título desse poemário  é original: Minhas Gavetas do Monstro, no qual apresenta estratos e relatos da poética do autor. E mais, estão arrumados nas Gavetas de uma antiga escrivaninha de mil anos de cujas gavetas se desvelam criaturas originais, diabinhos ousados e soturnos, enfurecidos talvez — a nos surpreender com suas artimanhas, ora alegres, ora tristes, sonhos e lembranças, as quais, por incrível que pareça, nos agradam. Pequenas lembranças, instantes voláteis, raciocínios atemporais, ideias originais de saltimbancos sonhadores — basta que o classifiquemos em nosso dicionário mágico de poesia.

Ora, nesses estranhos tempos em que nós vivemos, os ardilosos poemas de Kcal Pires nos enlevam, nos fazem lacrimejar, sonhar ou simplesmente nos enredar nessas moderníssimas artificialidades, as quais, no entanto, nos tornam mais leves, gratos e fazem de nossos momentos ociosos idílios de blandícias e fantasias.

                                                                        Bsb, 8.10.24














ULYSSES  – A GUERRA DE TRÓIA

 

                                               Murilo Moreira Veras

 

 

 

O Meu nome é Ninguém – O Juramento” — eis o livro para discussão no dia 25.10.23. O autor é Valério Massimo Manfredi, arqueólogo italiano e escritor.

 

1.Prólogo

 

Trata-se da história da famosa Guerra de Tróia, um dos maiores mitos da mitologia grega, que teria ocorrido entre 1.300 e 1.200 aC. — quer dizer a mais de mil anos antes do nascimento de Jesus Cristo. O autor, arqueólogo e escritor, reconta esse mito, mediante narrativa autobiográfica de Ulysses ou Odisseu em grego, ou seja, a autobiografia do mito grego.

 

2.Enredo

 

Em vez de utilizar uma narrativa do mito, o autor, engenhosamente, inova, escrevendo a autobiografia de Ulysses, o principal personagem desse suposto acontecimento — a Guerra de Tróia. As ruínas dessa cidade milenar encontra-se, por incrível que pareça, em Portugal, em frente a Setúbal, município de Grândola, freguesia de Carvalhal. Seu pai era Laércio, rei de Ítaca, pequena ilha, desgarrada da Ásia Menor, a mãe Anticleia. Laércio foi um dos argonautas que fizera parte dos aventureiros argonautas que ousaram encontrar o famoso Velocino de Ouro, a lã de ouro de um carneiro alado. O personagem principal dos argonautas foi Jasão, além de Argos, Pólux, Fineu e Laércio. Portanto, Ulysses herdou o espírito aventureiro do pai.

O raconto biográfico de Ulysses se desenrola com narrativas de suas aventuras, desde cedo. Sabe-se que ele era o protegido de Atena, a deusa grega da sabedoria, da guerra e sua estratégia, filha preferida de Zeus, também a deusa dos ofícios com habilidades em tecelagem, sendo a patrona de Atenas, onde até hoje é festejada. As aventuras de Ulysses ocorrem desde sua mocidade em Ítaca, inclusive em suas viagens. Até que é convidada para participar da escolha do noivo de Helena em Esparta, ele também pretendente entre vários outros príncipes, Menelau um deles. Em Esparta conhece Penélope, prima de Helena e logo os dois se apaixonam um pelo outro. Apesar de Helena ter uma queda por Ulysses, ela acaba escolhendo Menelau, então rei de Esparta, ruivo e potente. Ulysses resolve fugir com Penélope, mas na fuga resolve retornar à casa dela e pedi-la em casamento aos pais. Casam-se em Ítaca e têm um filho — Telêmaco. Então, dá-se a tragédia, Helena, tendo já uma filha, é raptada por Páris, príncipe de Ilya, ou seja, Tróia, ele filho do rei Priamo. É o início da estrepitosa Guerra de Tróia. Toda a Grécia é obrigada a  entrar em guerra contra a faustosa cidade-forte chamada Tróia, a fim de reparar a honra ferida de Menelau, rei de Esparta. Dai por diante são as peripécias de arregimentação de todos os estados gregos (ou aqueus) contra a poderosa e invulnerável Tróia (em latim Ilia).

Odisseu, agora empossado pelo pai Laércio como rei de Ítaca, obriga-se a participar da guerra com seu exército. Tido como grande articulador desde jovem, ele passa a dialogar com os troianos, tentando convencer o rei Príamo a entregar Helena a Menelau e pagar pelo rapto como devido e tudo ficaria resolvido, sem derramamento de sangue. Como embaixador, entra na fortaleza da cidade para negociar com o rei, mas não é atendido — e é assim que a guerra se desencadeia, com batalhas absurdas, terríveis, os mais famosos guerreiros gregos em fúria — Aquiles, Ajax, Menelau, Agamenon e ele Ulysses, além Patróclo e inúmeros outros. Do lado de Tróia — Heitor, Páris, Enéias e quantos mais. A guerra prolonga-se por 10 anos. Ora vencem os gregos, ora os troianos — conforme os desejos dos deuses, também envolvidos na arena das lutas, desde o início da refrega. No Olimpo, torciam pelos gregos: Atena, Nefasto, Hera, Hermes, Tetis e Posseidon e por Troia: Afrodite, Apolo, Ares, Artêmis e o próprio Zeus. Sem saída, a guerra vai se tornando interminável — os gregos sempre perdendo. Até que Odisseu recorre a um ardil capaz de levar a vitória decisiva aos gregos e exterminar Troia para sempre. A essa altura ambos já haviam perdido seus  maiores heróis, Aquiles do lado dos gregos e Heitor dos troianos. O artifício de Odisseu — um imenso cavalo de pau construído a ser dado de presente aos troianos como prova da desistência dos aqueus, dando como perdida a guerra, eles retornando a seus lares. Na verdade, um artifício para conseguir entrar na fortificada cidadela, dentro dele se escondiam um pequeno exército de gregos. Os troianos se deixaram enganar, o rei permitiu  que o presente entrasse, enquanto os troianos festejavam por terem derrotados os gregos. À noite, quando toda a cidade dormia, os troianos adormecidos pela farra, sorrateiramente, os gregos saíram do bojo do cavalo e escancararam os imensos portões da fortificada cidade. Então, os gregos chacinaram sem piedade tudo e todos. Apenas um grupo se salva da catástrofe, graças a bondade de Ulysses — Enéas e toda sua família fogem através de um corredor desconhecido.

 

3. À guisa de crítica

 

A guerra de Troia é um dos eventos mitológicos mais conhecidos. Poucos no entanto leram os poemas de Homero, fonte literária do inusitado fragor. Claro que no poema propriamente dito os fatos são muito mais ardentes, as descrições dos combates terríveis, na insânia do corpo a corpo os combatentes, todos de certo modo heróis, se arrebentam, os membros estripados, o sangue jorrando, gritos horríveis, enquanto, por incrível que pareça, os próprios intrigantes conversam entre si, até afirmam que se conhecem, mas agora são inimigos não fidagais, figadais, isto é, um tem de fulminar o outro. Ora, isto o autor narra de forma mais branda, para não perder o leitor. Preferiu narrar de forma mais literária. Claro, isto não diminui e estro do autor, ao contrário, dá-lhe mais crédito, envergadura literária e não aborrece o leitor com firulas mais horrendas, como o fez o texto homérico. Aliás, o livro é uma espécie de suspense, o leitor ansioso para saber em que vai dar tudo aquilo, as aventuras de Ulysses jovem até o final, a brutalidade. É claro que muito além da verossimilhança literária de Homero, que, aliás, diga-se, dizem que nunca existiu, é uma personagem também mitológica.

É, sem dúvida, um livro interessante, mas tem um segundo volume que seria o retorno de Ulysses à Ítaca —  que durou vinte anos e outra saga homérica a Odisseia. Haja fôlego para tanto mito.

 

                                                Bsb, 18.10.23

 

 

 

SALVAR O FOGO OU VER O CIRCO PEGAR FOGO

 

                                                    Murilo Moreira Veras

 

 

De novo temos como leitura e discussão, no próximo dia 29.08.23, o escritor Itamar Vieira Jr. — agora com este Salvar o Fogo, selo da Todavia. Para nossa informação o livro do autor se transformou num verdadeiro best-seller, tendo caído nas graças dos esquerdistas de plantão e outros que tais, inclusive a menino dos olhos da mídia oportunística.

Livro posto, temos de lê-lo e naturalmente explicitar nossas impressões.

Neste breve comentário, que implica no que achamos sobre o segundo livro de nosso estrepitoso autor baiano, reservo-me o direito de fazer algumas considerações gerais, algo diferente do que sempre tenho feito.

Parece-nos que o autor, pelas linhas gerais do livro e pelo que tem exposto nas suas já inúmeras entrevistas, com este pretender desenvolver uma linha de escritura, obedecer a um plano onde dá relevo à cultura afrodescendente e divulga suas origens, enquanto literatura específica. Enfim, fazer renascer entre nós o culto aos ancestrais dos quais somos todos descendentes, com a prevalência dos negros, seus hábitos, cultos e costumes. Não sabemos se ele, com esse empenho, seja exitoso em seu objetivo, pois a cultura africana está bem impregnada na maneira de viver do brasileiro, haja vista a culinária.

Se considerarmos o plano geral do livro, suas facções e fissuras literárias, emprego de cortes ligeiramente estilísticos — capítulos curtos, conforme os best-sellers atuais, assuntos rápidos, pensamentos aleatórios, cortes e notas sensacionalistas, troca de falantes — tudo para chamar a atenção do leitor, tendo como pano de fundo a vida, os costumes, o sofrimento imposto aos negroides, conquanto misturados aos dos índios, primeiros moradores da Terra de Santa Cruz. Salvar o Fogo nos dá essa visão, mais ou menos caótica, para explicar as reminiscências de um povo sofrido por ter se tornado escravo, deportado de suas origens. É o que representa a personagem Luiza, menina, moça e depois vergada pela idade como ponta-de-lança de uma narrativa eivada de sofrimento.

Presos por esses fatos, a prender o fôlego do pobre leitor, vemos transcorrer, folha a folha, miséria, infortúnios, mal-entendidos e um futuro sombrio para os personagens. Até sem querer, mas querendo, temos que sofrer a angústia da leitura, pesada como chumbo.

Salvar o Fogo, a nosso ver, é um pesadelo, ficamos todos suspensos na armadilha que o autor nos mantem preso. Tem-se a impressão de que não saímos salvos do fogaréu que toma conta do cenário que nos  traça o livro, espécie de beco-sem-saída. É vermos o circo de toda nossa empatia aos pobres dos negros tocarem fogo no circo de toda benevolência e fraternidade de que gozamos como um povo alegre, falante e de boa índole para quem nos olha do exterior.

É o que temos a argumentar.

 

                                             Bsb, 12.08.23

 

 

 

 O ASSASSINATO DE ROGER ACKROYD

 

                                          Murilo Moreira Veras

 

O livro que vamos discutir no dia 25.05.23 é O ASSASSINATO DE ROGER ACKROYD, a autora a famosa Agatha Christe. Não precisa de apresentação, escritora de ficção policial com inúmeros livros publicados, tendo ficado milionária pela venda de suas estórias.

 

1.    Prólogo

 

Até hoje os livros da escritora são vendidos — best-sellers no gênero. Confesso que nunca tinha lido Agatha Christe e tinha até má impressão de sua escritura. Ocorre que ela tem maneira específica de escrever livros policiais, gênero de certo modo com características especiais, tanto que poucos se arvoram tentar campo minado que é a ficção policial.

 

2.    Enredo

 

Em Fernly Park, bairro de classe alta em Londres, reside o sr. Roger Ackroyd, milionário esquisito. Numa noite, após um jantar oferecido a seus amigos pessoais, os convidados se retirarem, depois da ágape, Ackroyd é brutalmente assassinado. A arma do crime um punhal arabesco, de lâmina finíssima, inclusive pertencente a Ackroyd, resultado de presente. No jantar, participaram os familiares, a esposa sra. Ackroyd, a sobrinha Flora, o filho adotivo Ralph Paton, o médico Dr. James Sheppard, seu secretário particular Geoffrey Raymond e o Major Blunt, amigo do milionário de longas  datas. Todos encontram-se pasmos com o súbito assassínio, que acham tratar-se de assalto, embora nada tenha sido roubado — o que torna o fato extremamente misterioso. A irmã do Dr. Sheppard, Caroline, muito curiosa e que tem mania por desvendar crimes (o que parece ser o  alter ego da escritora) sugere que seja contratado um detetive particular, pois a polícia não parece conseguir desvendar tão curioso crime. Os policiais ficam criando fantasias, sem resultado, que seria saber o verdadeiro culpado. Ela então sugere um detetive fora-de-série, aliás seu vizinho no momento — Hercules Poirot.

Poirot —  criação da escritora, ao lado de outra personagem Miss Marble — aceita a missão e logo se dispõe a trabalhar. É um homúnculo em estatura, mas que tem um cérebro ágil e pleno de recursos híbridos, tendo desvendado vários casos difíceis. Quem o auxilia na investigação é o Dr. Sheppard, por sabê-lo amigo e frequentador assíduo da mansão de Ackroyd. A partir daí, mil e uma encenações são feitas e criadas, por Poirot, inclusive com insinuações feitas por Caroline, algumas aceitas, outras não. São tantas as pistas e elocubrações do genial detetive, que o leitor vai fervendo a cabeça para saber, ou melhor, adivinhar quem seria o autor do crime. E chega-se à conclusão que todos os presentes do funesto jantar, àquele dia, são culpados — ou seja, Poirot, com suas conclusões mirabolantes, assevera que todos podem estar envolvidos no assassinato do milionário, inclusive os empregados da residência, a começar pelo mordomo Parker. Assim todos são suspeitos, a Srta. Russel e Ursula Bourne, ambas domésticas nos trabalhos da residência, que, segundo ele, tinham interesse em assassinar o milionário. Poirot passa a investigar, um por um, os passos de cada qual. Então os fatos mais vão surgindo em cada personagem, espécie de rolo compressor, a desfraldar a vida dessas pessoas suspeitas. Cada um apresenta um álibemi que o detetive vai esclarecendo, sempre acompanhado pelo Dr. Sheppard. Em certo momento, no auge dos fatos, vindos à tona, Poirot pergunta ao médico: “Você acha que ele se suicidou?” E o médico responde firme: “Não, foi assassinado.”

O leitor então prossegue desesperado para saber ao final quem seria o assassino, num suspense avassalador.

 

3.    Nossa impressão

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É o primeiro livro que leio da autora. Não tinha boa impressão de seus livros, achava fosse todos uma forma de ganhar dinheiro, enfim, best-seller. Claro, o estilo é de um best-seller. Mas é preciso distinguir um bom best-seller do ruim, feito só para ganhar fama, histórias absurdas, erotismo barato ou romantismo exagerado. Este não.  É sem dúvida um best-seller com todas as características, mas não há negar um best-seller de primeira grandeza. Eu diria construído como um verdadeiro suspense policial e daqueles de tirar o fôlego. Aliás, a autora tem uma peça (também era teatróloga) intitulada Gato e Rato que dizem ter ficado em cartaz 4 décadas em Londres — minha filha que estudou um período lá, assistiu e diz que é uma loucura. Este romance policial é de tirar o fôlego de qualquer um . Os fatos vão se sucedendo numa avalanche e o leitor é pego de surpreso no final. Aliás, é o  grande tour de force do livro. Passo a passo, o leitor vai acompanhando o malabarismo do detetive Poirot e é absolutamente brilhante a maneira como a autora nos vai surpreender no final das 300 e tantas páginas do livro.

 

4.    Conclusão

 

Posso até me enganar, mas a autora é, sem dúvida, uma das maiores escritoras no gênero, para mim supera Edgar Allan Poe, igualando-se a Arthur Conan Doyle. Não obstante encontrar no livro — e isto jamais irá empanar o estro da autora —alguns pequenos senões, decorrentes da interpretação da história, senões que me reservo por hora não revelar, para não tirar o gosto e o grande prazer que constitui a leitura deste magnifico suspense policial, criada pela genialidade da autora.

                                                         Bsb, 12.05.23

               







                     A INVENÇÃO DO LIVRO

                           O Infinito Em Um Junco

 

                                              Murilo Moreira Veras

 


 

O livro em pauta hoje, 25.04.23, no Clube do Livro é O Infinito em um Junco – a autora, doutoranda na Universidade de Zaragoza e Florença, Irene Vallejo. Sua obra premiada pelo Ministério da Cultura da Espanha, elogiada por Mario Vargas Llosa, o The York Times e o El Pais.

 

1.    Prólogo

 

O livro de Irene Vallejo divide-se em dois grandes temas: I – A Grécia Antiga, o Futuro – II – Os caminhos de Roma. Á égide desses dois parâmetros a autora, engenhosa e criativamente, expõe o resultado de suas pesquisas em torno do Livro, como nasceu e evoluiu.

Para tanto, ela consultou as mais diversas fontes e subdividiu seu trabalho em subtemas, de modo a tornar a pesquisa mais palatável ao leitor. O ponto de partida foi a Grécia, sem esquecer os diversos meandros pelos quais o livro passou e os percalços pelos quais a ideia foi crescendo, sempre a evoluir. A criação do livro se abeberou em várias fontes, utilizado os mais diversos artifícios, desde o palmito dos juncos até os papiros, todos matéria prima natural ou animal, de confecção problemática, difícil, mas possível, graças ao senso criativo de seus inventores.

Ao lado da criação propriamente dita do livro, nele ou por meio dele inspirados, cresceram outros inventos, como o fogo, o alfabeto e demais artefatos que ao livro de algum modo se associaram. O princípio era fazer com que o ser humano crescesse em conhecimento e sabedoria com os avanços tecnológicos, com que se retirassem as pessoas da ignorância e obtivessem um futuro melhor. Como se vê pelas pesquisas, esses artefatos não se realizaram sem percalços, sangue e sacrifícios. A pesquisa vai nos inteirando desses percalços, sofridos e resolvidos, todos com sofrimento duro, às vezes espécie de pagamento exigido pelo destino.

Na primeira parte, peripécias por que passa a criação do livro em lugares remotos, a Macedônia e o Egito — neste a criação da fantástica Biblioteca da Alexandria, verdadeiro símbolo da sacralidade do livro como objeto de divulgação da cultura, literatura e historiografia. A grande biblioteca sonhada por Alexandre Magno e todos os sacrifícios a que se submeteu o grande tempo da sabedoria, na antiguidade. Fatos e atos horripilantes como a chacina da filósofa Hipácia e o incêndio insidioso permitido por Júlio César,

A 2ª parte refere-se à Roma, como a ideia do livro progrediu na sociedade dos césares, onde os principais valores eram a força da guerra e da conquista. Por incrível que pareça, o livro conseguiu se sobrepor a esses valores e sobretudo sobreviver com eles. Observe-se como os romanos acabaram aceitando a ideia do livro e integrá-lo em sua cultura, claro à custa de grandes esforços dos escritores, sábios e até da parte do próprios Imperadores. Basta observar os subitens dessa 2ª parte. É interessante descobrir como o livro era considerado em Roma, entre escritores, sábios e eruditos, inclusive a verificarem-se os caráteres desses escritores, caso de Cícero e até do próprio Júlio César, suas fraquezas e desvio de caráter, por exemplo o incêndio da Biblioteca de Alexandria, a ele atribuído.

No Epílogo — em que a autora conclui sua extraordinária pesquisa, ela nos alerta para o fato de que há os esquecidos nessa grande evolução, pelo que ela abre espaço para esses esquecidos, como também contribuíram nessa grande evolução, os misteriosos caminhos percorridos pelo livro até se solidificar como construtor da cultura e modernidade.

 

3.Impressão à Guisa de Crítica

 

O livro da autora faz jus aos prêmios que lhe foram conferidos. É bem escrito e apesar de suas 442 páginas, o leitor é impulsionado pela escritura, com grande curiosidade em obter o resultado da pesquisa, como buscasse um tesouro escondido. A autora soube construir uma trama que agrada o leitor com capítulos enxutos e plenos de curiosidades.

Acode-nos apenas tecer algumas considerações, que, absolutamente não empanam o primoroso trabalho da autora. São as que se seguem:

a)   A autora elogia os feitos de Alexandre, que invadiu o mundo antigo, incorporando cidades e nações, como ele dizia, até encontrar os confins da terra então conhecidos e até desconhecidos,  todavia, a custo de sangue, violência extrema, igualmente fez o ditador Hitler, na Europa. Depois imortalizar sua figura com a sonhada Biblioteca de Alexandria?

 

b)   À página 302, a autora nos parece cair em contradição: elogia o livro, inclusive como símbolo civilizatório, mas ao mesmo tempo acha que o “... leitor é sodomizado pelo texto”, por isto pede moderação à sua leitura para evitar que se torne um vício. Um vício a leitura de um livro?

 

c)    Sobre considerar quais livros são clássicos, a autora indica aqueles que apontam para a liberdade, enquanto também elogia os que distinguem o bem do mau, a verdade da mentira.

 

d)   A nosso ver, não foram apenas os livros que despertaram no mundo o lume civilizatório na humanidade, mas, sim, os símbolos gerados pela razão, a fé, ambos influenciados pela Religião.

 

e)   Os livros se tornaram veículos das mensagens do Mestre de Nazaré, florescendo através de seus Apóstolos, simples pescadores sob o sopro do Espírito Santo, conforme compilados nos Evangelhos.

 

f)    Muitos desses livros apontados como clássicos nos transmitiram o veneno do Mal, apelam para a violência e a discórdia, até mesmo contra vontade de seus próprios autores, exemplo o suposto best-seller de Adolf Hitler e outros do mesmo naipe.

 

g)   Não basta só elogiar o livro como “... as melhores coisas neste mundo”, como sugere a autora (pag. 137 in fine) — em si um instrumento cultural extraordinário, mas que mal compreendido pode nos levar a feitos  delirantes (O Sofrimento de Werther, de Goethe, que incitou uma série de suicídios na Europa).

 

h)   A autora defende a eternidade dos livros como, símbolos civilizatórios, com que estamos de acordo, mas com restrição. O receio é que, maldoso e infiel como soe ocorrer às vezes o ser humano — nossa civilização talvez se desvie totalmente.

 

i)     Temos exemplo disso em nossos dias, quando divisamos os sinais da tecnologia mais avançada de hoje, a dita Inteligência Artificial – IA, a todo custo querendo dominar o mundo com seus experimentos danosos, a criação dos super robôs — exemplários da espécie do filme Exterminador do Futuro, capazes talvez de exterminarem a raça humana. É isso que nos preocupa sobre nosso futuro.

 

Através de ações e movimentos concretos, rezemos para que os livros, criados pela inteligência humana, se tornem instrumentos de fé e esperança. Que sejam escritos muitos livros que ousem transformar nosso mundo, trazer-nos esperança, nos alimentar de cultura sadia, mais sábia e não desfile só ódio, vingança e negatividade. Da mesma maneira que nasceu nas palmas dos juncos enlameados, que o livro se embeba de luz, amor, sobretudo sirva de exemplo e galardão, ouse seguir os ditames crísticos.

 Por fim, que os livros de alguma forma nos livrem de nos tornarmos escravos de carne e osso dos robôs de ferro, parafusos e cérebros malignos.

 

                                                       Bsb, 18.04.23






UMA ESCABROSA ESTÓRIA INDÍGENA

 

                       


                                                              
Murilo Moreira Veras

 

 

O livro a ser examinado no dia 23.02.23 é O Som do Rugido da Onça, a autora Micheliny Verunschk — certamente descendente de família europeia. O livro recebeu o prêmio Jabuti, 64º de 24.11.22. É uma literatura realmente estranha.

1.    Preliminares

 Trata-se de uma narrativa sobre dois indígenas, de tribos diferentes, ine-e, de tribo miranha, menina adolescente e Juri, da tribo Comá-Tapüjaa, menino, também adolescente, que foram levados da mata onde viviam, transportados para a Baviera. Isto teria ocorrido em 1820, quando o zoólogo Johann Baptist von Spix e o botânico Carl Friedrich von Martus, ambos da Academia de Ciências da Baviera, aportaram ao Brasil, em 1817. O objetivo dos dois naturalistas era “ desbravar o interior do país e registrar suas impressões sobre a fauna, a flora e os povos que aqui habitavam.” Não se sabe ao certo, se o rapto foi por troca de alguma coisa, ou roubados das tribos. Também podia terem sido presentes dos maiorais das tribos. Na realidade, foram quatro indígenas transportados em navio, dois não resistiram a pavorosa viagem, somente dois ousaram aportar à Baviera, aos cuidados dos dois cientistas. Os dois indígenas ficaram aos cuidados da própria Rainha, onde recebiam todos os cuidados, porque ela tinha filhos pequenos, queria-os conviverem com os dois índios. Lá, Ine-e, a menina, foi batizada como Isabel e Juri, o menino, Johannes Juri — com o que eles perderam suas personalidades.

Como esperado, os dois não se acostumaram à Baviera, ficaram doentes, devido o frio intenso, também a alimentação, que era totalmente diferente, acabaram falecendo. Juri, em junho de 1821 e em março do seguinte Isabela. A rainha da Baviera — Karoline, consternada por querê-los vivos e se tornarem cidadãos europeus — mandou célebre artista construir um belo túmulo em homenagem aos dois infelizes indígenas.

 

2.   Impressões de leitura

 

Nos séculos XVI e XVII, Michel de Montaigne (1533-1592), escritor francês, escreveu sobre índios canibais brasileiros. Fez contatos com os huguenotes que instalaram colônias no Brasil, na segunda metade do século XVI, a chamada França Antártica e em 1562 alguns indígenas foram levados para a Europa para serem exibidos ao rei Carlos IX e sua corte. Dessa experiência, Montaigne escreveu o ensaio “Dos Canibais” (vol.I de sua obra “Ensaios”). Doravante tornou-se corriqueiro a captura de índios para servirem de exposição às cortes europeias, o Brasil exibido ora um paraíso, ora um inferno. O estranho que os indígenas levados por Montaigne, que eram guaranis, se adaptaram perfeitamente à França, integrando-se à Corte. Coisa que não aconteceu com os dois infelizes Ine-e e Juri, certamente por não serem guaranis.

Talvez até inadvertidamente, pois o livro é de 2022, a autora passou a fruir, com essa estrambótica estória, dos frêmitos atuais, alvo número um da mídia, que, de repente, começou a elogiar os indígenas e colocá-los como os maiores sofredores da história, pregando o extermínio dos aborígenes pelo governo anterior — o qual, na realidade, eles querem crucificar!

Não ousamos desmerecer os méritos da autora, ao correr da leitura que o leitor faz, por sinal, aos trancos e barrancos. O aproveitamento  dos contos indígenas, transportados para o texto criado, mitos e lendas, procurando embelezar a criação literária, à custo de pesquisas em alfarrábios anteriores, sem dúvida. Diz ter consultado especialistas e os agradece pela valiosa contribuição.

Mas, e daí, como fica o leitor que se vê embaraçado com os mitos indígenas, sua cultura extremamente pobre, o truncamento do fio da leitura. O leitor desconhece o linguajar indígena dessas tribos totalmente atávicas.

Vem-nos à baila, por exemplo, a criação literária do inimitável Guimarães Rosa, em seu extraordinário Grande Sertão, Veredas, a magia da linguagem, a riqueza do sentido da vida sertaneja, eivado de brilho, dando asas à imaginação. Quanta diferença!

                                               

                                                                 Bsb, 10.02.22

 

 

 

 

 





FLORES PARA ALGERNON

 


                                                



Murilo Moreira Veras

 

 

O livro em discussão no próximo dia 29.09.22 no Clube do Livro é do autor Daniel Keyes, mestre pela Brooklin College — Flores para Algernon. O autor é falecido e este livro teve a vendagem de 5 milhões de exemplares.

 

1.    Início

 

Em nosso Clube do Livro já lemos mais de 140 livros, tratando de “n” assuntos, romances, contos, poemas, de modo que, nós, clubistas, já temos uma visão mais ou menos cósmica do mundo da literatura. Mas, esse livro de Daniel Keyes impressionou-nos deveras. A despeito da grande vendagem, vê-se que não se trata de best-seller. É muito bem escrito, não tem muitos diálogos, a linguagem, isto é, a tradução, é escorreita, dentro dos moldes da ficção literária. Então a venda extraordinária do livro se deve ao seu conteúdo, à temática, à trama quase fantástica. E, a meu ver, principalmente porque nos traz uma grande advertência, equalizando-a para os dias atuais — a atividade científica como melhoria ou piora do mundo. No caso específico do livro de Keyes, a pesquisa científica capaz de transformar uma pessoa nascida com baixíssimo nível mental — caso do nosso personagem Charles Gordon — de debiloide que era a um verdadeiro gênio em que se tornou.

A trama do livro, isto é, o que aconteceu com o personagem central é algo de fantástico. Com a devida proporção, semelha-se ao personagem daquele filme O Médico e o Monstro  em que o sujeito tinha dupla personalidade, ora o médico prestativo, ora o monstro terrífico. Também, espécie de Frankenstein, aquele ser horrível criado em laboratório por um cientista louco.

É o que acontece com o personagem central desse livro de Keyes. Aliás, são dois personagens, um a variação do outro, o camundongo de laboratório, chamado Algernon e Charles Gordon, um rapaz que sofre debilidade mental de nascença. Observe-se que o título do livro evidencia o rato em vez do humano. Isto vale dizer que o ser humano, sujeito à transformação pela cirurgia feita, iguala-se à condição de um rato, portanto, tratado como tal, um simples objeto de pesquisa. É esse exatamente o tour-de-force do livro de Keyes — o ser humano rebaixado à condição de um rato, um camundongo objeto de pesquisa. Mas um rato inteligente, tornado inteligente pela cirurgia que os pesquisadores o submeteram. Mutatis mutandi, o mesmo ocorre com Charles.

Eis os fatos. Charles Gordon é um rapaz, desde o nascimento retardado mentalmente. Seus pais, sobretudo sua mãe Rose não se conforma com isso, acha que ele é normal, bate nele quando faz besteira, sofre porque os vizinhos o humilham. O pai, Matt, vendedor de artefatos de barbearia, acha que não tem jeito para o filho, já nasceu assim, não pode se modificar, o jeito é aceitá-lo como ele é. O casal vive em briga por isto, principalmente quando nasce Norma, a outra filha mais nova, por sinal normal, mas que não se dá bem com o irmão. Outro conflito: Rose, a mãe, acha que Charles tem problemas com a irmã menor, inclusive sexualmente, o menino fica olhando para ela, quer abraçá-la, pensa que quer agredi-la, quando na verdade o menino apenas quer brincar com ela. Matt discorda, defende o menino, coisa da cabeça medíocre dele. Acabam aceitando que Charles vá para uma clínica, se tratar como débil mental. È assim que o menino, agora já rapaz, é submetido na Residência Warren, abrigo de crianças retardadas, a uma cirurgia cerebral feita pelo Dr. Strauss, psiquiatra e neurocirurgião, acompanhado por outros pesquisadores, Warren, Prof. Nemur e o auxiliar Burt. Submetem-no a uma pesquisa original custeada pelo Governo, acompanhando a pesquisa laboratorial com o ratinho chamada Algernon, que teve seu cérebro aumentado, tornando-se um gênio. Agora são dois gênios: Algernon e Charles. O rato é gênio em todas os certames no laboratório, Charles, operado o seu lóbulo, o córtex cerebral, órgão responsável pela inteligência humana, compete com Algernon e acaba vencendo-o. Assim, dentro de pouco tempo, Charles torna-se um gênio. A transformação de Charles transparece nos Relatórios de Progresso que escreve para os pesquisadores. Ocorre que, com a cirurgia, sua personalidade se modifica. Ele chega ao máximo de genialidade. Lê toda espécie de livros, científicos e ficcionais. Faz trabalhos científicos, discute com eruditos sobre quaisquer assuntos, encontra erros nas pesquisas, desconfia dos pesquisadores e suas pesquisas. Consegue lê em várias línguas. Cria laços passionais com a antiga professora Alice, faz amor com sua vizinha Fay, uma efervescente pintora. Sua personalidade está tão aguçada que ele se torna até um voyeur — passa horas olhando outra vizinha no banho, despida.

Então as coisas começam a degringolar com Charles. Sua personalidade agora muda, tem visões horríveis, bebe desbragadamente, desrespeita os pesquisadores, duvida de suas pesquisas, revolta-se contra tudo e todos. Torna-se pessoa intragável, sem amigos. Até os jornais especializados o tratam como o imbecil-gênio. E pior de tudo — acaba retroagindo para o que era antigamente: um imbecil. Exatamente o que ocorreu com Algernon, que acabou maluco e pior — morto. Acarretado pela pesquisa?

 

2.    Impressão e Crítica

 

É de vê-se que o livro envolve severa contradita à ciência, pelo menos essa do campo neurológico, melhor, os avanços extraordinárias quanto às pesquisas realizadas no cérebro humano. Tudo na perspectiva de que a ciência pode tudo, os feitos já realizados e os  futuros, com realizações estupendas, em todos os campos do conhecimento humano. No caso, o cérebro agora vasculhado como vetor do aprimoramento, pesquisas a mais visando o aperfeiçoamento do ser humano, até a tal inteligência artificial, a criação do ente perfeito, o homem máquina ou a máquina feito homem. Naturalmente visando a ascendência total e absoluta do ser. Dai a figura engembrada do Frankenstein. Até onde vamos?

A meu ver,  esse é o grande valor do livro de Keyes. Não é uma literatura comum, uma mera ficção, a historieta de um debiloide que mexido no seu córtex frontal — o segredo escondido da inteligência humana no ente criado por Deus — se torna de repente um gênio. Mas quê espécie de genialidade ele porta, se não passa de um autômato, sem coração, sem sentimento, sem amigos, inclusive um fato terrível — ele, o abestalhado que era no passado, virou gênio por pouco tempo, agora retroage de maneira violenta.

Flores para o Algernon — não será um aviso de que é defeso intrometermo-nos nos mistérios do cérebro e do ser humano como criatura gerada na perspectiva de uma transcendência a que não temos o direito nem podemos violentar, como o fazem aqueles que se arvoram de senhores do destino, da razão e da sabedoria perene incontestáveis?

 

                                                       Bsb, 15.09.22

 

 

 

  

 

 VIGÍNIA WOOLF E O FLUXO DE CONSCIÊNCIA

 

 

 


 

                                Murilo Moreira Veras

 

 

“Mrs. Dalloway é o livro que vamos discutir em nosso encontro do Clube do Livro, no dia 31.08.22. A edição é da Nova Fronteira, a tradução é do poeta Mário Quintana, apresentação da Jornalista Marília Gabriela.

Resta-nos logo dizer que concluímos a leitura com sacrifício de tântalo. O texto da autora é labiríntico, com descrições de altista, espécie de fenomenologia literária. O leitor, coitado, que se vire para alcançar o voo estrambótico da autora.

 

1.    Preâmbulo

 

A autora — maior representante inglesa da linha literária designada de fluxo da consciência (streams of consciousness) — narra um dia na vida de sua personagem Clarissa Dalloway, esposa de Richard Dalloway, pertencente ao Parlamento Britânico. Sem capítulos definidos, a narrativa se desenrola ao sabor da consciência da personagem, os assuntos em trambolhões, jorros de acontecimentos, muitos inconsequentes, saltados,  exatamente como fluem de uma cérebro desabrido. É exatamente a estilística batizada de fluxo da consciência — a mesma usada por James Joyce (Ulisses), Dostoievski, Tolstoi, também dito monólogo interior. Ainda a usaram Marcel Proust, William Falkner e para alguns críticos literários, no Brasil, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Hilda Hilst e Clarice Lispector. Nesta edição, aparece um croquis do centro de Londres em 1920, dando a ideia dos pontos da cidade citados e supostamente percorridos pelo pensamento da personagem. Clarissa, o personagem central viraliza pelos locais, até mesmo sonambulamente, enquanto escaramuça a vida inglesa, através de inúmeras outras personagens, criticando alguns, elogiando outros, desvendando seu interior, o amor que teve com Peter Walsh. Tudo isto prevendo um jantar em sua casa, a ocorrer à noite, em que compareceriam os amigos mais íntimos dela, Clarissa Dalloway.

 

2.    Enredo

 

É muito difícil o pobre do leitor desvendar a trama do romance, verdadeiro imbróglio. A autora parece querer desvendar o mundo britânico, remover fatos, futricas diversas de outros personagens, por sinal, inúmeros, ao mesmo tempo que satiriza atos e pessoas, ao lado de paisagens londrinas, bairros, transportes, qualificando uns e outros sob sua luneta literária. O leitor se perde nesse verdadeiro painel de futricas. A autora segue sua escritura ao sabor de seus próprios pensamentos. O extraível desse caracol fantástico é conseguir saber que a autora faz uma descrição da sociedade britânica à época, para o que usa e abusa da memória, tendo como pivô central uma senhora de 52 anos, casada com um parlamentar mediano, enquanto ao redor surgem personagens com ou sem pecadilhos, espécie de crítica social, a autora na sua torre de marfim, a ironizar Deus e o mundo.

3.Conclusão

 

Extrair a razão de ser de uma novela como essa é-nos problemático.  Não encontramos motivação plausível. É claro que a autora é figura elogiadíssima pela crítica moderna, haja vista a apresentação nada simplória de Marília Gabriela, que é jornalista, não literata. A tradução é limpa, graças ao lirismo poético de Mário Quintana, o português escorreito, o que valoriza bastante o texto pantagruélico da autora.

Eximo-me de declinar algum critério para obra que considero  espécie de alvéolo, fora de nossa visão material de vivenciamento, quando o que aspiramos como leitor é nos abrigar em fatos mais reais, assuntos que nos façam enriquecer nosso restante caminho, procurar entender a vida e nos vangloriar de fatos que nos alegrem e nos fortaleçam e melhorem o mundo, não o perfeito que inexiste, mas aquele possível na perspectiva do quotidiano razoavelmente vivido — enquanto somos personagem nele.

                                                

                                                            Bsb, 27.08.22

 

 

 

 

 

 

VERÔNICA, A VIDA E OS PINGUINS

  



 

                                      Murilo Moreira Veras

 

 

Verônica e os Pinguins é o livro em pauta no Clube do Livro, a autora Hazel Prior, selo da Gutenberg. São 314 páginas, a meu ver, bem aproveitadas. A autora, além de escrever, toca harpa e vive em Exmoor, sudeste da Inglaterra com o marido e um grande gato ruivo.

 

1.    Prólogo

 

Poucas pessoas conhecem ou se inteiraram sobre os pinguins, como vivem, se reproduzem. Pouca gente sabe que essas criaturas não são mamíferas, mas simplesmente aves, portanto ovíparas. Vivem em colônias aos milhares em terras frias, geleiras, o reduto a Antártica e as ilhas afins. São os pinguins-de adelia (pygoscelis adeliae). Pois este livro descreve um passeio de uma senhora de 86 anos às geleiras da Antártica, onde passa a conviver com cientistas que estudam e fazem pesquisas sobre os pinguins. O que se passa ali e o porquê dessa senhora se deslocar para viver algum tempo nessas paragens tão desérticas é o tour de force do livro da autora.

 

2.    Enredo

 

Verônica McGreedy é uma senhora de 85 anos, viúva, milionária e ao que parece sem herdeiros, pelo que ela saiba. Vive solitária numa mansão, na Escócia, cujos únicos empregados, que a servem, é Eileen, espécie de faz-tudo para ela e um jardineiro que cuida do jardim. Só iremos saber o miolo do livro, no desenrolar de uma história ao mesmo tempo trágica, aventureira e até engraçada. Aos poucos, inteiramo-nos de que Verônica teve infância e adolescência bastante trágicas, os pais falecidos a época da guerra, num desastre, ela entregue a uma tia que a distratava, depois levada para ser criada num convento de freiras. No convento, ainda adolescente é vítima de imbróglio amoroso com um tal Harry e sua namorada, depois sofrendo bullying na escola, acaba se envolvendo com Giovanni, rapaz italiano que é prisioneiro de guerra, com quem pretende fugir. Ocorre que Verônica está grávida do italiano, as freiras ficam horrorizadas, mas fazem o parto dela, ela agora está com o filho Enzo, as freiras cuidando dela e do filho. Mas por pouco tempo. Até que um dia, ela acorda e não encontra mais o filho — as freiras, à revelia da mãe, o entregam em adoção a um casal de certa posse. O tempo passa e Verônica, saindo do convento, se emprega numa empresa imobiliária cujo dono é milionário. Este se engraça de Verônica, que sempre foi muito bonita e se casa com ela. Ocorre que o milionário tem amantes, mas Verônica agora administra parte da imobiliária por conta própria, divorcia-se do marido, o certo é que logo ele falece e ela acaba ficando milionária, mas sozinha. Tudo isto é contado na forma de um diário, mais tarde lido por Patrick, neto de Verônica. Patrick é o filho do único filho de Verônica com o italiano.

Verônica agora é uma mulher milionária, solitária, voluntariosa, cuja vida não lhe parece ter sentido. Até quando descobre que tem um neto chamado Patrick,  filho de seu filho, alpinista, morto num acidente. Por sua vez, Patrick é um rapaz, criado sem família, de vida meio irregular, trabalha consertando bicicleta, puxa uma droga e é também desiludido do mundo e da vida. Enfim, Verônica se encontra com o neto, não o tolera a princípio. É quando ela é tomada pela ideia maluca de, assistindo a um programa sobre a sobrevivência dos pinguins na Antártica, resolve passar um tempo naquele ermo gélido e ajudar a salvar os tais pinguins-de-adélia. É praticamente a segunda parte do livro, narrando as peripécias de Verônica na ilha habitada por pinguins, onde vai conviver com os cientistas administradores de um programa científico, a moça Terry e os colegas Dietrich e Mike.

Enquanto isso, Patrick que lê o diário de vida que lhe envia sua avó Verônica, também se apaixona pela ideia de salvar os pinguins e sabendo que ela já se acha sozinha entre os cientistas, resolve se mandar para lá. Na ilha ele faz as pazes com a avó, ajuda na vida excêntrica dos cientistas e acaba se apaixonando por Terry. Ocorrem peripécias de todo jeito, pinguins morrendo, eles conseguem salvar um que eles chamam de Pip, Verônica fica muito doente, quase à morte, Dietrich e Mike agora já gostam da velha intrusa, fazem tudo para salvá-la. No final as coisas se arrumam algo diferente. Verônica se restabelece, retorna à sua mansão na Escócia e ao contrário do que dizia, vai fazer seu testamento e deixar seus milhões de libras a seu neto Patrick, ele que decida o que fazer com a grana, em vez de destinar, como queria, para salvar os pinguins. De sua vez, Patrick prefere ficar na ilha com os cientista e seu novo amor, a enigmática mas simpática Terry e seu blog dos pinguins.

 

3.    Apreciação

 

É bom que se diga que o livro de Hazel Prior não é um best-seller. Não tem seus ingredientes essenciais: sexo, violência, terror, palavrões, linguajar chulo. Ao contrário, está bem estruturado, a autora usa técnica literária bem moderna, como parte do enredo relativo ao diário de Verônica em feedback. Os capítulos são curtos, mas bem adaptados ao estilo da narrativa, o que faz com que o texto não fique enfadonho, além de despertar certo suspenso quanto ao desenrolar dos fatos. Tanto pode versar sobre uma aventura, como tratar de educação, comportamento e problemas familiares. Sem falar que um dos tour de force é a vida de uma pessoa idosa, o comportamento de Verônica, milionária, mas solitária e infeliz, depois o fato de conseguir ter um sentido da vida, mesmo que seja para salvar pinguins.

Claro que se trata de uma ficção, com seus arroubos, suas incongruências, uma senhora com 86 anos se mandar para a Antártica para ver e ajudar pinguins. Ora, não se trata de um trabalho científico. É uma história humana, com todas as falhas de um ser humano, como as de Patrick que muda totalmente de vida pelo amor, embora sob o empuxo da grana que irá receber da avó.

Confesso que gostei do livro, sobretudo devido esses aspectos positivos e interessantes que a autora ousou demonstrar na narrativa.

 

                                                      Em 18.06.22

 

 

 

 

 

 

AS MENINAS REBELDES

  


  

 

                              Murilo Moreira Veras

 

O livro em discussão no próximo dia 26 é As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, edição da Companhia das Letras, 2009. Com este são três livros que lemos da autora no Clube. Como é sabido, Lygia faleceu há pouco, tendo sido grande perda nas letras nacionais, ela com 104 anos.

 

1.   Prólogo

 

Este livro foi escrito em 1973, a autora com 55 anos, em plena maturidade, em idade e espírito. Imagina-se que a autora o escreveu sob a atmosfera e cenário do chamados “anos de chumbo” da história política do País — epíteto que lhe tem dado a esquerda para o período do governo de Garrastazu Médici (1969-74). Tirante algumas exceções, artistas e escritores faziam coro contra o governo e a chamada Revolução de 64. Decantava-se a quatro ventos que vivíamos sob uma ditadura de ferro, não importa se o País recebesse benefícios, em economia e atualização. É neste clima e sob essa atmosfera, gerada inclusive pelos grupos subversivos que faziam ações terroristas em diversos recantos do País, que a autora Lygia Fagundes Telles escreve essa novela de 279 páginas. Certamente para acompanhar o séquito de alguns intelectuais que haviam aderido às ideias que diziam mais atualizadas e revolucionárias, provindas da Revolução Cubana, o mundo a encaminhar-se para uma etapa, que diziam progressista e libertária.

 

2.    Enredo

 

Em depoimento, a autora diz que partiu da realidade para a ficção. Trabalhou durante três anos na confecção da novela. É parte da vida de três personagens: Lorena Vaz Leme, Lia de Melo Schultz e Ana Clara Conceição. As três vivem hospedadas num pensionato das freiras Santa Marcelina, em São Paulo. Lorena é a mais intelectual delas, de família rica e tradicional, com propriedades de terras; Lia às vezes chamada Lião, se envolve em luta armada contra a suposta ditadura  junto com Max, seu amante, mas que ainda continua virgem e Ana Clara, a mais bonita de todas, mas detraqué, dependente de droga. Traduzir o imbróglio das três meninas rebeldes, o fio da meada narrativa criada pela autora é que se constitui um problema para o pobre do leitor. Sim, porque a autora utiliza o aclamado monólogo interior, na verdade o famigerado fluxo de consciência (streams of consciousness) utilizado por certos escritores, à guisa de serem  mais modernos que os outros. No pensionato, destaca-se a presença de Madre Alix, que em algumas ocasiões aconselha as três meninas, embora não as queira convertê-las. Elas, as meninas, são todas desmioladas, matriculadas em faculdades, mas pouco frequentam as aulas. Não sofrem restrição e fazem o que lhes dá na telha. Envolvem-se com namorados. No meio de toda essa balbúrdia, através de monólogos intermináveis, o leitor se perde nesse verdadeiro cipoal de pensamentos e elucubrações das três personagens, ora é fala de Lorena, ora é a de Lião se agatanhando com os amantes, cujo pensamento se imbrica com o de Ana Clara e de Lorena, a ricaça que decide desligar-se de sua prole. Como se diz em francês o enredo é um mélange, espécie de desbragamento orgíaco literário, cuja trama parece se dissolver num tropel olímpico de ideias e pensamentos.

 

3.    À Guisa de Apreciação

 

Haja leitura, haja entusiasmo, haja ânimo para desembrulhar essa narrativa. Que verdade seja dita, de Lygia, a escritora que morreu centenária, prefiro os seus contos curtos, mas palatáveis em gênero, número e grau. A autora — penso eu, com a devida vênia — enveredou-se no cipoal literário do fluxo de consciência, aquele modismo de uso e abuso de autores que se autorrotularam, supermodernos, a partir de James Joyce, Virgínia Woolf, William Faulkner, Marcel Proust, Edouard Dujardin. Também na mesma linha se acham José Saramago, Clarice Lispector e Hilda Hilst — esta amicíssima de Lygia. Arrisco a dizer que, nesse livro, a autora quer nos alertar sobre os problemas do mundo moderno. Sim, mas sua ótica é ideológica. Deixa-se imbuir de todos aqueles refrões esquerdistas, àquela época servindo como isca, principalmente ao público jovem, desorientado diante dos acontecimentos. Os militares — os mesmos que conseguiram evitar que o marxismo terrorista tomasse conta do País — não tiveram a devida sensibilidade de orientar a juventude, ao contrário tratou os jovens como também subversivos. Não tardou para que os  chamados intelectuais, os da linha esquerdistas, se rebelassem, quase em massa. Lygia deve ter ido também na onda.

À guisa de exegese, penso que as três meninas representam as três classes sociais: Lorena, é a classe alta, que esbanja arrogância, enquanto quer se alinhar às outras, ombreando-se com as outras classes; Ana Clara é a classe média que não tendo esperança nem força moral e econômica para fazer o contrapeso social, desilude-se e entra no mundo da droga; enquanto Lia, a classe mais baixa, revolta-se contra as injustiças e os desmandos da política, apelando  para a força bruta, o terrorismo — não é atoa que seu amante se chama Max, de Marx.

Não dou descrédito ao livro de Lygia, nem ouso criticar seu talento literário. Sob minha ótica, sempre penso na literatura como arte, até certo ponto, sob a égide da ética e da estética. A atividade literária tenho-a sempre com a finalidade de elevar o sonho humano, portanto não me encho de orgulho de dizer isto — mas o ofício de escrever deve sempre que possível desviar-se da leviandade e do desconstrutivismo.

                                                  Bsb, 12.05.22  

 

 

 




LYGIA : A DISCIPLINA DO AMOR

 

                                        Murilo Moreira Veras

 


 

 

O livro hoje — 26.04.22 — a ser discutido é A Disciplina do Amor, a autora Lygia Fagundes Telles, selo da Companhia das Letras. É mais um livro da autora que lemos no Clube do Livro.

1.    Preâmbulo

 

A autora, Lygia Fagundes Telles, faleceu no início do mês, sabe-se de falência dos órgãos. A mídia informa que ela tinha 98 anos, faltando poucos dias para completar 99. Pesquisamos e logo verificamos que, na realidade, ela faleceu com 103, quase 104 anos. É só consultar a Wikipédia. Acontece que Lygia, misteriosa como sempre, escondeu 5 anos de sua vida. Observe-se que ela era procuradora do Instituto de Previdência do estado de S. Paulo. Por mérito literário, pertencia a Academia de Letras de São Paulo e Academia Brasileira de Letras. Também pelo mesmo mérito, obteve quase todos os prêmios possíveis, Jabuti, até o maior galardão em língua lusófona, o Camões em 2005, pelo conjunto de sua obra. Foi ovacionada pela crítica, quase todos os seus livros premiados, sem falar que foi o quindim de ioiô dos luminares literários, Érico Veríssimo, Paulo Ronái, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector e Hilda Hilst, as duas últimas  suas grandes amigas, segundo afirmou. Crítica escrita e falada, ela foi entrevistada, suas obras decantadas a quatro ventos. No entanto, declara que não vivia de livros, ela uma simples autora do terceiro mundo. Este livro inclusive recebeu o prêmio Jabuti e do IPCA. E mais: ela própria declara que é sua melhor obra. Afirma ser uma escritora engajada, certamente também com a realidade brasileira e mundial, embora, não seja política.

 

2.    Do Conteúdo e Filigranas

 

Os críticos quase todos concordam com o mérito deste livro escrito em 1980, acompanhando a aferição da própria autora. Vou discordar, não como crítico de carteirinha, que não o sou e se alguma observação qualitativa faço, apego-me sempre à discrição normativa de Machado de Assis, isto é, não demolir o autor, espelhar alguns aspectos de sua obra, sob a égide da ética e estética literária. Considero-me apenas um leitor atento.

Logo de início, o livro não me parece de contos, mas, sim, resultado de fragmentos de sonhos, impressões, convicções pessoais, observações e lembranças de viagens — quem sabe crônicas ou simples anotações de leituras. Não propriamente contos, embora Mário de Andrade tenha dito que se um escrito o autor disser que é conto, que seja conto. Tecnicamente a matéria literária, como a da autora, não tem o caráter do conto — uma estória curta, com começo, meio e fim. Não me convenço, como leitor de quase todos os livros da autora, que este A Disciplina do Amor seja seu melhor trabalho. É interessante, admira-se sua maneira de escrever, fazendo certas alusões simbólicas, crítica velada, o mistério escondido em certos momentos, cuidado e acuidade quanto à recepção do leitor — minudências em que ela, Lygia, é mestra, sobretudo em seus contos. Entretanto, faço algumas leves observações sobre o valor de seu pensamento e suas convicções expostas neste livro específico.

 

3.   Impressões Pessoais

 

Vou expor apenas algumas digressões sobre o livro, reproduzindo o que escrevi em certas páginas:

Pag. 140 – Frases Fatais : Nesta pequena crônica, evidencio a contradição da autora, que esquece fundamentar seu juízo. As feministas são por demais extremadas, exorbitam da verdadeira razão de serem acima dos homens — esquecem que são a contraparte do homem. Recorrer a Che Guevara não é bom argumento: ele na verdade foi um monstro transviado de libertador, sabe-se que chegou a matar seus próprios companheiros desafetos, cinicamente sorrindo.

Pag. 143 – Revolução na Igreja: Vê-se, nas entrelinhas, que a autora se contagiou dessa virulenta interpretação à teologia católica, que é a ideologia  marxista, a chamada esquerda católica. Se alguns padres empederniram a Igreja com regras medievais, esse desvio não deve macular os ensinamentos preconizados pela fé católica, uma parte podre não deve contaminar o todo. Essa doutrina desvirtuada pelo Vaticano II talvez tenha contribuído para essa invasão espúrias às hostes católica, contrária aos ensinamentos crísticos, que foi e continua sendo a Teoria da Libertação. A autora se apoia em Tristão de Athayde, o venerável escritor católico que defendeu a politização do País através do esquerdismo. Alceu de Amoroso Lima, seu verdadeiro nome, deixou-se enganar, entrando na onda da maioria dos escritores, artistas e aproveitadores sociais. A autora esquece que a Igreja é representada pela ortodoxia verdadeira, vultos de pessoas sábias, do passado e do presente, como, por exemplo, G.K. Chesterton. Sem falar nos seus construtores: Sto.Agostinho, Sto.Tomás de Aquino, Santa Tereza d’Ávila. Sem desmerecer os méritos literários da autora, é de se esperar que ela recorresse à leitura da história da Igreja e não fizesse julgamento prévio à esquerdista, na pressuposição de salvar o Brasil e o cristianismo da direita fascista.

Pag. 150 — O Escritor e o Leitor: Nesse breve anúncio Lygia assegura que ...”O escritor pode ser corrompido mas não corrompe. Pode ser louco, mas não vai enlouquecer o leitor, ao contrário, poderá até desviá-lo da loucura.” Em entrevistas ela confirma essa sua convicção. Discordo. O escritor não está imune de, através de seus escritos, se tornar perigoso. O ofício de escrever deve se manter ao nível da ética e da moral. Não se trata de censura que o obrigaria a deixar de escrever, mas de uma obrigação moral. Escritores há e houve que fizeram grande mal à humanidade, embora tenham sido grandes e apreciados autores. À guisa de exemplário, eis alguns:

- Marquês de Sade e Emil Cioran, ambos de escrita execrável.

- Goethe, com seu livro Werther cuja leitura acarretou muitos suicídios no mundo inteiro.

- Shopenhauer, com seu desastroso pessimismo.

- Nietzsche, pelo seu nihilismo, desnorteando as pessoas.

- Baudelaire, com suas poesias negativas, as Flores do Mal.

- Montaigne, devido seu exagerado ceticismo.

- Diógenes, filósofo grego que inundou o mundo com seu cinismo filosófico. E tutti quanti mais.

 

4.   À Guisa de Conclusão

Essas nossas ressalvas, tanto  ou quanto pessoais, não denigre de maneira alguma a obra de Lygia Fagundes Telles, escritora de tantos dotes literários, já traduzida para meio mundo (Paulo Coelho também o foi, mas descabe qualquer comparação). Reconheço-a como a grande dama da literatura brasileira atual. Seu passamento deixa um vazio nas letras, além de ter sido pessoa admirável e admirada, inclusive por este que subscreve essas sinuosas, mas sinceras linhas.

                                                                        Bsb. 14.04.22

 

 

ORGULHO E PRECONCEITO

CLUBE     DO     LIVRO

        
                               

                                              

 

                    Murilo Moreira Veras

 

Em nosso encontro hoje, 28.02.22, discutimos o livro ORGULHO E PRECONCEITO, de Jane Austen (1777-1817), Ed. Civilização Brasileira, tradução de Lúcio Cardoso. É o primeiro romance da autora, publicado pela primeira vez em 1813, em Londres, com o título Pride and Prejudice.

1.    Prólogo

Confesso que já tinha o livro, mas não o lera. Confesso também que a autora, Jane Austen, não me atraia. Sempre a tive como uma espécie de autora de best-seller à antiga, do mesmo diapasão de E O VENTO LEVOU, continuação daqueles romances da belle-époque da Biblioteca das Moças.

2.    Enredo

Comecei a ler nossa Jane Austen motivado a criticá-la. E assim o foi, mais ou menos, até à metade do livro. Pareceu-me mais um livro de intrigas, conversa entre comadres, água com açúcar e aquele, como disse nosso regionalista Jorge Amado, converser tapiativo , conversa fiada, sem parar. A partir do meio do livro, começo a notar que a autora não era uma escritora vulgar, que caiba nos moldes simplistas do best-seller. Aos poucos fui compreendendo que o conteúdo de seu romance ia muito além, não se tratava de uma simples novela de costumes à inglesa. A autora prescrutava a história da Inglaterra, com agudeza e grande descortínio psicológico, justo o período em que os ingleses estavam prestes a entrar na dureza da era vitoriana (1837-1910), se comportavam à retranca, para não perder seu snobismo, sua altivez, enquanto fossem castas familiares herdadas do sangue azul britânico, se impusesse e desfrutassem os deleites do puritanismo farisaico. É justamente a figura ridícula de Mr. Collins, clérigo que vivia à custa da tia, floreteando em futricas de madames, casamentos e namoriscos, à busca de heranças.

Vamos aos fatos cronológicos do romance. Narra-se a história da família Bennet, formada pelo marido Mr.Bennet, sua esposa, Mrs. Bennet e cinco filhas: Jane, a mais velha, Elizabeth, a segunda, Katherine ou Kitty, a terceira, Mary, a penúltima e Lydia, a mais nova. Cada uma das moças tem um caráter, responsável pelo desenvolvimento da linha da ação do romance. Jane é muito bonita, mas já passa da idade de casar. Elizabeth é a personagem principal, recatada, mas crítica e muito responsável quanto ao nível social da família.  Kitty é meio escondida na trama, o mesmo que Mary, embora seja a mais familiar de todas. Já Lydia é justamente o contrário das demais irmãs: namoradora, volúvel e comporta-se mal na sociedade onde vive, sempre colocando a família em situações difíceis. Mr. Bennet, o pai, por outro lado, não se preocupa tanto com o caráter das filhas, sequer pensou em dar-lhes os necessários e imprescindíveis dotes. Até que as coisas começam a degringolar perante a família.

Enquanto pinta esse novo quadro dos acontecimentos, a autora vai analisando os entreatos, como pintasse uma paisagem, o colorido letárgico e negativo dos passos dos figurantes. Como as moças da época só procuravam se casar, elas se apresentavam em bailes, que os havia e eram os principais assuntos das fofocas e da vida diuturna.  Eram ali onde nasciam os namoros, de que, depois, podiam gerar casamentos. Esses bailes se restringiam às castas, dificilmente permitidos a pessoas pobres, sem qualificações familiares ancestrais. Mr. Bennet, o genitor das cinco casadouras, não era pobre, mas os seus bens constituíam-se apenas na sua casa e na pequena propriedade de onde tirava sua renda. Sem filho varão, com cinco moças, praticamente elas não tinham dotes e todo enlace requeria a outorga do dote, como exigia a legislatura inglesa à época. Os Bennets submetiam-se também aos Gardiners, Mr. Gardiner era o irmão de Mrs.Bennet e quem possuía muitos bens. Começa então os romances. Jane se apaixona por Mr.Bingley, rapaz de família graduada, com recursos. Elizabeth vê-se alvo de atenção de Mr. Darcy, de família riquíssima, mas considerado snob, o enlace totalmente preterido pela tia Lady Catherine, mulher orgulhosa e proprietária de valiosos bens, dizendo-se defensora da nobreza familiar. É nesse ponto que ocorrem os desastres. O primeiro é o imbróglio com o namoro de Jane, que a família de Mr.Bingley não aceita, devido mexericos. Mas o pior é o que ocorre com Lydia, com dezesseis anos apenas foge com certo militar, Mr. Wickham, de má fama, jogador e devedor de uma fortuna no lugar. Então todos os personagens se cruzam para a fatalidade, comovendo toda a família.

3.    À Guisa de Crítica

Jane Austen teve vida muito curta, 44 anos, o que realmente singulariza sua escritura, a habilidade com que soube armar seus romances, a agudeza de sua interpretação dos fatos, sobremodo a crítica sutil que fez da sociedade, embora nunca tivesse saído de seu meio, simplório e até certo ponto rústico. Fato cuja análise nos extasia. O que ela quer dizer com essa história vai além do jogo de personagens, que apenas são figuras, caráteres, que ela utiliza para organizar o arcabouço da crítica simbólica que faz da época pré-vitoriana, a análise da Inglaterra perante o mundo, antes da Revolução Industrial. O inglês àquele tempo, representativo do que restava da nobreza, ousava viver o clímax do puritanismo, farisaico e pudico. Suas ações eram de viver na indolência, como observa-se em todos os personagens, homens ou mulheres. Eles, depois de impúberes, às custas das heranças paternas ou afins, o objetivo era a busca de um dote, para não esvanecer a fortuna pelo consumo, uma moça quanto mais rica melhor seria, fosse magra, feia, gorda (Mr. Collins e Mr. Wickham). Elas, com a garantia de seu dote, o plano era buscar o que fosse melhor, tivesse bens, lhes garantissem bem-estar, desfrutar da alta sociedade, o amor, quem sabe, viria por acréscimo.

A nosso ver, a parte mais importante do romance está no cap. LVI, o diálogo vulcânico entre Lady Catherine de Bourgh, tia de Mr. Darcy, a dama superiora, com Elizabeth, de classe média, (talvez média média), praticamente sem dote, de educação simplória. Observe-se que, enquanto a  dama arrota  grandeza, arrogância, falando em nome de sua família nobre e procura rebaixar a opositora, as respostas de Elizabeth são equalizadas, virtuosas, de equilíbrio e brio pessoal, não se deixando abater pelos insultos da outra, ao tempo que fulmina-lhe todas as acusações. É um verdadeiro embate entre a estupidez de uma e a sensatez da outra. Vale todo o romance.

Tenho apenas algumas observações a fazer sobre o romance, ipso facto da autora. As Bennets  têm capacidade cognitiva muito além do normal, haja vista as falas, os diálogos, as observações, mas nunca saíram de um simples burgo — onde aprenderam, que colégio ou faculdade frequentaram? Os personagens masculinos, quase todos, são, pessoas ricas, bem vestidos, usam carruagens luxuosas, vivem no ócio e na orgia. O que fazem? Caçam, bebem, comem do bom e do melhor — e o que faz o resto das pessoas? Outro aspecto: alguns anos depois, em 1832, nascia uma grande escritora americana Louisa May Alcott cujo livro As Mulherzinhas tornou-se um best-seller mundial. Se examinarmos, Alcott, parece ter imitado muito a inglesa Austen, embora as circunstâncias sejam outras. A criatividade literária jamais esmorece, como fonte inesgotável da escritura.

 

                                                                         Bsb, 12.02.22

 

 

 

           
             
A CARNE : SENSUAL  OU LIBERTINO?

                                    





                                       Murilo Moreira Veras

 

                Neste 12.10.21, no Clube do Livro lemos o livro de Júlio Ribeiro, A CARNE, selo da Ateliê Editorial. O livro tem tido uma trajetória de ataques da chamada crítica oficial ou encômios de críticos apressadinhos. A 1ª edição do livro data de 1888 e a última em 1911, editada em Paris — conforme informação histórica dada por Israel Souza Lima. Pronunciaram-se sobre a obra críticos como Álvaro Lins, Alfredo Pujol — este a dizer que o autor não alcançaria a posteridade “com esta carne à cabeça, à guisa de coroa de louros.” Também Manuel Bandeira  em conferência em sessão da ABL, em 16.04.45, comemorou o centenário do autor objeto da sanha crítica da época. Marcelo Bulhões, da Ateliê, doutor pela USP, apresenta esta nova edição, ele autor de tese sobre o Naturalismo Brasileiro.

1.    Prólogo

 

             É de vê-se que Júlio Ribeiro, morto em 1890, até hoje ainda é relembrado, ora como escritor que ultrapassou uma “determinada zona de intelectualidade” na visão de Álvaro Lins ou modernamente mais um autor naturalista símile aos franceses Emile Zola, Flaubert e Maupassant. Na orelha desta edição Antônio Dimas declara: “Eis aí um argumento para instalá-lo mais à vontade na História da Cultura brasileira. Em canto discreto, todavia.” Sim, pois o escritor mineiro de Sabará, não passava de um professor de linguista e gramática, egresso da Escola Militar no Rio. Com o livro A Carne, ele parece assumir muito além de um simples professor, para tornar-se espécie de seven-trompet-man a esbanjar em todo o curso do romance conhecimentos de ornitologia, etnologia, sociologia, verdadeiro polígrafo, sem falar que esnoba o pobre do leitor dando aulas de cafeicultura e medicina. Observe-se que Machado de Assis criticou severamente Eça de Queiroz por seu romance O Primo Basílio, por ter abusado da escritura naturalista, com cenas eróticas e até mesmo impróprias para a época.

 

            2.   Enredo

 

        A narrativa chega a ser linear, um drama familiar onde o patriarca Lopes Matoso, já viúvo, tem uma única filha, Helena ou Lenita, de vinte e dois anos. O pai que vivia para essa filha a satisfazer todos os seus desejos, um dia,  repentinamente se sente mal e sem mais a ver, falece. Sem ter parentes próximos e atarantada pela perda do fervoroso pai, ela vai morar na fazenda do antigo tutor dele, seu grande amigo coronel Barbosa. Trata-se de uma fazenda de café e o coronel a recebe como se sua filha fosse, ele que também só tinha um filho, Manoel Barbosa, Manduca, rapaz já quarentão, casado e separado, espécie de boa vida, tendo viajado mundo afora. Os primeiros capítulos se desenrolam para descrever a fazenda de café, a moagem e os trabalhos árduos dos negros escravos na manutenção e produção da cafeicultura, as ocorrências dali decorrentes. Lenita assiste a tudo isso, enquanto esnoba sabedoria, lendo romances e fazendo passeios pelo matagal. Só depois, Manduca vai aparecer na história e sua figura é antecipada por Lenita como um super-homem, bonitão, espécie de playboy, com que adoraria conhecer. Indolente, tendo surtos de solidão e apelos sexuais, a moça se sente isolada, chega a adoecer, mas o médico sabe que Lenita sofre de ansiedade, inclusive sexual. Entrementes, ocorrem fatos desagradáveis na fazenda, a fuga de um escravo, que é pego e é castigado com suplício terrível, depois certo escravo velho que vivia de favor por bonomia do coronel, macumbeiro desvairado que praticara vários crimes com suas mandingas, recebe castigo violento, sendo queimado vivo. A tudo isto Lenita vê e participa, até mesmo a fruir gozo íntimo. Nos próximos capítulos, Manduca chega de viagem, Lenita se decepciona com sua aparência, o rapaz sofre de enxaqueca, ela quer ir embora, desfrutar da vida citadina, mas no dia seguinte ele lhe aparece curado, airoso e oferecendo-lhe ramo de flor. Doravante, tornam-se amigos, fazem caminhadas nas trilhas, estudam e leem juntos, ele demonstra grandes conhecimentos de botânica, discute sobre assuntos diversos, é versado em línguas. Enfim apaixonam-se um pelo outro. Entretanto, só nos últimos capítulos chegam à via dos fatos. Lenita que antes o desprezava, agora cai-se de amores por aquele homem maduro, inclusive por tê-la salvado de uma mordida fatal de cascavel, numa de suas andanças pelo matagal. Por fim, loucos de desejos um pelo outro, dá-se o que já é esperado.

            O final do romance é meio contraditório. Lenita, mesmo apaixonada, descobre que seu amante tem relações íntimas com outras, decepciona-se, agora o odeia, não quer mais nada com ele, embora já grávida. Enquanto ele está fora, em viagem, Lenita deixa bruscamente a fazenda, vai para São Paulo e casa-se com antigo candidato. Deixa carta ao amante de certo modo mandando-o às favas que ela agora ia desfrutar vida de casada, nada de paixões desenfreadas. Madruga, o amante, quando retorna de viagem, só encontra o vazio, lê a carta e descobre que fora desgraçadamente enganado, que Lenita não passava de uma cascavel, fizera-o de brinquedo de seus prazeres sexuais. Em seguida, suicida-se por simples vingança!

 

3.    A guisa de crítica

 

            Como se pode ver, A Carne é um romance de costumes com muita descrição e um blábláblá interminável de cultura geral, a nosso ver até com certas incongruências na sua estrutura. Como pano de fundo, para dar um tour-de-force naturalista à história, nos capítulos finais, algumas pinceladas de erotismo quase vulgar e caem as cortinas da peça teatral montada por um professor, que se vangloriou de polemista, aparecendo em foto com Ramalho Ortigão e Antônio Trajano, duas figuras supostamente de proa nas letras. É o que me consta dizer.

O resto são migalhas literárias.

 

                                           Bsb, 1.11.21

 

   

           POEIRA LUNAR : UMA AVENTURA EM FC

                                             

  

                                                                                                                                                                                       


                                                       Murilo Moreira Veras

 

         O livro em pauta hoje, 19.10.21, no Clube do Livro é POEIRA LUNAR, do escritor inglês Arthur C. Clarke. Clarke é entronizado como um dos maiores e melhores ficcionistas em FC, ao lado de Issac Asimov, Ray Bradbury e outros também notáveis. Informam seus editores que ele deixou um legado de 100 milhões de livros vendido.

1.    Ab initio

 

         Poeira Luna foi escrito em 1960 e muito do seu enredo o autor se vale de seu conhecimento de física, engenharia, astrofísica, cosmologia e astronomia. Inclusive muitas de suas ideias foram adotadas nos voos siderais da NASA. Suas descrições são minuciosas, como a demonstrar ser mestre em ciência e tecnologia. Só não consegue ultrapassar o atual suprafísico Michio Kaku em seus fantásticos livros, o mais recente Física do Impossível.

 

               2. Enredo

 

             O enredo parece simplório. Uma nave lunar — na realidade espécie de ônibus — parte numa excursão turística  com 22 pessoas, senhoras e senhores, para fazer uma turnê na área chamada Mar da Sede, região ainda desconhecida da Lua. Tudo segue em absoluta normalidade até a dita nave de repente ao percorrer certa região se precipitar uma espécie de abismo e ser totalmente absorvida por uma poeira, que não é uma simples poeira, mas maré gosmenta, que se infiltra no veículo e pode até destruí-lo. A nave que não dispõe de itens suficientes para se livrar do acidente fica presa a cerca de 15  metros da superfície e a tendência é se afundar cada vez mais, inviabilizando qualquer  tipo de salvamento. Em outras palavras: os 22 turistas e a tripulação estão fadados a serem sepultados para sempre num lamaçal de traiçoeira poeira. A maior parte do livro,  mais ou menos do capítulo 9 em diante — são 31 ao todo — consiste em descrever como ocorrerá o salvamento da nave Selene e trazer à vida 22 pessoas, mais a tripulação, de serem enterradas vivas na Lua.

           Como os especialistas da Terra, os engenheiros espaciais conseguirão evitar a morte dos turistas?

 

2.    Impressão e crítica

 

            Até o capítulo 9, a novela trata da viagem turística, com as descrições alusivas ao passeio que devia durar apenas algumas horas. Não há grandes novidades, perfeito para seu gênero, FC. Lembre-se que Clarke escreveu em 2001 uma obra-prima, Odisseia no Espaço, transposto para o cinema pelo genial Stanley Kubric.

            O autor tem o dom de ficcionar a ciência e transmitir assuntos difíceis à plebe rude que boia sobre o assunto — e isso é o que o caracteriza como excelente ficcionista na área. O episódio da catástrofe ocorrida com a pequena nave Selene transforma-se numa verdadeira tragédia. O grande vilão é a poeira lunar, espécie de argamassa que surge nas montanhas escabrosas da Lua, especialmente na área chamada Mar da Sede. Qualquer coisa que caísse nas malhas dessa tal poeira, não teria salvação.

            A partir do capítulo 10, a narrativa toda volta-se para a salvação dos turistas da Selene. Doravante, o ficcionista passa a uma verdadeira avalanche, com minucias descritíveis e indescritíveis sobre os planos concebidos pelos engenheiros lunares e terrestres, todas as etapas do trabalho salvação. Isto de forma minuciosa, até os parafusos a serem usados, ferramentas e quejandos, todas as etapas de tudo que deverá ser feito.  Descrição do plano, trabalho dos engenheiros para enfrentar a tal poeira lunar, material decorrente de milhões de anos dos desgastes da Lua, como astro-satélite  morto, bombardeado por matéria galáctica.

São tão minuciosas as descrições do autor que acaba se tornando uma narrativa cansativa e enjoada para o leitor e o que é pior desagradá-lo na leitura e se desinteressar. Ás vezes, dá a impressão de esnobismo da parte do autor a querer empanturrar o leitor  de informações, coisa até inútil, tendo em vista o currículo de Clarke. É claro que ele age com maestria e utilita destreza o tour-de-force da novela, que é a técnica do suspense — o leitor, coitado, fica o tempo todo roendo as unhas para saber afinal como e quando os infelicitados turistas serão resgat daquele inferno.

3.   Impressão final

 

                O autor consegue fazer de sua narrativa um grande suspense, qual aquele das fitas antigas de faroeste americano, como os filmes de Huston, ou daqueles seriados em que se ficava esperando ansiosamente qual seria o passo a ser dado pelo mocinho para salvar sua pele.

                De qualquer modo, é um livro interessante. Os senões apresentados não lhe tiram o mérito, principalmente para quem é aficionado como eu a Ficção Científica, como os desenhos de Alex Raymond e sua genial criação de Flash Gordon.

 

 

                                                                Bsb, 30.09.21

  


                   EXEMPLO DE SUPERAÇÃO

 






                               Murilo Moreira Veras

 

O livro em pauta hoje no Clube do Livro é do autor Ernest Hemingway, escritor americano, de renome, laureado com Nobel de literatura. O Velho e o Mar, já em 77ª edição, ora com o selo Bertrand Brasil, 2012.

Já tivemos oportunidade de ler romance de Hemingway, de nossa parte lido com reserva.

1.     Prólogo

 

Este O Velho e o Mar, segundo a apresentação, é o livro mais popular do autor, que se distinguiu por suas reportagens de guerra e livros de impacto como Por Quem os Sinos Dobram e outros do mesmo jaez. É a história de um velho pescador, chamado Santiago, que fazia 84 dias que, todos os dias na dura tarefa de pescar, para o ganho da vida, não pescava um peixe sequer. Por isso, era tido pelos parceiros de profissão pessoa ultrapassada, praticamente morta. Mas, mesmo assim, dito como alquebrado e inútil, em relação aos mais jovens, Santiago, o velho não desistia de todo dia entrar no barco e enfrentar o mar, a cobro de fisgar o produto mais desejado por um pescador: pescar peixe, no mar. O velho Santiago, coitado, fazia tempo que não pescava nada, não tinha essa sorte. Ajudava-o um garoto, Manolin, que tinha pena dele e sempre o auxiliava, primeiro o acompanhando nas pescarias, a título de aprendiz, também trazendo-lhe às vezes comida, que o velho vivia só. Depois, os pais do Manolin o impediram de acompanhar o velho e passar para outro barco, mais proveitoso na arte da pesca.

Num desses dias, Santiago sai de madrugada para enfrentar o mar no seu pequeno barco, sem o ajudante, só com a coragem, pesando-lhe a vergonha de ser um pescador inútil. Afasta-se da costa e depois de uma longa espera, começa a fisgar algo, primeiro peixinho, que só serve para comer ali mesmo no barco. É quando, lá para as tantas, fisga um que, tudo indica, ser enorme. Então ele começa a lutar com o peixe, o maior que já tinha visto no mar. É uma luta insana que o velho Santiago tem de fazer contra aquele monstrinho do mar. O peixe arrasta o barco e salta acima das ondas, para se livrar do anzol, enquanto reunindo todas suas forças o velho sustenta a vara e dá-lhe corda até vê-lo cansar A muito custo, o velho consegue arpoar o peixe, domá-lo, trazê-lo para a borda do barco e amarrá-lo, junto à embarcação, para rebocar o monstro, com seis metros de envergadura.

É quando aparecem os maiores predadores do mar: os tubarões. Primeiro um se acerca, Santiago consegue atingir-lhe com o arpão, ele retorna, acaba abocanhando um pedaço do peixe ancorado no barco. E o velho doravante tem de lutar renhidamente com uma malta de mais tubarões, todos ferozes, enxotados a custo de pancada, mas sempre a estraçalharem o peixe prisioneiro.

Durante cerca de dois dias o velho passa no mar, lutando contra os tubarões, já extenuado de força, mas se ufanando de haver pescado o maior peixe até então visto. Enquanto luta, ele, em monólogo, fala sobre sua vida, os sonhos, a história de um ser humano que consegue vencer os tropeços da vida.

 

2.     Avaliação

 

Críticos americanos e brasileiros consideram O Velho e o Mar uma obra-prima.  Não vou contrariá-los. É certamente uma obra de valor literário, até do ponto de vista humanístico. Hemingway o escreveu como o ápice de sua malograda existência. Era um repórter e como tal, no livro, ele desenvolve uma técnica jornalística de suspense literário. O que seria esse velho pescador que não consegue pescar e desafia o mar para pescar o maior peixe já visto? Consegue domá-lo, matá-lo e trazê-lo para terra e demonstrar que conseguiu vencer o impossível, fisgar um peixe descomunal. Seria o que aconteceu com ele próprio Hemingway? Ele conseguiu vencer na vida como repórter de linha de frente, escrever livros, hoje, considerados imortais. A história de velho Santiago é um exemplo de superação. Há um mote que diz: vence a vida, quem vence o medo e a morte. O velho é um herói, fez como se diz, das tripas coração, e conseguiu vencer o desprezo, a solidão, o malogro. Mas, o autor, Hemingway, venceu as intempéries da vida? Creio que não: suicidou-se com 60 anos, um tiro, se não me engano no coração, como fizera o pai e a neta, anos depois, suicidando-se no mar.

Ora, a história do velho Santiago lutando contra um peixe-monstro, na realidade luta impossível, se analisarmos detidamente os ingredientes dessa fantástica narrativa, tem o mesmo sentido do livro de Herman Melville, Moby Dick, de 1851, a baleia assassina, que o capitão Ahab enfrenta no mar, a título de vingança dos crimes que o monstro teria praticado. A luta entre o bem o mal. Claro que Melville fez um romance imenso para narrar esta história. Hemingway, jornalista de vanguarda, simplifica tudo, dá-nos apenas o arcabouço dessa tragédia. Um velho, que não servia mais no ramo pesqueiro (ou da vida moderna), renasce das cinzas, retira forças ocultas, prova que tem peito ainda, enfrenta as intempéries da vida e vence o impossível, o monstro do mar.

Cá entre nós, não sei se nosso Hemingway teve esta intenção clara de ser um vencedor das intempéries da vida, tendo se livrado fatidicamente dela por uma fraqueza de caráter, o suicídio.

A literatura nacional e mundial é prenhe desses exemplos trágicos. Ninguém se engane quanto aos objetivos da ficção. Ela é sempre uma faca de dois gumes, porque a ficção não é a realidade, embora saibamos todos nós, até por experiência própria, que a realidade, muitas vezes, supera a própria ficção.

                                                                  Bsb, 3.09.21

 

 

 

 

 

 

 RELATÓRIO SOFÍSTICO DE JACQUES DERRIDA

 

 







         O
livro de Jacques Derrida O Animal que logo sou prova a diversidade do autor diante da nova linhagem de filósofos franceses, dentre os quais Marcel Conche, Luc Ferry, André Comte-Sponville, Jules Deleuse, Felix Guatari, Marcel Onfray, todos agnósticos.

O objetivo é demonstrar o pensamento desconstrutivista do autor, que se apropriou desse hibridismo filosófico ao inaugurar um subramo da filosofia — o desconstrutivismo.

Derrida usa de um malabarismo verborrágico para demonstrar, na sua visão, que o ser humano, o homo-sapiens-sapiens, na realidade não pertence ao gênero animal, não como estabelece a taxinomia, mas, sim, credita a ele gênero especial, autônomo,  o de animal racional, que ele apelida de animot, espécie digamos de ser de tendência animalesca, que é animal mas não pertence ao gênero animal, por ter qualidades intrínsecas violentas, que fogem às naturais desse gênero — assim como da família do lobisomem. Mesmo dotado da razão, de racionalidade, esse espécime que assume a coroa de sapiens-sapiens, na verdade tem instinto bestial. Ele, este animot, é capaz de matar, não por instinto como os outros animais, por vontade própria, para se garantir como Rei da Criação.

Segundo o streap-tease vernacular derridiano, o ser humano torna-se pior do que o seu suposto símile animal irracional, quando ele se vê nu diante do espelho   — de certo o espelho que representa a racionalidade — espelho esse cujo reflexo o faz confrontar com o animal irracional que dele este se envergonha.

Na visão draconiana do desconstrutivista, a nudez refletida no espelho significa que ele, ser humano não passa de um animal que se envergonha da própria brutalidade. Daí o título do livro O Animal que logo sou, isto é, usando a dialética desconstrutivista — o ser animal fantasiado de racional diante do espelho irreprochável da Razão, da Ética e da Moral. O homem sem as vestes da ilusão que esconde o que ele na realidade é, um animal, travestido de humano.

Claro que esta visão negativista, desconstrutivista do ser humano atenta contra todos os princípios, inclusive os da própria ciência, quanto mais dos estatutos do cristianismo, da própria Religião em si e sua Teologia. Sem falar que, mesmo na caracterologia freudiana trata-se de um absurdo. O ser humano, mesmo dotado da fagulha do raciocínio e laureado com o livre arbítrio decair da linhagem dos seres superiores e não passar de um troglodita, fantasiado de sapiens. Se assim é o ser humano na fatídica cartografia de Derrida, inúteis teriam sido as palavras do Mestre no seu Sermão da Montanha, quando aconselhou os seres humanos a serem bons e justos — estaria laçando pérolas aos porcos.

CDL/Bsb, 20.08.21

 





















UM  CAVALHEIRO  EM MOSCOU

                           Murilo Moreira Veras

 



Em pauta hoje o livro de Amor TowlesUm Cavalheiro em Moscou. O livro teve mais de um milhão de exemplares vendidos nos EUA — o que não deixa de ser uma referência. A meu ver não se trata, a rigor, de um best-seller pelas características que o distinguem. Ao contrário, o autor narra uma história fictícia, mas que parece real.

1.    Prólogo

A história se passa na Rússia Soviética. Trata-se de uma crítica sutil ao regime comunista, inteligentemente desenvolvida. Também com sutileza, a despeito de  reconhecer os defeitos intrínsecos do capitalismo libertário, os bolcheviques pelo seu regime voluntarista e autossuficiente.

2.    Enredo

 

A trama é construída à moda de um livro policial, com pitadas de suspense, dentro de um quadro histórico da Rússia. O protagonista principal um conde — Alexandr Ilitch Rostov, pertencente à velha oligarquia moscovita, representando o principado da família Romanov, descendente da mais bem sucedida dinastia dos tempos modernos. O império foi desmontado pelos bolcheviques, que instalaram, a partir de 1917, a chamada ditadura do proletariado, segundo a teoria de Karl Marx e posta em prática por Lenine e Stalin, a ferro e fogo.

O Conde Alexandr Ilitch Rostov é um dos sobreviventes dessa poderosa oligarquia, e, como ocorreu em massa por serem considerado um estorvo à nova ordem, foram eliminados. Por uma circunstância do destino, os mandatários do governo, sob o comando vigilante da poderosa NKVD, decidiram manter o Conde vivo, mas, como castigo, preso no Metropol, um hotel de luxo dos mais frequentados por estrangeiros em Moscou. Também o lugar predileto de reuniões da elite da Revolução — os mandatários da Rússia, agora governada pelo proletariado. O Camarada Stálin — o Querido Pai, Void, Koba, Soso, como conhecido o homem que dominou a Rússia cerca de trinta anos. Os ajudantes são Beria, minstro da segurança, Bulganin, das forças armadas, Malenkov, vice do Conselho de Ministros, Mikoian, do Comércio Exterior, Molotov, das Relações Exteriores, Kaganovitch e Vorochilov, do Secretariado e o prefeito de Moscou Nikita Khruschov — todos pertencentes

ao apparatchic (pag.350). No dia 3.03.53, Stalin morria em sua residência em Kuntsevo por acidente vascular cerebral, substituído, depois de intrigas intestinas desses camaradas do Partido, pelo bruto e calvo Khruschov — aquele mesmo que de forma grotesca bateu os sapatos no plenário da ONU em 1960 (fato contestável hoje!).

Preso no Metropol num minúsculo quarto de 5m, suíte 317, o Conde passa a viver e para sobreviver é nomeado chefe dos garçons, devido seus conhecimentos de vinhos, pratos de iguarias finas e fino trato com os clientes hóspedes do hotel. Acaba fazendo uma entourage de amigos, devido a convivência e a habilidade do Conde em lidar com as pessoas, desde os porteiros,  aos garçons, o Chefe da cozinha e seus ajudantes, até a costureira Marina, de que se torna íntimo, por lhe fazer o favor de consertar suas roupas, pregar botões e outros pequenos serviços de costura.

Mas porque mantêm o Conde preso? Seria um homem perigoso? Talvez — parece que tudo decorre de inveja dos mandachuvas bolcheviques e mantê-lo vivo e humilhado, seria um bom exemplo como inimigo do regime proletário. O Presidente do Conselho Comissariado do Povo, V.A. Ignatov, no processo de julgamento do Conde declara: “... se voltar a por os pés fora do Metropol, será baleado.”

 

3.    Crítica

 

Do ponto de vista da técnica ou arte literária, o livro de Amor Towles é praticamente perfeito, diálogos afiados, personagens complexas, circunstâncias baseadas em locais reais, a trama bem construída, um suspense quase à la Hitchcock, não propriamente horrífero, mas de efeito suspensivo, o leitor no afã de saber afinal o que vai acontecer com aquele homem inteligente, de gestos polidos, sociável e erudito, durante tanto tempo — 36 anos — exprimido num quarto de hotel internacional no centro de Moscou.

O atrativo na narrativa é que na trama o autor enxerta, nos diálogos e no próprio curso dos fatos, citações de autores eruditos ou escritores famosos, situações de livros — isso que na técnica literária denomina-se intertextualidade, tipo de citação ou alusão. Daí os diálogos serem ricos, inteligentes, não se tornam ociosos, o que sói ocorrer nos best-sellers devido à mediocridade de certos escritores. Apesar de suas 460 páginas.

Ao correr da ação, o que o leitor quer saber é o que vai acontecer com o Conde. Já tentou suicidar-se uma vez, ato suspenso pelo olhar de um gato no telhado e o  repentino chamado de um amigo. Tem uma amante, artista glamorosa, às vezes decadente — Anna Urbanova. Um embaixador americano se torna seu amigo e, mais tarde, cúmplice de seu ardil final — Richard Vanderwhile. Cria uma menina, filha de uma moça que conheceu muito jovem — Sofia. Um ex-coronel do Exército Vermelho e alto oficial do Partido gosta de seu convívio e ambos adoram Humphrey Bogart no filme Casablanca — Óssip Glebnikov. O poeta Mikhail Fiodorovitchkov é seu amigo de juventude e morre esquecido pela cúpula da nova ordem proletária moscovita.

De repente, pelo final da estrepitosa vida do Conde no Metropol, dá-se uma verdadeira volta no parafuso da trama, o tour-de-force final. O Conde foge, na verdade ele trama a fuga, dele e da filha adotiva Sofia, uma trama minuciosamente elaborada, feita por um verdadeiro artista. Depois de um imbróglio com um espião do regime, foge do hotel, vai para Níjne Novgorod — importante centro econômico e cultural da Rússia. Sofia, sua filha, na verdade filha de Nina Kulikova, a amiga desaparecida, é instruída por ele, Conde, depois do concerto que vai fazer em Paris, em vez de retornar à trupe russa do conservatório, a pedir asilo à Embaixada Americana, através do embaixador Richard Vanderwhile.

 

O autor construiu uma história realmente fascinante. É um dos livros mais interessantes, dos mais de cem que já li no Clube, pelo nível de interesse que nos desperta e a maneira escorreita de sua escritura, sem, em nehnum momento, mediocrizar o texto e aborrecer o leitor. Sem falar na crítica sub-reptícia que corre ao longo de toda a leitura pelo uso inteligente da interxtualidade literária.

CDL/Bsb, 13.06,21                                                      

 








TORTO ARADO – ALEGORIA

DOS AFRODESCENDENTES

                          

                    Murilo Moreira Veras      




 

O livro hoje a ser discutido no Clube do Livro é TORTO ARADO do escritor Itamar Vieira Jr., baiano, geólogo e doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA.

O autor dá à sua narrativa espécie de alumbramento, ou seja, impinge ao leitor apologia à negritude, um hino à bravura e ao sofrimento da raça negra, transportada ao Brasil num determinado momento de nossa história.

O que seria, como se dá essa apologia no ideário do autor, eis o objetivo de nosso comentário. Ao sofrimento, ao sangue derramado, aos desmandos praticados contra os negros escravizados — é o que sugere o autor, ele próprio, negro.  afrodescendente.

Com essa narrativa o autor pretende defender o afrodescendente brasileiro, usando o vezo literário, isto é, dentro do espaço ficcional, para o que utiliza os artifícios da arte a seu alcance. Em razão disso, torna-se senhor da situação, maneja com certa facilidade os meandros de sua ficção e constrói, assim, o enredo de seu Torto Arado. Usa e abusa do monólogo, autor/personagem, troca um personagem por outro, para quebrar a monotonia da leitura. Ora é o personagem Bibiana que fala, ora é sua irmã Belonísia, esta desprovida da fala, devido antigo acidente de uma faca escondida de sua avó Donana. Há também capítulos de monólogos de outra personagem, invisível, por sinal, um encantado, um dos espíritos que dominam o terreiro da macumba, as brincadeiras de Jarê, que ocorrem sempre na casa de Zeca Chapéu Grande, o filho de Donana, uma mulher sofrida, portadora de muitas ocorrências em sua vida. Observe-se que, em São Luis-Ma, esse tipo de festejos sincréticos, são chamados de Tambores de Mina. Nas noites de sábado costumam  soar em toda a cidade o batuque desses tambores, a zoeira dos atabaques, varando a noite. Quem o desvenda é o escritor maranhense Josué Montello em seu Os Tambores de São Luis.

Estudioso da etnia africana, o autor parece dominar a matéria e faz uso astucioso e ficcional desses elementos étnicos, os etos da raça negra, seus rituais, religiosidade e exotismos com que se caracterizam os diferentes povos habitantes da África. Vale dizer que esses elementos ainda surpreendem a arte literária, razão talvez de o autor ter sido galardoado em dois prêmios Oceanos e Jabuti — o último o mais importante nas letras brasileiras.

À primeira vista, o livro de Itamar parece ter enredo simples, a história de um suposto quilombo chamado Águas Negras, no interior da Bahia. Seria mais uma dessas narrativas oficiais de assentamento como muitas ocorridas nesse verdadeiro continente chamado Terra Brasilis. No caso, trata-se de uma horda de negros, ditos afrodesecendentes, deslocados de suas origens e dos locais onde sediados, que agora, à conta da Lei do Ventre Livre de 1871,  emigram para outras paragens, Águas Negras, onde se fixam, posseiros de tratos de terra, submetidos a seus respectivos proprietários. O enredo se desenrola a partir de um personagem, Zeca Chapéu Grande, e sua família, a mulher Salustiana e as filhas Bibiana e Belonísia. Ele é analfabeto, mas trabalhador rural, curador, Pai de santo e orientador espiritual daquele bando de ex-escravos, sem eira-nem-beira por causa da Lei do Ventre Livre, a qual falsamente os livraria do jugo da escravidão.

Torto Arado, pelas mãos e imaginativa do autor, vai desfiando o pavio dessa história (estória), lenta e progressivamente, pequeno retrato trágico de um povo, definido na nossa nomenclatura oficial de afrodescendente.

Passemos, em largos passos, a desvendar os ardis dramáticos dessa história. O autor os cria para surpreender o leitor. São dois segredos, originários do misticismo, utilizados como técnicas literárias: uma faca misteriosa, objeto raro, afiadíssima, escondida por Donana, a mãe de Zeca Chapéu Grande: e um velho e desconjuntado arado, que não se sabe como aparece às mãos de Zeca, tornando-se seu objeto de trabalho na lavoura.

O arado dá título ao livro e ambos, o arado e a faca constituem o mistério que rondará todo o desfiar dos capítulos, envolvendo os personagens.

Tentaremos explicar os dois segredos, o moto próprio do livro. Seriam ambos o tour de force  do lavor dramático do autor. Dá força própria ao romance. A explicação dos segredos é totalmente minha, necessariamente não devem coincidir com outras interpretações. A FACA significa a altivez e dignidade do negro, herdadas de suas linhagens anteriores, suas etnias trazidas da África. Donana, mãe de Zeca, a mantém consigo, atravessando o tempo. Essa altivez é quebrada quando as duas irmãs Bibiana e Belonísia a descobrem e sofrem influência negativa: Bibiana torna-se moça vulnerável ao amor (o beijo escondido dado em seu primo Severo, com quem depois se casa) e Belonísia, devido descuido fatal, tem sua língua cortada, fica muda, mas adquire com o tempo força e coragem insuperáveis, a ponto de, mais tarde, abandonar o marido machão Tobias, também quando enfrenta com audácia o marido de Maria Cabocla, que covardemente a ataca. Já o ARADO, desconjuntado, torto, é à força de trabalho do negro, entortado devido a separação de seu berço original, a mãe África — representa a escravidão no Brasil, na figura intrépida de Zeca Chapéu Grande, sua dignidade e tirocínio, naquele momento responsável pelos trabalhos agrícolas daquela comunidade, seu condutor, mestre, curador, parteiro e Pai-de-santo, ajudado pelos encantados, figuras místicas, espíritos, que, em certas ocasiões, nele se incorporam. Singularidade: é analfabeto e recuperado de uma loucura na mocidade.

 

 

CONCLUSÃO

 

TORTO ARADO é a representação etnográfica dos afrodescendentes no Brasil, que aqui sofreram, deram seu sangue e aqui implantaram novo berço civilizatório — a etnia afrobrasileira, significativa parcela da população da Terra Brasilis.

  

CDL/Bsb, 15.04.21                                                                                                

         

 

EMMA — A CASAMENTEIRA

                                  

                                         Murilo Moreira Veras

 






Moça de família abastada, bonita e inteligente de 23 anos, solteira — eis as características da personagem criada por Jane Austen no romance EMMA. Sua atividade predileta: arranjar casamento das amigas. É o livro em pauta no Clube hoje.

1.    Prelúdio

Jane Austen — escritora que viveu no século XVIII e XIX — celebrizou-se por ser considerada a melhor cronista social da época. Por incrível que pareça sua fama cresceu mais na modernidade, em nossos dias, com tiragens sucessivas de seus livros e vendagem de absoluto sucesso, com público leitor cativo. Dir-se-á idêntico ao sucesso que nosso Machado de Assis obtém, ainda hoje. O segredo como caiu no gosto do público, talvez seja a maneira de escrever da autora, espécie de psicóloga da sociedade, que desnuda eventos, descreve as atividades da vida de personagens no passado, os relacionamentos sociais e familiares, gostos e costumes. São 368 páginas, lidas, acompanhando os passos de uma pequena multidão de personagens, que lutam por se darem bem na sociedade.

2.    A guisa de Enredo

 

Emma, filha do Sr. Woodhouse, é uma moça vivaz cuja principal atividade é fazer o encontro de seus amigos e amigas, para fins matrimoniais, como se não tivesse mais nada a fazer, numa época em que as pessoas, as famílias, em vez de voltarem-se para o trabalho, se esforçarem para alcançar um lugar na sociedade,  valiam-se de futilidades, comedorias, festas, o que vestir e o que dizer e comer em encontros familiares e sociais. Tudo desde que os fatos se passassem intramuros de uma sociedade feita de castas sociais, como aponta a autora no seu relato social sobre a época na Inglaterra.

Emma perdeu sua genitora muito cedo, cresceu sob os cuidados de uma governanta, Srta. Taylor, que, depois, se casa com o Sr. Westorn, o casamento inclusive arranjado pela própria Emma. Seu pai, Sr. Woodhouse, por sinal hipocondríaco, odiou a saída da governanta que fazia tudo na casa, comandando um séquito de empregados, costume à época, os proprietários não faziam nada, dependiam dos criados, até para se vestirem!  Ela torna-se amiga íntima de Harriet Smith, filha natural, não pertencente à grei superior da sociedade, criada num albergue de meninas solteiras e pobres, aos cuidados da Sra. Goddard, praticamente sem amigos. Emma resolve proteger a coitadinha e mais, arranjar-lhe imediatamente um bom partido. Entre  sua roda de amigos, todos abastados. Os candidatos logo aparecem: Sr. Elton, o pároco, Jonh Knightley e Frank Churchill, este filho do Sr. Weston de seu primeiro casamento, criado por outra família. Começa logo os desacertos, Emma pensa que o pároco se interessa por sua pupila, na realidade este pretende conquistar é a própria Emma. Também erra quanto ao Sr. Knightley, seu amigo mais íntimo, que tem grande simpatia por ela e ela não suspeita. Os fatos vão se desenrolando, com encontros, festas, muita futilidade, quando outros personagens surgem. Jane Fairfax é outra personagem, seu pai é Tenente falecido em serviço, a mãe Jane Bates, já falecida. Não tem grandes recursos. Emma surge como feiticeira e não percebe que o Sr. Churchill é muito interesseiro e acaba se desencantando com a pobre Harriet, trocando-a por Jane Fairfax, embora também pobre.

Mais uma vez o tino de Emma se engana, quando a amiga Harriet é pedida em casamento nada menos por um agricultor rude, Robert Martin, de família de segunda categoria. Emma logo o rejeita, pois ela acha que Harriet merece marido melhor, pertencente a casta social. Ocorre que o candidato certo mesmo para Harriet era o agricultor Robert Martin. O pároco, Sr. Elton, é rejeitado definitivamente por Emma, personagem no livro interessante e muito culto, mas, no filme — há um filme sobre Emma — chato, interesseiro e boboca.

Depois de muitas páginas de encontros e desencontros, banquetes, conversas e convescotes de madames e cavalheiros, bem vestidos, danças e mais danças de salão, sem falar no mau humor do hipocondríaco Sr. Woodhouse, que sempre acha que a filha não vem acertando nos casamentos, mas aceita sua vontade. Enquanto isso,  tem como hóspede sempre presente o Sr. Knightley, o qual na realidade acaba se declarando a Emma, que só depois de muito tempo percebe ser ele a quem ela ama. Aliás, de toda essa chusma de candidatáveis nessa sociedade fútil, formada por homens e mulheres, mais ou menos inúteis, interesseiros e inconsúteis aos grandes problemas sociais e filosóficos, é o Sr. Knightley o único conselheiro e crítico sincero de todas as ações   casamenteiras de Emma. No final, os casais acabam se acertando, dentro dos padrões recomendáveis com nada de novo no front da sociedade inglesa.

 

3.  Nosso Comentário

 

A autora retrata a cultura, os usos e costumes da sociedade inglesa nos séculos 18 e 19. Em tom satírico, usando crítica sutil, recria em seus romances a Inglaterra à época. Sobre sua própria escritura e criação, declara: “Emma é o tipo de heroína que ninguém, além de mim, vai gostar.” Há certa verdade, à medida que o leitor vai conhecendo as veleidades casamenteiras de Emma, acertos e desacertos, como se as pessoas fossem simples brinquedos e não tivessem sentimentos e desejos próprios. Esquece o que sabiamente disse Pascal: “O coração tem razão que a própria razão desconhece.” Nesse aspecto, a autora critica as casamenteiras, mas não deixa de se deleitar com essa atividade, vê-la tão importante quanto à das parteiras. Emma seria espécie de o que hoje se poderia designar couching matrimonial, dava aquele empurrãozinho aos matrimoniáveis. Embora muitas vezes, as coisas dessem errado, caso de Emma querer conduzir Harriet para os braços de candidatos que nada tinham a ver com ela, contrariando o que o coração lhe havia apontado. 

Estranhável em todos esses imbróglios de casamento, é que Jane Austen precise escrever 368 páginas para desenvolver esse enredo. Coitado do leitor, saber dos ataques iracundos do hipocondríaco pai de Emma. Ver o Sr. Knightley criticar as manobras matrimoniais desastrosas de Emma, no seu jogo de pretendentes, embora a amasse em silêncio. Aturar as veleidades e bazófias  do Sr. Elton, o pároco, querendo conquistar Emma e ela pensar que ele se dirigia a Harriet, uma ingênua criatura. Frank Churchill é o candidato vip, que primeiro ataca Emma, mas volúvel em suas atitudes acaba se passando para a pobre da Harriet, depois a talentosa Jane Fairfax, também desprovida de riqueza. O Sr. Robert Martin é o candidato certo para Harriet, são da mesma casta, não integram a clã dos ricos, aliás, rabugentos ricaços, preguiçosos, preconceituosos, volúveis, interesseiros e, porque não dizer, preguiçosos. Emma é uma cabeça dura, acha que sua pupila vale mais que um simples agricultor, o Sr. Martin. Acaba caindo na real, Harriet e Martin foram feitos um para o outro. Agora é só fechar a cortina e surgir em letras bem visíveis:  FIM.

Que tal, nós leitores do Clube que lemos já tanta coisa, descobrir, com certa argúcia e inteligência, que essa história/estória é uma imitação da peça “Comédia dos Erros”, de Shakespeare?

 

                                                                 Bsb, 18.02.21

 

 

















O  ALBATROZ  AZUL — UM DELÍRIO BAIANO

 





                                            Murilo Moreira Veras

 

Em pauta hoje no Clube do Livro, O ALBATROZ AZUL do escritor baiano João Ulbado Ribeiro, publicado sob o selo Nova Fronteira. Autor consagrado pela crítica literária, jornalista dos mais conhecidos, já falecido.

1.    Prólogo

 

A orelha do livro faz uma apologia à obra do autor. Sabe-se que foi discípulo de Jorge Amado. Sempre que possível ele mantém alguma semelhança com a obra do mestre. Entre os dois, discípulo e mestre, há uma singularidade, que os separa a ambos — a criação literária. Ubaldo integra a convencionada linha do realismo mágico, seguida pelos autores sul-americanos, Garcia Marques, Miguel Astúrias, Carlos Fuentes, Juan Ruflo, Adolfo Bloy Casares, Júlio Cortazar e os brasileiros Murilo Rubião, José J. Veiga, Dias Gomes e até nosso singularíssimo Guimarães Rosa. Observe-se  também outro viez que diferencia os dois, Ubaldo e Jorge Amado — a erudição. Ubaldo tem sua escritura trabalhada, respira erudição, enquanto Amado parece ligado às tradições dos rituais africanos, ao afoxé baiano, candomblé e outras pendengas e mandingas. É o que se observa, por exemplo, no romance de Amado Dona Flor e seus dois Maridos .

 

2.  Enredo

 

O enredo é simplório, embora à medida que se desenvolve torna-se uma história fantástica. Tudo se passa (assim como nas obras de Jorge Amado), no tal Recôncavo Baiano, onde o impossível adrede acontecer. Tertuliano Jaburu — o personagem principal — cujo pai chama-se Juvenal Peixoto do Amaral Viana Botelho Gomes, por sua vez filho do rico negociante português Nuno Miguel Botelho Gomes, vive e mantém seus negócios herdados na Ilha, o Recôncavo. Sua mãe de criação e madrinha é Iaiá Cencinha, espécie de matrona que administra seus bens, também herdados, mulher forte, muito religiosa, mas rigorosa não só quanto a seus bens, mas na formação e criação de seu afilhado e considerado seu filho predileto, Tertuliano. O pai deste é Juvenal, que teve duas famílias, numa espécie de concubinato consentido, uma das mulheres, a Albina, era sua mãe. Sua filha Belinha, casada com Saturnino, agora vai ter um filho, o rebento será neto de Tertuliano. Por isso, ele está muito feliz pela nascença do rebento, inclusive porque é menino.

 

                É quando ocorre o inacreditável: o menino nasce “de bumbum pra lua”, fato considerado de sucesso, grande felicidade para o rebento. O objetivo de Tertuliano é fazer seu neto sempre feliz, garantir seu sucesso na vida. Para isso vai dar-lhe o nome de santo — Raymundo Penaforte. Outra ideia lhe ocorre: escolher como seu padrinho Zé Honório, homem rico, de conduta ilibadíssima. Para isto faz-lhe uma visita, solicita seu aceite, a que Zé Honório acede de bom grado, comprometendo-se a educar seu afilhado como se filho fosse. A essa altura dos acontecimentos, Tertuliano, já com certa idade, tem a presunção de estar prestes a morrer. É atacado de delírios, num deles encontra-se numa lagoa, nela entra, quando se vê à frente de uma pedra que começa a falar, diz-se ser a pessoa de um soldado holandês por nome Hendrick Beekman. Algo a ver com Manuel Beckman, insurreto da Revolução em 1685, em São Luis-Ma contra a burguesia portuguesa, considerado protomártir da Independência do Brasil? A tal pedra falante diz ser a pessoa de Beekman, morto e transformado em pedra. Então, alucinado vê-se transformado num grandioso albatroz azul, agora se dirigindo em direção ao sol.

 

3.  Nosso Comentário

 

Refletindo de mim para mim, devo confessar que o autor é uma espécie de dublê de Jorge Amado, apenas com uma diferença fundamental: é sua contraparte erudita. Amado sempre foi displicente nas letras, escrevia em jorros e vangloriava-se de seu viés populista, fabulatório representante da cultura baiana, com raízes africanas, decantando  os ritos, rituais e lendas do afoxé, candomblé e quejandos. Ubaldo neste romance, como noutros publicados, segue os passos de seu mestre, embora de forma erudita. Não há negar que ele honra as letras do escritor baiano. Inobstante, em certos momentos, como soe ocorrer neste livro ele abusa de exagerado beletrismo, palavreado gongórico, certo preciosismo de termos e linguagem, como o disposto às páginas 156/7 — uropégio, desgravidado, pousadeiro, avoengo, nímias, ancilar, pluricopada ... — praticamente dispensáveis em obra de peculiaridade supostamente popular, igual a utilizada nos romances de Jorge Amado. Confesso que o livro não deixa de ser interessante, embora de leitura difícil devido a estilística arrastada do autor.

                                              

                                                                Bsb, 15.01.21

MEMÓRIAS  DE  UM   SARGENTO

          DE MILÍCIAS - RELATO  REALISTA

 

                                                         Murilo Moreira Veras

 

      O livro em pauta no Clube do Livro é do autor Manuel Antônio de Almeida, “Memórias de um Sargento de Milícias.” Trata-se de uma narrativa realista que, aliás, contraria a vigente  à época, a literatura romântica.

 

1.    Prólogo

 

Alguns estudiosos acreditam que Manuel Antônio de Almeida, com esse relato, publicado em 1853, tenha iniciado o realismo no Brasil. O realismo que já vigia em Portugal, com os romances inovadores de Eça de Queiroz, Primo Basílio, Crime do Padre Amaro e outros do mesmo jaez publicados pelo autor. Embora a historiografia literária aponte como iniciador do realismo Machado de Assis, com seu revolucionário Memórias Póstumas de Brás Cuba, o fato  de maneira alguma desautoriza o caráter realista da obra de Manuel Antônio de Almeida, nem tanto à altura de um Machado, mas tão realista quanto os romances de Aluízio de Azevedo, como O Cortiço, Casa de Pensão etc.

 

2.  A Trama

Na realidade, o autor escreveu um folhetim, à época muito utilizado pelos escritores, inclusive o próprio Machado. Gênero de largo uso na Europa e copiado no Brasil — hoje reutilizado pela TV. Assim, o enredo de seu folhetim acompanhava o ritmo da continuidade, ou seja, dos episódios sempre terminarem num suspense para serem resolvidos no seguinte. Isto fazia com que o leitor ansiasse pelo resultado e procurasse ler o capítulo seguinte. Explique-se: o cinema utiliza muito essa estratégia, colhida dos famosos seriados de faroeste do passado. É certo que em 1853 o cinema não havia ainda nascido, tampouco a TV. O gênero folhetim foi a fonte de todas essas técnicas posteriores.

O personagem central chama-se Leonardo-Pataca, que acaba passando a segundo plano no correr do relato, à medida que surgem outros nomes, outros cenários e ao tempo em que se dão os imbróglios cooptando a  atenção do leitor. Leonardo é filho do Pataca, que o abandou muito criança. O menino é criado por seu padrinho, que por todos os meios procura protegê-lo, dar-lhe educação e ter uma profissão rentável — por exemplo, cursar advocacia em Lisboa, seu sonho. Ocorre o contrário: o menino vai a cada dia se tornando igual ao pai, malandro, astucioso e, quando rapaz, mulherengo. Mesmo assim, é protegido e até mimado, pelo padrinho e pela madrinha. Suas estrepolias começam desde cedo, em casa, na escola, na igreja. Já homem feito, envolve-se em atrapalhadas, até que cai na mão de ferro do inspetor de polícia, Vidigal, o terror dos flibusteiros, arruaceiros, gatunos e que tais. É preso por vagabundagem, o padrinho o salva. Mas o padrinho-protetor falece e Leonardo vai morar com a madrinha, que vai agora livrá-lo das enrascadas em que se mete.  Até que Leonardo acaba desfeiteando o poderoso Vidigal que o trancafia de vez. Mas logo a Comadre, sua madrinha vem socorrê-lo. Vidigal não a atende. Então, ela procura pessoas conhecidas importantes, como D. Maria, rica senhora, viciada em demandas judiciais, que diz vencê-las todas. A essa altura, Leonardo já está apaixonado por Luizinha, sobrinha de D. Maria, sua protetora. Mas eis que surge José Manuel, velho conhecido, que quer se casar com Luizinha, pretexto para abocanhar seu belo dote, junto à rica matrona. Sem meios, agregado em casa de uma também namorada, Vidinha, e sem emprego, Leonardo perde Luizinha, que acaba se casando com o vigarista. A essa altura, Leonardo está preso e Vidigal não quer soltá-lo de jeito nenhum. E aí vai surgir uma outra personagem a Maria Regalada, de quem Vidigal fora apaixonado no passado, a quem a Comadre recorre, junto com D. Maria. Vão à casa de Vidigal e ousam quebrar a teimosia dele: Maria Regalada pede a soltura de Leonardo em troca de sua pessoa — o que seu antigo fã não resiste. Assim, Leonardo é solto e recebe até uma recompensa, graças à astuciosa Regalada: é nomeado Sargento de Milícias, posto muito cobiçado à época. José Manuel com quem Luizinha é infeliz falece e Leonardo agora oficial casa-se com ela, além de receber toda a herança deixada por seu padrinho. São estas as Memórias deixadas por um Sargento de Milícias.

 

3.    À Guisa de Crítica

 

Ora, não é de crer-se que essas peripécias narradas em episódios constituam uma obra-prima. Mas o livro tem seu valor: trata-se de relato vigoroso e ao mesmo irônico, de como eram os fatos e as ocorrências no século XIX, no Rio de Janeiro, o comportamento das pessoas, os costumes e até o tipo de culinária e divertimentos adotados. Como folhetim, atos e fatos correm soltos, muitos são engraçados, sem implicações aterrorizantes, uma espécie de passatempo em linguagem chã. E o curioso: o autor usa, às vezes, vocabulário arrevesado, quiçá erudito, talvez para compensar que trata da vida de pessoas da classe média e baixa, valorizando-a portanto. Daí talvez seu mérito, enquanto autores mais esnobes cascavilhavam feitos grandiloquentes, para agradar a sociedade alta.

 

4.  Conclusão

 

Achei interessante o livro, quase uma brincadeira de esconde-esconde literário. Reúne fatos comportamentais, retratos da vida da camada menos rica da então capital federal, numa grande e, às vezes, saborosa reportagem feita de intrigas, pensamentos e ações, todas recorrentes dos seres humanos.

 

 

Vocabulário escorreito em Memórias de um Sargento de Milícias

 

 

Olhadas  = espiada

Estralada =   ?

Escrupulizar = ser rigoroso

Mareta =       ?

Atalbafar     =  ?

Aguar          =  molhar, aguar

Serrazinas    =   ?

Farrancho     =   ?

Cambeta       =   pernas cortas

Lambeta        =  ?

Surdir            =  ?

Embarafustar  =  entrar de modo impetuoso

Machacaz       =  ?

Súcia              =  corja, malta

Mocetona        =  moça forte

Salvatério         = ?

                                                                  Bsb, 9.11.20 

                                                                               

                




































A  HORA  DA  ESTRELA — QUEDA EM ASCENÇÃO?

                                              Murilo Moreira Veras

 




Continuamos no Clube do Livro a prestigiar, com a leitura, nossos autores. Hoje — 21.10.20 — discutimos A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. O livro foi editada em 1977, mesmo ano que a autora veio a falecer, portanto sua última obra.

 

1.    Prólogo

 

A autora já é nossa conhecida e, embora tenha vivido pouco, foi prolífica na escritura. Até hoje seus livros continuam explodindo nas livrarias, agora sob o selo da Rocco. Interessante que as edições de seus livros tenham sido oportunizadas por seus filhos Pedro e Paulo Lispector, os únicos herdeiros. Foi sua última obra, em 1977. Sabe-se que Clarice Lispector, nascida na Ucrânia e nacionalizada com meses de idade, sempre se disse brasileira, embora tenha fala de estrangeira, que ela atribuía a defeito (língua presa). Formou-se em Direito e foi amiga de Lygia Fagundes Telles, assim como de Érico Veríssimo, nas suas andanças pelo exterior, com o marido, cônsul ou embaixador. Nélida Pignon, da ABL em suas memórias fala muito da escritora, a quem muito auxiliou nos seus contratempos, inclusive até na hora de seu falecimento no Rio. No princípio, a crítica oficial não lhe fez loas, ao contrário, deu-lhe pouco fôlego, inclusive sem esperança de ir longe por sua maneira de escrever, difícil, intimista e fora da realidade. Dá-se justamente o contrário: a obra literária da escritora teve aceitação inédita e  prospera até hoje, aqui e no exterior, a par de outros best-sellers como os livros de Virginia Wolf, Mary Allcot e Jane Austen.

 

2.    Do Enredo

 

O desenrolar de A Hora da Estrela parece simples, à primeira vista. Narra ou pretende narrar um pedaço da vida de uma migrante nordestina no Rio de Janeiro, moça sem nenhum encanto pessoal, magra, de poucas letras, mas acima de tudo, virgem e boa de intenções. Uma estrela apagada — dir-se-á. É simples datilógrafa de um firma, vive agregada numa pensão com outras companheiras, inclusive uma chamada Glória, que se diz carioca da gema. O primeiro imbróglio no livro é que é escrito por um autor onisciente, que se transforma inclusive em personagem — o leitor assim tem de atentar para a Macabeia e seu criador, também feito titular na narrativa, ambos confundindo-se com o próprio autor, Clarice. É um truque da autora. A medida que se desenrola a estória, o falso autor se trumbica, quer parar a narração, ama e odeia seu personagem ao mesmo tempo. Observe-se que esse truque também foi usado, por exemplo, por Érico Veríssimo, no formidável O Tempo e o Vento. Alexandre Dumas, prodigioso escritor francês do século passado, a propósito de sua obra maior O Conde de Monte Cristo, afirmava que seu verdadeiro autor lhe teria deixado os originais na porta para que ele a publicasse. Pois bem. Macabeia, o nome da personagem, de vida simples e sem qualquer interesse, vive por viver, acaba arranjando um namorado que se chama Olímpico e os dois parecem irmãos, porque nada ocorre entre eles. Com o tempo, ela acaba perdendo-o para sua colega de trabalho, a Glória, que se dizia carioca da gema com quem o tal Olímpico quer se realizar, inclusive quanto a seus anseios, de ficar rico e ser político na Paraíba. Por fim, Glória aconselha Macabeia a melhorar sua vida, consultando uma cartomante. A pobre criatura vai à dita-cuja, que lhe enche de sonhos mirabolantes, a compensar sua vida medíocre, até lhe dá um namorado que irá fazê-la rica, um alemão imaginário chamado Franz. A moça sai da casa da cartomante encantada. De repente, na rua é pega repentinamente por um automóvel Mercedes. Ela cai no calçamento, ainda com vida, tem visões, enfim morre. Ali perto um violinista mambembe toca uma música, enquanto Macabeia expira. Eis o roteiro, às vezes extraordinário, depois, abrupto, espécie de ascensão ao paraíso. Queda em ascensão — dir-se-á.

 

3.  Nosso Comentário

 

Nesta que foi sua última obra literária, Clarice Lispector parece manifestar seu estado de levitação, entre a mística e o realismo. Certo escritor português — Lobo Antunes — afirmou que a escritora nascida ucraniana, mas naturalizada brasileira de Maceió, plagiara escritos da inglesa Virgínia Wolf, embora não tenha apresentado prova concreta — quem sabe por inveja. Os literatos oficiais, às vezes agem assim, fazem-se donos da verdade.

Espantou-me essa lavratura inorgânica de Clarice. Ter-se-á ela própria previsto sua passagem para o Paraíso? A autora sempre se mostrou esquiva, também a esquivaram, de início, das letras. Depois, eis que  reconhecem sua virtuose literária. Era nortista, de Alagoas, de família imigrante, os pais pobres, estudou em colégio público, quem sabe até sofrendo bullying.

A Hora da Estrela é uma obra de leitura difícil, por seu caráter intimista. Talvez seja uma obra-prima, ou simplesmente uma  prima-obra — depende do olho clínico do leitor, ao identificar-se com a história. O livro reflete uma visão telepática e esquizofrênica da própria autora, da vida e do mundo. Disto o sei, mas não me vanglorio, porque não a condeno por algum plágio seu como lhe acoimou, sem prova, o escritor de além-mar. O fato é que Clarice pratica, neste e em quase todos os livros, o misterioso streams of consciousness, o fluxo da consciência, ou o monólogo interior, o solilóquio, como o fizeram muitos outros escritores famosos, verdadeiros ícones, Gertrud Stein, Marcel Proust, Samuel Beckett, Jonh dos Passos, William Falkner e até nosso imaginoso Guimarães Rosa. Trata-se de uma escritura fluídica que deriva da consciência ou do inconsciente, que jorra espasmódica do estro do autor, livre dos ditames ditatoriais da razão e da moral.

Clarice não escreve para nos agradar, parece nos abastecer de ideias negativas, conquanto nos renove a alma com rasgões de claridade, mesmo na escuridão. Prefere nos falar da essência humana, acena-nos para a glória, ao mesmo tempo que nos enfurece, por nos apresentar a lucidez da transcendência, enquanto o mundo se veste de vergonha.

Macabeia — o feminino do Macbeth shakespeariano  ou o lado angelical do Macabeus bíblico? — será ela, a própria Clarice, espécie de Anjo Caído?  O ser humano neste mundo, não passamos todos de Anjos Caídos, invertidos, como a Macabeia, das funções de brilhar? A Hora da Estrela é a hora de nos mostrarmos cintilantes numa existência que se nos mostra controversa? Ora, se na vida não passamos de estrelas apagadas — como a inútil Macabeia — morrendo, nosso estro se reveste de estrela brilhante, a buscar o paraíso transcendental?

De mim para mim, penso que o livro de Clarice nos apresenta a verdadeira face do mundo — uma explosão de lutas, ilusões, mas que, redimensionados por efeitos positivos, faz com que nossa alma, à hora suprema, se torne uma estrela brilhante, que aspira ao Paraíso.

                                                                               Bsb, 6.10.20

 

 

 

 MATURIDADE — UMA EXPERIÊNCIA INTERIOR

 





                                                  Murilo Moreira Veras

 

O livro em pauta é Com a Maturidade Fica-se mais Jovem, o autor o escritor laureado com o Nobel de 1946 – Hermann Hesse. Alemão nacionalizado suiço, prolífico inundou o mundo com romances, como Peter Camenzind (1904), Gertrud (1910), mas ficou mais conhecido pelos livros Sidarta (1922), Lobo da Estepe (1930) e Damian. Foi leitura como que obrigatória dos iniciantes na contracultura, depois por suas obras de cunho budista.

Comentarei o livro algo diferente, seguindo a leitura que fiz com algumas observações, às vezes aleatórias, mas pertinentes ao espírito do livro do sr. Hesse.

Pag. 41 – Sobre o tema Velhice:

...Superar o sofrimento e a morte é tarefa da velhice, enquanto o entusiasmo, o arrojo e a agitação constituem partes do temperamento da juventude. Ambas podem ser amigas, mas falam idiomas diferentes.

Comento: Nem sempre temos condições de superar o sofrimento. É uma arte o fazê-lo. Idiomas diferentes? O sofrimento se apresenta no mesmo idioma, o idioma da dor, compreendê-lo e superá-lo, depende do estado espiritual do suposto sofredor.

Pag. 45 – Esboço (poema):

...Com a maturidade, nos tornamos cada m                                                  ais jovens. Isso também acontece comigo, embora não queira dizer muito, uma vez que no fundo, sempre tive a mesma disposição da mocidade, encarando a idade adulta e a velhice como uma espécie de comédia.

Comento: Não há negar — envelhecer é uma arte. Penso que hoje, no meu caso, tenho mais vigor intelectual e até artístico do que quando fui mais jovem. O jovem é sempre afoito, às vezes não entende muito o que seja o sentido da vida. Já os supostos velhos, encanecidos pela idade e os cabelos brancos — adquiriram mais maturidade intelectual, veem as coisas depuradas, filtradas pela razão.

Pag. 49 — Harmonia entre movimento e repouso:armonHaHH

...A interminável e pantomímica dança da copa na tempestade foi apenas uma imagem, uma revelação dos mistérios do mundo além da força e da fraqueza, do bem e do mal, dos atos e dos sofrimentos.

Comento: Neste capítulo Hesse se refere aos mistérios naturais e espirituais que envolvem a vida e o mundo. Compara-os a uma árvore açoitada pela fúria dos ventos. Nós, humanos, às vezes somos açoitados pelas desventuras, os sofrimentos imprevistos e sofremos sem  termos adquirido a sabedoria necessária para compreender tais mistérios.

Pag. 57 — Sobre a velhice:

... Ser velho é uma tarefa tão bela e sagrada quanto ser jovem, da mesma forma que aprender a morrer e saber morrer são atributos tão valiosos quanto quaisquer outros, desde que o encaremos com o devido respeito  pelo significado e pela santidade da vida. O velho que odeia e teme a velhice, os cabelos e a proximidade da morte é tão indigno de representar sua categoria quanto o ser jovem e vigoroso que a própria profissão e sua atividade diária, delas tentando esquivar-se.

 

 Comento: Hesse nos faz um relato do que acha que seja a vida dos anciãos. Assegura-nos a experiência que os protótipos dos jovens e dos velhos, às vezes, têm conceitos diferentes. Há jovens que se acham velhos porque desfiguraram sua juventude. A recíproca também é verdadeira: há anciãos que não reconhecem sua própria condição e se passam por novos, ou querem fazê-lo, o que os tornam ridículos no convívio societário.

Pag.65 — Dia Cinzento de Inverno (poema):

... À entrada de um novo espaço vital, o átrio da velhice, um velho vos deseja os dons que a vida tem a nos oferece nessa etapa: maior independência da opinião alheira, maior tranquilidade, insensibilidade às paixões e imortal devoção ao eterno.

Comento: O átrio da velhice, às vezes, é dispare, ao qualificar os avançados na idade. Uns se deixam enrodilhar em paixões, o que os tornam ridículos. O famoso caso do Crime da Mala, ocorrido no século passado em São Luís, Ma, é típico. O vetusto Desembargador Vergueiro cai de paixão por uma “rapariga”, com ela se relaciona, mas é por ela atraiçoado. Louco de ciúme, maquina o crime: tira-lhe a vida e em pedaços, coloca-a numa mala previamente preparada. O crime abalou a cidade e integra a lista de assassinatos  mais sinistros ocorridos nos arquivos criminais.

Pag. 103 — Um chamado do Outro Lado das Convenções:

... É inegável que meus textos contêm, aqui e ali, uma fagulha, um esboço das nuvens e filigranas de um tradicional retábulo, detrás do qual se imagina uma ameaça apocalíptica; (Pag.105). ... A vida tem um sentido? Não seria melhor dar um tiro na cabeça?

Comento: Parece ser este um dos principais motivos que levam as pessoas ao suicídio  — a falta de um sentido da vida. Nosso Hesse parece-me algo tergiversativo quando lhe cai no colo essa indagação do “rapaz desconhecido”. Suas elucubrações são ambíguas, fogem do sentido, até nos embaralham a mente. Ora, o sentido da vida é a vida ter sentido, é a pessoa crer na existência e fazer dela uma direção. O ateu ou o agnóstico certamente não tem sentido da vida. Ele vive simplesmente por viver — é a sartriana filosofia  de vida de o autor de “O inferno são os Outros.”

Pag. 113 — Experiências Outonais:

Comento: As ditas experiências outonais do autor estão eivadas de tristeza, espécie de consolo e exemplo, como ele refere. Não afinam com meu gosto.

Pag. 149 — Epílogo (comentário final de Volker Michels sobre o autor e seu livro):

... “O objetivo de todo esforço poético seria a semelhança, no ocaso da vida, com Hermann Hesse. Sem embargo, a intimidade com a sua vida e as suas realizações nos dispensa da leitura de sua obra, bastando apenas um olhar, pois a identidade da pessoa escrita se confunde com seu próprio semblante. Se não o lêssemos, no entanto, na realidade não o veríamos.”

 

NOSSO COMENTÁRIO FINAL

 

O livro do sr. Hermann Hesse serve-nos como espécie de laudatório epifânico da velhice, enquanto desfia, também, as mazelas da decadência física do ser humano. Como não bastasse, em estilo edênico, o Nobel alemão naturalizado suíço compara a decadência física do homo sapiens, sapiens ao desfibramento outonal da natureza.

Ora, essa espécie de cogitur ergo sum descartiano do envelhecer humano, a despeito do agir perfunctório da existência, não nos reacende a sede de viver, ao contrário, nos abate devido a transmissão linear de todos os nossos achaque. Na realidade, não somos musgo, arbusto, árvore ou instrumento da natureza que se abate no seu definhamento. A comparação pode configurar certa  estilística primorosa do autor — mas dela pensamos que só nos destila nostalgia à vida, todo o vezo negativo da velhice. Ou seja: nos oprime.

A essa altura dos eventos, o de que precisamos é de ânimo, solfejos de esperança, ânsias de criatividade e imaginação sobre a vida e o amor — não de lamúrias existenciais, louvação ao passadismo do qual somos, agora, meros peregrinos.

                                                             Bsb, 18.09.20

 

 

 

 

 


 

OS DEMÔNIOS DE GARCÍA MARQUEZ

                                    Murilo Moreira Veras

               

              

               Examinamos hoje o livro de Gabriel Garcia Marquez Dos Amores e Outros Demônios. Mais um espécime das diabruras literárias do autor de Cem Anos de Solidão. O autor foi prêmio Nobel de 1982 e é badalado pela crítica literária esquerdista como um dos criadores do chamado  realismo fantástico, na América Latina, ao lado de Mario Vargas Llosa e outros.

 

1.    Prólogo

 

Depois do sonolento Cem Anos de Solidão, que ninguém consegue ler, o autor retira de sua cartola mágica essa história cabulosa Dos Amores e Outros  Demônios, proveniente de fatos ocorridos nos fins do século XVIII, em pleno vice-reinado da Colômbia — terra natal do autor. Narra-se acontecimento inaudito de uma marquesinha menina, cujo cabelereira mede 22m e 15 cm em virtude de promessa, enamora-se de um vigário ligado à Inquisição, ela de nome Sérvia Maria de Todos los Angeles, ele Cayetano Delaura. A moçoila é filha de Dom Ygnacio de Alfaro y Duefias , Marquês de Casalduera e sua primeira mulher Dona Otalla de Mendoza. Um dia a menina é mordida por um cachorro raivoso e a partir desse fato, aparentemente desimportante, se desencadeia uma  série de outros horripilantes, para toda aquela comunidade. O autor cria uma situação de suspense, mais ou menos tenebrosa, envolvendo inclusive a Inquisição, seu representante máximo local, o bispo da diocese Dom Toríbio de Carceres y Virtudes. A menina foi criada e cresceu no convívio de escravos e orixás, por negligência materna, até falando a língua dos negros cativos, tinha modo de ser tão misterioso que “... parecia uma criatura invisível.” Os personagens criados pelo autor realista fantástico têm nomes esquisitos e agem fantasmagoricamente. Dominga de Adviento é uma índia feiticeira com fama de ser “remendadeira de cabaços e aborteira” — dizia ter a receita de Sto. Huberto. Abrenúncio de Sã Pereira Cão — médico mais notável da cidade, é judeu e agnóstico, por isso odiado pela Inquisição, mais já ressuscitou morto. Judas Iscariote — escravo comprado por Bernarda Cabrera, com quem desafoga sua sexualidade, apesar de ser casada em segundas núpcias com o Marquês de Casalduera. Encarregado pela Inquisição de exorcizar o demônio que dizem ter possuído a menina, o vigário Cayetano Delaura acaba loucamente apaixonado por ela. Descoberto o suposto vilipêndio, praticado pelo padre e todas as ocorrências objeto de cenário pavoroso criado pela Inquisição, a marquesinha Sérvia Maria acaba mesmo nas garras da Santa Inquisição, isto é, queimada viva e o padre que prevaricou, enviado para lugar desconhecido para cumprir pena.

 

2.    À Guisa de Crítica.

 

Com essa história — ou estória, segundo nosso Guimarães Rosa, este, criador do realismo fantástico na literatura brasileira — García Marquez na realidade quer imputar, ao lado de outros detratores literários, os perigos que o mito da religião impinge ao povo, ou seja, reverbera o dito de Marx de que a religião é, sim,  o ópio do povo. Aproveita então tudo que há de pavoroso e  sinistro no período de vigência da Inquisição da Igreja Católica. Mistura mitos e crenças de feitiçarias, problemas psicopatológicos de pessoas, ignorância, fantasias, pobreza material e espiritual e faz de tudo isso um verdadeiro caldeirão de perversidades, de certo modo incriminando, ao final, a própria religiosidade, a transcendência que pode superar o exercício abusivo da imanência,  com foco apenas na matéria bruta. Devido essa atmosfera opressiva criada pelo autor, seu romance não nos oferece uma leitura agradável, regeneradora, senão o contrário, sugere ódio, prevaricação, cenas brutais como as de demonização da menina mordida pelo demônio. Veja-se, por exemplo, como Shakespeare, na peça Romeu e Julieta trata o romance de amor entre os protagonistas, que, apesar de trágico, o final transcende a própria realidade. Ou o Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco e, ainda a obra-prima de Honoré Balzac, Eugênia Grandet.

 

3.  Conclusão

 

Depois do belo e edificante A Catedral do Mar, lê-se essa estória nauseabunda  que nos narra o genioso García Marquez  não deixa de ser um desperdício, quando podemos nos deliciar com melhor e mais edificante literatura, até mesmo que nos alivie e inspire o bem, o amor e a verdade, fontes que nos animam o corpo e a alma por esse período de vandalismo pandêmico gerado por um simples vírus de origem gripal.  

 

                                                                 Bsb, 13.08.20

 

 

 

O LIVRO DOS ABRAÇOS


                                          
                           Murilo Moreira Veras


O Clube do Livro agora rege-se sob outras regras — o degredo da Pandemia. Tornamo-nos virtuais todos, mas não desistiremos. O livro examinado é O Livro dos Abraços, o autor o escritor uruguaio Eduardo Galeano. Sob nossa ótica o título mais adequado seria O Livro Socialista dos Abraços. Isto porque se trata de um alfarrábio socialista,  de exortação aos supostos heróis da revolução cubana e dos movimentos revolucionários, a invasão da esquerda no continente sul americano.

1.    Ab initio

Não se trata de um livro com começo, meio e fim, mas uma cornucópia de historietas, narrando pedaços da vida de supostos heróis e críticas acerbas ao militares e a resistência aguerrida contra a invasão do comunismo. Como se sabe, os mitos gerados pela Revolução Cubana de Fidel Castro, Che Guevara e seus asseclas disseminou-se por toda a América Latina. O sr. Galeano não fez outra coisa do que esmiunçar fatos, atos e picuinhas de amigos seus e companheiros de luta. E ele fez isso em cerca de 270 narrativas curtas, uma página para cada assunto, verdadeiro fôlego de gato, a levantar picuinhas desse ou aqueloutro militar ou direitista reacionário, apontando maus tratos,  indignidades e  brutalidades praticadas pelos milicos — que ele alcunha de carrascos e trogloditas.

2.    À Guisa de Crítica

Nossa impressão sobre o livro do sr. Galeano, a exponho nas pequenas observações como seguem:

Pag. 86 – Teologia/1: Nosso Galeano socialista faz blague com a Igreja e os Mandamentos. É bom não brincar com as coisas que não conhece ou conhece mal;
Pag. 87 – Teologia/2 : Amigo escritor, não faça graça, não é poético falar o nome de Deus em vão. Aliás, nada sabe sobre a fé, nem absolutamente nada sobre religião, por isso se compraz em falar do Criador!!!
Pag. 89 -  Teologia/3: De novo o autor opina sobre o que não sabe, a título de errata, quer modificar o Antigo Testamento — Minha resposta é  curta : Deus é Aquele que É e Será para Sempre. Ele não fez Adão de burro. Admoestou sua criatura de que Sua intenção era torná-lo um protótipo humano da transcendência. Adão e Eva  O desobedeceram e foram então expulsos do Paraíso, vivendo doravante às suas próprias custas. Galeano blasfema contra Deus e este senhor não tem o direito de difamar os supremos desígnios do Criador. Escuso-me a continuar o assunto, pois estou jogando pérolas aos porcos.
Pag.143 – Cultura do Terror/4 : Nesta historieta do   comportamento do padre na confissão de um menino é um absurdo. Esse padre só podia ser um retardado mental. Não sei onde o autor foi tirar tal ideia.
Pag.164 – Televisão/4 : Sobre a virtualidade da mídia, que não fala diretamente às pessoas, mas através de uma tela, o autor tem razão. A TV devassa as pessoas, não resolve nada.
Pag.156 – Historieta do professor Miguel Brun que mostrou aos alunos a percepção do perfume, por eles enganadas: É isto o que ocorre com o socialismo, te obriga se unir com os outros, repartir teu ganha-pão com quem não trabalha e te proíbe de pensar diferente. O socialismo é invisível, convence que a união faz a força, mas é a mesma força que te escraviza ao Poder.
Pag. 239 – Celebração da amizade/2 : A historieta em que o filho de uma senhora morreu, enquanto os funcionários municipais caçavam pombos e ligavam para a morte de seu filho: É um dos melhores contos do autor.
Pag.241 – Gelman : Um pai militante tem seus filhos sequestrados por militares argentinos e foram assassinados. O autor pergunta: Se Deus existe, por que fica de fora? Não será Deus ateu? :  Respondi: Um dos maiores pecados do ser humano é blasfemar contra Deus. O problema dos humanos é se revestirem de sábios, quererem desvendar os desígnios de Deus. Quem tem o direito de fazê-lo, pobres e indignas criaturas?
Pag.243 – Profissão de fé : O autor faz  recriminação por não passar de uma partícula de pó no universo, diz-se esquecido de tudo inclusive de Deus  — Respondo: Por causa de sua cegueira mental e filosófica, baseada no ateísmo, ele não enxerga o que o Universo diz. Ele não consegue compreender que Deus, o Criador, respira em todo o Universo até nas tolices que ele está escrevendo contra Ele.
Pag. 245 - Cortázar: Neste texto há um erro grosseiro do tradutor, o sr. Eric Nepomuceno, celebrado literato pela mídia esquerdista — eis o erro: “.. Tinha deixado-o anão.” – Sr. Nepomuceno, pronome oblíquo não pode vir depois do particípio passado – é um erro, inclusive porque gera um cacófato.
Pag.255 – Celebração da coragem/1 : Historieta sobre Gabriel Caro vendo companheiro seu, um suíço, ser metralhado, lutando pelos ideais socialistas. O suíço ao morrer grita: Viva Bakunin! — Galeano alardeia o comunismo, como uma maravilha de regime, a redenção da humanidade. Enaltece Bakunin, Mikhail Bakunin (1814-1876), na verdade filósofo ANARQUISTA.
Pag. 260 – Celebração da Coragem/4 : Sobre a suposta valentia de Allende, dizem metralhado pelos milicos fascistas, trogloditas, e quejandos — Galeano escreve sobre a morte do grande salvador da pátria chilena, Allende, sua coragem em favor dos revolucionários cubanos, chilenos, uruguaios, contra os assassinos militares. Pergunto: quem está com a razão, militares defendendo seus países ou os revoltosos tentando implantar o comunismo na América Latina?
Pags. 262/3 – Um músculo secreto : A estória de Fico Vogelius que financiou a revista revolucionária Crisis, criada pelo autor. Fico foi trucidado pelos milicos argentinos. — No elogio à memória do amigo, o autor se vangloria de os revolucionários serem solidários e criativos, enquanto os que pensam diferentes são ambiciosos, golpistas, reacionários e imbecis. Para ele patriotismo é o amor à ideologia marxista. Pergunta indiscreta: o autor leva às nuvens o caráter dos militantes esquerdistas, por que não diz nada sobre outro grande militante, desta feita católico, jornalista e escritor, o francês Emmanuel Mounier, fundador da revista Esprit  — defensor dos valores cristãos, contra o comunismo e o nazismo nos anos 1930/35?
Pag.267 – As impressões digitais: O autor faz um elogio literário de si próprio — Ás vezes, Galeano consegue dar um abraço na beleza e sonhar e com a fé.
Pag.269 – O ar e o vento: Pequeno elogio ao vento e o ar que o comanda — Essas palavras de Galeano faz-me recordar da obra prima de um grande escritor nosso, Érico Veríssimo, que nunca foi revolucionário, mas, sim, um bom ficcionista. Sua obra O Tempo e o Vento narra a história do Rio Grande do Sul, com personagens marcantes. Que diferença de visão!
Pag. 270 – A ventania: O autor se autoelogia, dizendo-se  ser despido, dono de nada, de ninguém, nem das certezas dele mesmo e afirma: “sou minha cara contra o vento, a contravento, e sou o vento que bate em minha cara.”

3.    Conclusão

Tomo as últimas palavras do sr. Galeano como deixa para dar minha impressão final sobre seu livro, também a título de crítica. Ei-la:

Minha Contradita Literária
O vento assovia lá fora, enquanto o tempo se desenrola na linha da Vida. Não estou despido, os meus sonhos me vestem de esperanças. Sou dono de mim, enquanto a presença do outro me acompanha também os passos, nessa caminhada de ação e pensamento. Os milagres da vida me norteiam à direção mais correta possível. O vento, os desacertos das tempestades, compreendo-os e minhas pegadas na praia que deixem suas marcas, seus desenhos me contentam, aproveito-os para aumentar minha Fé. O vento não me fustiga o rosto, alivia-me dos desconcertos e virtualiza minha melhor percepção do Ser-no-Mundo.
                                                              Bsb, 19.06.20








ESCRAVIDÃO  SEGUNDO  

LAURENTINO  GOMES


                                      Murilo Moreira Veras
                                   

Analisamos hoje no Clube do Livro Escravidão do escritor, dito especialista em história, Laurentino Gomes, autor de vários best-sellers anteriores. Neste — o autor se vangloria de ter viajado a vários países, África, Estados Unidos e outros, pesquisando sobre o assunto, escravatura, hoje, envolta em mistério. O autor pretende desvendar esse escabroso mistério, revelando-o ao leitor desavisado e aterrorizado com o tema.
1.    Prólogo

O sr. Laurentino Gomes se limita escarafunchar tudo que diz respeito à escravatura, especificamente aquela mantida por supostos cabeças, os mantenedores do tráfico nefando internacional, a organização, o porquê de sua ocorrência e mantença durante cerca de três séculos. O autor pretende dissecar o assunto em três volumes — este o primeiro deles, que abrange do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, o suposto grande líder dos insurgentes no Brasil. É um catatau de quase 480 páginas, inclusive com figuras, retratando os horrores pelo pincel investigativo de artistas famosos, como Paes Meneses, Rugendas, Debret, Calixto, Parreiras e outros. O resultado desse espetáculo dantesco, utilizando fontes e escritos mequiavelicamente escolhidos pelo autor, probantes de suas análises e elucubrações — é o que se vê e tem-se em mãos para ser lido. Haja paciência do leitor.

2.    A Pesquisa, Fontes & Análises

Ao que tudo faz crer, o autor embebeu-se da estratégia mais atual de pesquisa, seja em ciência, economia, religião e historiografia — toma por modelo Yuval Noah Harari, aquele autor deletério de Sapiens , Homo Deus e outras barbaridades à égide dos famigerados best-sellers. O método: fontes concordantes de suas ideias e alucinações ideológicas. Para esse tipo de pesquisa, não há contraditas. Nosso visionário pesquisador reuniu em seu 1º catatau todas as fontes possíveis que concordam com ele e diz que gastou nisso seis anos de pesquisa intensa. Uau! Interessante. Muito barulho para matéria tão árdua. Narra desde o começo da escravatura, os locais africanos de onde partiram os navios negreiros, o formigueiro humano que era a África, os africanos envolvidos em lutas tribais esganiçadas, as viagens das caravelas pelo célebre e temível mar tenebroso, o transporte dos cativos em travessias nefandas, maltratados, postos a ferro como animais caçados. Depois, vendidos como escravos, para praticamente todos os países, Inglaterra, Estados Unidos, Antilhas — mas, e aí está la grande boutade, a grande sacada do autor, o problema todo foi a escravidão no Brasil e quem foi o grande vilão dessa famigerada história? Portugal — os portugueses, os que mais se aproveitaram da escravatura. E pasmemos todos nós, brasileiros miscigenados todos, também participamos do vilipêndio, tiramos proveito do butim escravagista. Pe. Vieira, o humanista, teria afirmado no século XVII: O Brasil tem seu corpo na América e sua alma na África e outro jesuíta como Vieira, Pe. André João Antonil, teria dito: Os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho. Estava perfeitamente justificada a escravidão no Brasil. E continua as escavações esquizofrênicas do autor, agora levantando os horrores praticados na Colônia Portuguesa, a Terra de Santa Cruz, pelos senhores patriarcais e seus feitores. E se acoberta em livros como, Casa Grande e Senzala, a obra-prima do sociólogo Gilberto Freire e quejandos — que, por sinal, nunca li e não posso afirmar nada. Outros indicados que, para o autor nada tinham de grandes exploradores que expandiram o território colonial, mas, na realidade não passaram de bandoleiros que massacraram índios e cativos africanos — os Bandeirantes. Claro que só louco há de negar isto, tais fatos — os Navios Negreiros, na poética vigorosa de Castro Alves: Deus, ó Deus, Onde estás  que não respondes, em que sol, em que estrela tu t’ escondes. O problema é que o sr. Laurentino adota um sistema de pesquisa e apuração de um lado só, suas explicações não têm contraditas, baseando-se em fontes históricas selecionadas para reforçar seu raciocínio. Em resumo: ele não respeita o outro lado da questão, o status-quo da época. Outro ponto: o autor aponta a religião católica e os religiosos, não como pastores, mas, da maneira como ele os trata no livro — são verdadeiros trapaceiros, apoiam a escravatura e ainda a justificam nos Evangelhos.

3.    À Guisa de Crítica

Não vamos desqualificar o trabalho do historiador best-seller Laurentino Gomes. Longe disso. Inobstante, não podemos aceitar o método que adotou. Por isso, propomos deixar claro alguns pontos do livro, que, a meu ver,  no mínimo, exorbitam as funções de um historiador criterioso:

a)   afirmação de que o Maranhão recebeu o maior contingente de escravos; ora, historiadores maranhenses Mário Martins Meirelles e Jomar Morais não confirmam isso;
b)   não há provas convincentes de que os bandeirantes praticavam atos de vandalismo como diz o autor, talvez alguns o foram seguindo a cultura da época, mas não se pode generalizar;
c)    a figura de Pedro Álvares Cabral é execrada pelo autor, teria praticado massacre em Calcutá, depois que descobriu o Brasil — pesquisa na internet comprova que o fato ocorreu, mas devido os mulçumanos terem descumpridos acordos firmados, não  vendeta como insinua o autor;
d)   o autor nutre o conceito de que os portugueses eram exploradores inveterados da África desde 1662, lucravam com o tráfego negreiro e a venda dos escravos sempre abasteciam os cofres da Coroa Portuguesa, entretanto à pag. 157 afirma que a escravatura era prática usual entre os africanos, antes da chegada dos portugueses, portanto o procedimento dos lusitanos não seria assim tão absurdo;
e)   ele também cita que o Pe. Antônio Vieira,  defensor inelutável do indígena, teria sugerido em sermão trocar sua mão-de-obra pelo escravo africano — na realidade a medida de importação de escravos africanos para a exploração canavieira foi aprovada pela Câmara de São Luís, em 1772;
f)     aliás, a mão escrava, embora moralmente injustificável, beneficiou o Maranhão, dando à Capitania, excepcional lucro — é o que informa o conceituado historiador maranhense Mário Martins Meirelles (História do Maranhão, pag. 194/96), tão importante  que só foi  extinta em 1778 e seus últimos espólios perduraram até 1914;
g)   às páginas 186/7 o autor procura sempre atacar a Religião Católica: os cristãos novos, aqueles judeus convertidos,  para ele  os maiores auxiliares do tráfego negreiro na África e assinala à pag. 187 que, em 1546, havia 200, como lançados, isto é, pessoas deportadas de Lisboa que se tornavam buscadores de escravos na Guiné, tendo eles fundado um dos principais portos de embarque de escravos do Golfo de Guiné para o Brasil (secs. XVI e XVII);
h)   à pag. 198, sua crítica é tão aleivosa e descabida, que chega a comparar os ritos sagrados da Igreja —  que sabemos de tradição milenar — com as mandingas, talismãs e outros itens de feitiçaria dos africanos;
i)     já à pag. 199, o historiador confunde religião com política e falaciosamente insinua procedimento ganancioso da parte dos recém-convertidos congoleses à Igreja por nomearem cargos junto à Santa Sé — um tal Henrique, filho de D. Afonso do Congo, que se tornou Bispo, ora, afinal   Dom Afonso poderia ter agido em boa fé, por ser realmente um homem religioso;
j)     à pag. 214, mais uma insinuação malévola: Maria Santíssima seria a salvadora da alma dos escravos convertidos, mesmo sob essa ínfima condição — para atestar o fato cita Pe. Vieira, maravilhado com a proeza de Deus, isto é, Deus permitindo a escravidão;
k)    à pag. 227/8, outro absurdo: baseando-se no sr. Luiz Vianna Filho (O Negro na Bahia, pag.41), afirma que São José (a imagem e o próprio santo) concordava com o tráfego de escravos africanos para o Brasil, pois, caberia a ele ... “velar pela sorte das embarcações que rumavam para a África em busca de negros para serem escravizados e cristianizados pelo batismo” — um verdadeiro descalabro;
l)     à pags.242/245, uma contradição: se os britânicos se tornaram os maiores traficantes de escravos, com a criação da RAC (Adventurers of England Trading) em 1660, por que passou depois a ser crime para os mesmos ingleses traficantes, quando o lucro era enorme?
m)  às pags. 346/350, capítulo A Cruz e o Chicote, o autor quer se redimir perante a Igreja depois de acusar padres e frades de se aproveitarem da escravidão, em troca de batismo — a saída honrosa neste final do livro é elogiar a Religião, sem contudo esclarecer que vários Papas condenaram o regime escravocrata através de documentos pontifícios, advertindo o clero sobre a ignomínia da escravidão  (ver documentos da Associação Cultural MONFORT).

4.    Conclusão

Escravidão — resultado de uma grande pesquisa do autor, neste 1º volume, reúne informações interessantes sobre esse tenebroso assunto, que é a  escravatura no Brasil e no mundo. Volume copioso, inclusive com clichês e pinturas famosos alusivas. Leitura escabrosa, às vezes e outras com minudências até mesmo desnecessárias. A linguagem é escorreita, o autor luta por extrair o mais possível daquilo a que pretende chegar — fantasiar os fatos. Não concordo com muitas de suas conclusões, como assinalei acima, muitas delas realmente blasfêmias, outras por desconhecimento total dos ritos da fé católica.
                                                                                Bsb, 23.02.20

  





               A JANGADA DE PEDRA SURREALISTA

                                 
                            Murilo Moreira Veras


O livro em discussão hoje é A Jangada de Pedra, o autor o celebrado escritor laureado com Prêmio Nobel de Literatura de 1998 — José Saramago.
1.    Prólogo
Algumas explicações para melhor — ou pior — compreensão desta obra do escritor português. O livro é cifrado, porque composto no estilo chamado surrealista, isto é, segundo os cânones do surrealismo, corrente literária nascida na França na década de 1920. O baluarte foi o Primeiro Manifesto Surrealista, de André Breton, em 1924, movimento inclusive que teve o epíteto de literatura nonsense, isto é, sem sentido. Essa maneira de escrever espalhou-se pela Europa e América Latina. No Brasil, temos o Macunaíma de Mário de Andrade e autores como Murilo Mendes, Mário Quintana, Cabral de Melo Netto e Érico Veríssimo (Incedente em Anatares). Entre os latinos: Jorge Luís Borges, Garcia Marquez (Cem Anos de Solidão), Mário Vargas Llosa, Isabel Alende, Julio Cortázar, Juan Rulfo e outros. Parece que o autor se consagrou com esse estilo.
2.    Enredo, a título de

A rigor, não há propriamente uma trama escorreita. O autor adora confundir o leitor, na verdade parece escrever assim por achar que todo leitor é um nefelibata literário. Contam-se cinco personagens. Joana Carda, que inicia a história, risca o chão com uma vara de negrilho e o chão se abre. Joaquim Sassa ao norte de Portugal joga pedras no mar, a mais pesada se perde de vista. Pedro Orce, farmacêutico espanhol sente a terra tremer, embora ninguém mais o sinta. José Anaíço, professor português, sem explicação lógica, é seguido por estorninhos que o acompanham para onde ele se desloca, Maria Guavaira é amante de Sassa, mas fornica com Orce, junto com Joana, ambas ficam grávidas dele, embora ele, o pai, seja um homem já velho. Então vem a razão principal dos fatos exóticos acontecidos: a Península Ibérica, formada por Portugal e Espanha começa a se desprender do continente europeu. De repente, desgarrada ela viaja pelo oceano  a  dentro, as pessoas cada uma delas a ter visões estapafúrdias sobre a extraordinária ocorrência. Dai em diante é um salve-se quem puder, o pobre do leitor, embasbacado fica a ver navios, que parece ser isto mesmo o que o sr. Saramago quer. Dir-se-á que seja o leitor também surreal, a navegar nas estripulias estilísticas do autor.

3.    Nosso Comentário

Assim sendo e sob o fascínio do autor laureado, nós, pobres leitores ficamos no mato sem cachorro, enleados na trama, inclusive devido outra armadilha utilizada pelo escritor, o enxerto de outros textos no contexto do livro, explicações e informações até mesmo aleatórias que permeiam todo a narrativa. Sem falar no uso e abuso de outros badulaques, como a falta de parágrafos, diálogos repentinos e sem explicação, tornando a leitura uma verdadeira esquizofrenia. Depois de muito tratos à bola, concluímos que o nosso laureado talvez queira  fazer uma crítica tanto à arrogância das nações europeias quanto a Portugal e Espanha por não se integrarem bem à União Europeia, ou também por serem ambos desprezados  devido terem cultura e historiografias diferentes. Dai o título do livro — A Jangada de Pedra, o composto da  Península Ibérica não passa daquela frágil embarcação engendrada de pedra, subitamente despregada do domínio europeu, agora vagando no oceano do mundo, pedindo socorro. A ocorrência gera as mais absurdas consequências às pessoas, coisas e animais, até um velho — Pedro Orce, decrépito, engravidar duas raparigas ainda na flor do atavio romântico e da volúpia carnal. É isso? Também não posso te garantir meu caro leitor, pois não estou absolutamente certo do que ele, o escrevinhador lusitano laureado, quis dizer com este estrambótico romance.
Que me venham agora o Ulysses de Joyce e o Macunaíma de Mário de Andrade que estou pronto para degluti-los como antropófago literário!
                                               
                                                                       Bsb, 2.12.19



               21  LIÇÕES  PARA  O  CAOS
                                                  


                  Murilo Moreira Veras
                     

O livro em discussão, hoje, é o best-seller do sr. Yuval Noah Harari , 21 Lições Para o Século 21— cujo título, na minha ótica, deveria ser 21 Lições Para o Caos.
Li o livro deste senhor e fiquei esperando que os últimos capítulos pudessem me trazer alguma informação, algum conteúdo relevante que pelo menos justificasse a utilidade do livro: 21 lições para o século 21.
Tudo em vão, cada capítulo que lia só encontrava vezos negativos, afirmações caluniosas, verdadeiro festival de asneiras, propostas bombásticas, desconstruções de conceitos — de tal forma são absurdos os dados e a profusão de aleives que o autor apresenta em sua pesquisa que chega a nos parecer que ele não é sadio da mente. O que aconteceu com esse tão badalado pesquisador, verdadeiro guru futurólogo? Sim, porque ele lança farpas  a torto e a direito, não respeita nada, sociedade, nação, religião, humanismo, ética, moral — nada.
Em contrapartida, em todas suas  elucubrações, notam-se desacertos históricos, contradições, o uso e abuso de pesquisas baseadas em fontes inautênticas, para não dizer falsas, por serem de cartas marcadas — isto é, de autores concordantes com suas ideias, que o autor é esquerdista de carteirinha, aceita como verdade absoluta tudo que se refere a globalismo e toda essa mixórdia atual que vem seduzindo os incautos: Nova Era, Aquecimento global, ecumenismo ecológico e movimentos como LGBTT, transexualismo, teoria do gênero, campanha abortiva. E por que não a “Universalização da Amazônia”?
Neste meu comentário, pretendo fugir um pouco de meu habitual roteiro de trabalho. Prefiro indicar, a seguir, o grau de perversidade que o livro desse senhor judeu alcança:
a)   as tecnologias, biológica e da informação dominarão o mundo e o gênero humano foi enganado pela farsa da narrativa liberal;
b)   o nacionalismo, a religião e a cultura são responsáveis pela hostilidade do mundo, devem, portanto, serem erradicadas em favor do globalismo;
c)    o gênero humano deve estar à altura dessas transformações admiráveis, basta aceitar todas as inovações futuras e pertencer ao “Admirável Mundo Novo”, os seres humanos comandados pelo  Big Brother;
d)   os processos globais são complicados, devem ser resolvidos globalmente, pois tudo o que nos foi ensinado pela civilização cristã e pelo nacionalismo não passa de uma farsa;
e)   vivemos numa era de perplexidade, todas as narrativas antigas ruíram e não há perspectiva positiva para o futuro, se não abraçarmos a união universal e sermos escravos de máquinas maravilhosas, embora não tenham moral, nem coração — aliás, coisas inúteis para o humano, como a filosofia, a educação, o patriotismo;
f)     finalmente, o lembrete sapiencial: sejamos humildes e aceitemos sem hesitar a ideologia futurista como nossa salvação, enterrando o passado que infelicitou a humanidade. Pois:

“No futuro próximo, algoritmos poderão completar o processo, fazendo com que seja praticamente impossível que as pessoas observem a realidade por si mesmos. Serão os algoritmos que decidirão por nós quem somos e o que deveríamos saber sobre nós mesmos.”

Eximo-me de atacar minuciosamente cada uma dessas proposições pela absurdidade contida em cada uma delas. É por assim dizer “dar pérolas aos porcos”. Nosso futurólogo demonstra absoluta incoerência em suas afirmações, apresenta-nos dados falaciosos. Desmoraliza a ética e a filosofia e desconhece os ensinamentos do Evangelho, sendo apócrificas suas reflexões. Demonstra ser um historiador preconceituoso e sem escrúpulo, quando examina os fatos, fazendo vista grossa às verdades consagradas pelo tempo, como foi o caso da renovação promovida pelo cristianismo no mundo, inclusive pelos inúmeros benefícios que implantou e dos quais se beneficiaram pessoas, regimes, instituições, responsáveis pela transformação do mundo e das mentes.
Essa linha de pensamento vergonhosamente abraçada pelo autor é uma ignomínia, pois as tais máquinas maravilhosas que salvarão a humanidade, podem ser sua própria ruína, devem ser aceitas com cautela. É o que disse inclusive o guru da futurologia astrofísica, Stephen Hawking, apontando defeitos à chamada Inteligência Artificial – IA, tão apregoada no livro.
Outro raciocínio falacioso do autor é quando despreza os princípios morais, éticos, bem como a concepção dos valores pelos quais devem se reger as sociedades e estruturar uma verdadeira nação. O ser humano não é uma máquina, tampouco o resultado de uma suposta seleção natural, construído e sustentado pelas leis do acaso, se assim o fosse  não passaríamos de trogloditas que se elevaram um pouco acima da animalidade com o crescer de sua inteligência. Ora, tem-se já hoje que a tal seleção natural é uma falácia, a despeito das elucubrações fantasiosas de Richard Dawkings e seus ingênuos seguidores, o autor inclusive, todos apoiadas em Darwin. Cientistas e pesquisadores já demoliram a farsa da evolução natural, por imprópria, inócua, impossível. Basta consultar o livro A Caixa Preta de Darwin  de autoria do bioquímico americano Michael J. Behe.


O autor, judeu apócrifo, pois nega inclusive os preceitos de sua própria origem, é controvertido e totalmente ignaro no que se refere à história da humanidade e nela a influência incomensurável do cristianismo.   Seria recomendável lembrar ao autor algumas das realizações advindas do cristianismo:

- elevação da dignidade da pessoa humana
- oposição ao aborto, infanticídio, abandono dos filhos, suicídio, nos primeiros tempos à disputa mortal dos gladiadores romanos;
- introdução dos hospitais no mundo no século IV, em 325 construção de asilos, em 369 os hospitais, daí até hoje termos nomes como Hospital São João, Santa Casa de Misericórdia, Hospital Santa Lúcia, etc;
- abolição da escravidão das mulheres, antes sem dignidade e poucas eram livres;
- punição aos homens por adultério, ao traírem as esposas, a mulher inclusive adquiriu liberdade religiosa;
- em 390, graças ao empenho de Ambrósio, o imperador
Teodósio foi processado pelo trucidamento de 7 mil pessoas sem justificativa — a cominação passou a constar das Constituições;
- nações passaram a ter liberdade econômica, política e religiosa;
- criação das Universidades originárias dos mosteiros medievais da Igreja;
- a Teologia Cristã motivou os primeiros cientistas a explorarem o mundo natural, portanto a ciência deve muito à Igreja;
- incentivo à música erudita, concebida pelos grandes mestres, como Bach, Beethoven e quantos mais;
- inspiração de muitas instituições sociais no ocidente;
- também à literatura e a educação, haja vista a criação do famoso Trivium, inspirador dos fundamentos da verdadeira educação.


Nossa conclusão sobre a leitura do livro do sr. Yuval é curta e sem rodeios: trata-se de um amontoado de informações aleivosas, contrárias aos fatos históricos, verdadeiro apanágio ao globalismo ateu e imoral. E afirmo com a consciência tranquila que este senhor não é um pesquisador de credibilidade, mas simplesmente um flibusteiro, a serviço dos grandes interessados na manipulação do mundo e das pessoas, magnatas e instituições como George Soros, as Fundações Ford, Rockfeller e MacArthur, Liga das Nações e até mesmo certos setores da ONU.
                                                                       Bsb, 15.10.19







CATADORES DE CONCHAS : SAGA DE UM RETRATO
                                      
                                        Murilo Moreira Veras


O  livro de hoje —  OS CATADORES DE CONCHA, a autora Rosamunde Pilcher, escritora inglesa, tradução de Luisa Ibañes. A autora é prolifera em livros do mesmo gênero e teor. São 697 páginas a serem consumidas pelo pobre leitor.
1.   Estrutura

A autora estrutura o livro, não apenas em capítulos numerados, mas divide-o por protagonistas, personagens que dão corpo e verossimilhança ao enredo concebido. Nada inovador, ao contrário é uma marca, técnica geralmente usada pelos autores de best-sellers, basta conferir Sidney Seldom, Nora Roberts e quejandos. Aliás, Madame Pilcher não foge à regra da linhagem best-seller neste seu livro: é volumoso, profícuo em diálogos, com pitadas de romantismo e sexo. Para inovar um pouco, usa descrições minuciosas sobre flores, jardins, dar receitas de comidas, esmiunça o tempo em Londres e descreve em detalhes recantos ingleses.
A história se desenrola à época da 2ª Guerra Mundial, o local é Londres, justamente naquele período em que era bombardeada pelos aviões Luftwaffe nazista. Enquanto a população sofria, os aliados se preparavam para a invasão da Normandia, aquilo que foi o ato mais audacioso das nações para impedir o avanço da máquina de guerra do Eixo, visando conquistar o mundo. Assim, lugares estratégicos de Londres encontravam-se soldados ingleses e americanos, trabalhando juntos para a concretização do formidável feito. O livro  trata desse assunto en passant, apenas alguns dos personagens são militares — caso de Ambrose, com quem Penélope, a principal figura do livro, se casa, ainda muito jovem e, depois, Richard, de quem se torna amante.
São 16 capítulos sobre os seguintes personagens:
1 – Nancy — filha primogênita de Penélope;
2 ­– Olívia  — a caçula;
3 ­–   Cosmo — amante de Olívia;
4 ­–  Noel    —  irmão de Nancy e Olívia
5 –  Hank   —  outro amante de Olívia;
6 –  Lawrence Stern — pai de Penélope e avô dos três filhos, pintor e autor
       do quadro Os Catadores de Conchas, que dá título ao livro;
7 –  Antonia — filha de Cosmo, torna-se amiga de Penélope com quem vai
      Morar, morto o pai;
8 –  Ambrose — oficial a serviço da Marinha Inglesa e marido de Penélope;
9 –  Sophie   — mãe de Penélope e esposa de Stern, de origem francesa,
       por isso requintada;
10 – Roy Brookner — dono e agente de uma galeria de arte em Londres, a
quem Penélope encarregou de anunciar e vender os quadros e    desenhos de seu falecido pai; 
11 – Richard — amante de Penélope, quando seu marido a abandonou,
       militar, faleceu no dia D da invasão dos aliados à Normandia, contra
       os alemães;
12 – Doris — amiga íntima de Penélope, refugiada com filhos, Penélope os
       abrigou em casa nos tempos difíceis da 2ª Guerra Mundial;
13 – Danus — jardineiro contratado por Penélope, depois tornou-se seu ami-
       go por se afeiçoarem um ao outro, tido como epilético, mas desmentido
       por erro médico, amava Antonia — ambos agraciados com valores na
       herança de Penélope;
14 – Penélope — filha única do casal Lawrence/Sophie, mãe de três filhos,
       pivô central do livro, personagem forte, atitudes realísticas, herdadas
       talvez do pai pintor de influência expressionista (quadro Os Catadores
       Conchas);
15 – Dr. Enderby — advogado de Penélope, a quem ela encarregou
       seu testamento, tendo este cumprido rigorosamente os itens, apesar
      das desavenças dos filhos; e
16 – Srta. Keeling — na realidade Olívia, filha nova de Penélope, a que mais
       tinha afeição à mãe, também a mais compreensiva diante dos supostos
       desvios romanescos da mãezinha.

2.    Enredo

Regras feitas a esse caldeirão de ações e sentimentos, agora é só Madame Pilcher distribuir os papéis, quem é quem no jogo, construir cenários, falas de um e de outros, colocá-los na dança das cadeiras, uma mulher independente (Olívia), outra nervosa e interesseira (Nancy), o rapaz conquistador que só visa ter lucro na vida (Noel), dois militares tragados pelos infortúnios da guerra (Ambrosio e Richard), pessoa amiga e sincera enaltecendo a vida (Doris), figurantes complementares para compor os vazios (Cosmo, Dr.Enderby) e para prover o plot  de certas doses de magnanimidade, criando perssoas mais humanas e não figuras decorativas, surgem uma adolescente jogada de repente no mundo (Antonia) e um rapaz bondoso diagnosticado erradamente de epilético (Danus) os dois ganhando a afeição da personagem central e regiamente  compensados no final. E está aberta a sessão da tarde de romance.

3.    Apreciação

 É o tipo de uma história para satisfazer um público romântico, com alguma dose de realismo, caindo como uma luva para o cinema. Daria um bom filme, talvez competisse com os romances de costume de Jane Austen. Claro que não teria o encanto milagroso de Casablanca, mas se aproximaria do dramalhão Dr. Jivago. Madame Pilcher até que caprichou descrevendo cenários encantadores, nos deu receitas interessantes, colocou falas algo convincentes em seus personagens, fez uma Penélope de carne e osso, despregando-a do clichê criado por Homero para a figura de sua Penélope no  mitológico Ulisses. Nesta, disputaram-na vários pretendentes — na de Pilcher, só eram dois, rapidamente desaparecidos.
Rastreando-se mais os recônditos fios da meada inspiratória de Madame Pilcher, ousaríamos encontrar reminiscências de um Oscar Wilde, quando fez do quadro O Retrato de Dorian Gray uma visão demoníaca dos pecados praticados pelo seu proprietário. Aqui, nos pavorosos dias sofridos por Londres bombardeada pelos nazistas, o quadro de um pintor exótico significava, ao contrário, para Penélope, a dignidade, o amor e a beleza  de um tempo perdido. Em Wilde, o personagem foi sentenciado pelo quadro satânico. Madame Pilcher, fez com que o quadro libertasse a personagem do passado desaparecido.  

                                                                             Bsb, 14.03.19  



O REALISMO DE FLAUBERT

EM   MADAME    BOVARY


                                Murilo Moreira Veras

Gustave Flaubert é um dos principais escritores pós-iluminismo e seu romance MADAME BOVARY considerado obra-prima. É o livro que vamos discutir proximamente no CLUBE DO LIVRO.

Para melhor compreensão deste miniensaio, dividi-lo-emos nos tópicos a seguir:

1.   O Livro, a Trama, o Desenrolar


Gustave Flaubert (1821-1880) publicou Madame Bovary primeiro no folhetim Revue de Paris  em 1856, edição interrompida  imputada de “imoral” e o autor processado. Um ano depois, já liberada e Flaubert inocentado, a obra foi publicada. A repercussão foi enorme.  E esse o real objetivo do autor que com essa obra ousava atacar o romantismo, gênero literário então vigorante na França e fora dela. Ora, ele mesmo fruto desse mesmo romantismo, sua escritura ainda com laivos dos  artifícios românticos, apesar de seus esforços  deles se desvencilhar.  A trama, o enredo, não é absolutamente original, a maneira de desenvolver a história é que pode ser diferente, à custa de sua sofisticação estilística. Fala-se que ele reescrevia muitas vezes o que escrevia, às vezes corria às pressas á tipografia para corrigir ou modificar determinada palavra ou texto,  o livro já na impressão.  

Flaubert criou a história da vida de um casal Charles e Emma, vivendo em duas aldeias francesas: primeiro Tostes, depois Yonville d’Abbay Charles Bovary – cujo pai, Charles-Nenis-Bartholomé Bovary, casara-se pelo dote de 60.000 francos – formou-se em medicina, ele rapaz interiorano, sem nenhuma convivência citadina, ou seja, parisiense.  Falecida sua primeira esposa, casa-se em segundas núpcias com Emma Rouault. Vai praticar medicina como agente na aldeia de Tostes.  Depois, muda-se para Yonvilles. Acontece que Emma, sua mulher, casou-se com ele por imposição do pai que devia a cura da perna ao Dr. Charles, a quem tinha grande afeição. Apesar de morar na província, Emma tivera uma educação esmerada, frequentou convento e teve todos os requisitos culturais exigíveis à época, poia era filha única. Tocava piano e vestia-se com certo refinamento. No convento ( e qui se percebe o anticlericarismo do autor) Emma recebia instrução relgiosa e chegou a ter imensa devoção à fé, nas imagens, no Cristo Crucificado, em Nossa Senhora e todos os santos da Igreja Católica. Mas foi também no Convento, através de outras estudantes, às escondidas, que começou a ler livros supostamente proibidos. Eram romances de amor,  aventuras cavalherescas, herois e mulheres apaixonadas, que ela os lia com sofreguidão. Essas leituras influenciaram profundamente o caráter da Emma adolescente, transformando-a numa jovem excessivamente romântica, a ver a realidade com olhos desvirtuados, sonhando com castelos, homens apaixonados, lutas de mancebos por amor – livros ultraromânticos e históricos, como Atala de Chateaubriand e  Ivanhoe de Walter Scott e afins.

 Ora, ao casar-se com um médico de província, que não lhe podia oferecer aquilo com que sonhara, senão uma vida pachorrenta e medíocre, trabalhos domésticos, talvez ter uma prole, nada de bailes, sofisticação, atos e fatos estapafúrdios como ansiara. Com modos e atitudes de pequeno burguês, sem nenhum traquejo em lidar com a ansiedade feminina, Charles, o marido de uma mulher com sonhos sofisticados, não conseguia satisfazer a mulher, cada vez mais desapontada, a ponto de repudiá-lo. As coisas estão nesse pé, quando o casal recebe convite para um baile no palácio de certo figurão. Lá, ela participa de bailes e banquetes colossais que só fazem espicaçar-lhe a vontade de abandonar tudo e partir para outro destino.

Na volta, conhece proprietário de palacete que mora nas vizinhanças, rapaz garboso, rico, com cavalos magníficos e vida mundana. Ele acaba seduzindo-a e têm com ele uma paixão violenta. Prometem fugir, mas o rapaz cuja paixão por ela já começa a arrefecer, desaparece, escafede, deixando-a totalmente arrazada. Fica doente, não atende mais os interesses da casa. Sequer cuida da filha, recem-nascida, que entrega à ama. O marido não imagina o que ela tem, procura satisfazê-la, contrata até aulas de piano em outra cidade, Rouen. Mas, eis que lá se encontra com ex-apaixonado seu, León, escrivão e estudante de direito. Novamente  vive outra paixão violenta, esta até pior do que a primeira com Rodophe. Passa a enganar o marido de todas as formas, mentindo que vai para aulas de piano, mas na verdade vai se encontrar com o amante em hotel. Enquanto isso, se endivida  comprando tecidos, roupas, utensilos, joias e presentes aos amantes que o Sr.Lhereux lhe vende, mediante promissórias, a juros exorbitantes, sem o conhecimento do marido. Vende inclusive por procuração propriedade da família de Charles e tudo se esvai nas mãos do astucioso mascote. Então, Lhereux executa as promissórias, Emma entra num verdadeiro furacão, não tem como pagar, o processo vai aos tribunais e ela é chamada a juízo, se não pagar em 24 horas, é feita o sequestro dos bens de Bovary, tudo à revelia do desatento marido. Sem saída, recorre aos amantes, León, que não tem dinheiro, Rodolphe também, alega está em dificuldades financeiras. Como louca, vai à casa do tabelião, responsável pela execução, Sr. Guillaumin e este exige que ela se entregue a ele. Fora de si, folha seca, sem a quem acudir, vai a casa do boticário, consegue as chaves da dispensa de remédio com Justin, seu empregado – pega o frasco de arsênio e se envenena.

Sucede a morte, narrada de forma a mais violenta possível. O marido fica arrazado, não se conforma. Louco e sem entender o motivo de tanta desgraça tem um ataque e falece, também. E o romance acaba com a vida voltando ao normal para os protagonistas: Justin, arrependido,  frequentando o cemitério; o vigário com seus afazeres na paróquia e o boticário, este cada vez mais pretencioso e segundo as próprias palavras do autor “... Acabam de condercorá-lo com a cruz de honra.”


2.   À Guisa de Crítica Literária


O realismo foi um movimento literário e também filosófico pós iluminismo  que se espalhou pelo mundo ocidental, com o propósito de superar o romantismo – de Byron, Shelley, Goethe e outras estrelas desse desbragamento literário.  Gustave Flaubert e outros supostos antirromânticos, Emile Zola, Honoré de Balzac, Tolstoi, Charles Dickens assomam nas letras  como arrietes para acabar com o desvairamento romântico. Muitos desses escritores não conseguem se desvencilhar das armadilhas românticas e se perdem, por exemplo, no detalhismo, na insensibilidde, na sofreguidão de assumir a realidade, e acabam desfigurando-a. É o caso de Flaubert e seu mestre Balzac, na França. Tolstoi na Russia e  Dickens, na Inglaterra.

O tout force da obra do minucioso Flaubert é seu afã de extrair o máximo de realismo na sua escrita, tirar leite de pedra, com que porfia com o naturalismo  exagerado de Émile Zola – o naturalismo nascente, também contra o romantismo. Vladimir Nobokov, como crítico literário, claissificou este romance...”impecável mágica de estilo”, enquanto William Falkner ”... o melhor romance já escrito”.

Examinemos mais de perto essas afirmações sob nossa ótica. Em estilo, Flaubert é tido como o máximo. Inobstante, alguns de suas descrições são repetitivas – verificável à pag. 265, quando escreve: “... massas de sombras cobriam as folhagens”, passagem encontrada em vários outros textos. A repetição não parece fazer jus a uma tão decantada “obra prima”. Tal repetição se deve ao detalhismo   do autor em todo o romance, tornando a leitura cansativa. Aliás, é um artifício utilizado por todos os chamados “realistas” como León Tolstoi e o próprio Emile Zola. É quase impossível você acompanhar as descrições infindas do romance “Guerra e Paz”, de Tolstoi. Flaubert comete o mesmo “defeito”. Observe-se  a descriçaõ que faz das vilas, o evento da feira agrícola  e principalmente o episódio do baile no castelo de La Vaubyessard, casa do Marquê d’Andervillier, ex-secretário de Estado das monarquias dos Luises, baile onde Madame Bovary fez sua estreia na corte.

Flaubert é tão minucioso no adultério de Emma que  não é difícil descobrir em seu comportamento vários sinais de que era atacada repentinamente de “uteri furor” (furor interino). Veja-se, por exemplo, à página 356: “... Quando sentia vontade de ver León (seu segundo amante), partia e não importa que pretexto, e, como ele não a esperava naquele dia, ia buscá-lo no cartório.” E mais adiante, à página 362: “... Ela despia-se brutalmente, arrancando o fino cordão de seu corpete, que assobiava ao redor de seus quadrís como uma cobra a deslizar. Ela ia, na ponta dos pés nus, olhar mais uma vez se a porta estava fechada, depois fazia com um só gesto cair todas as suas roupas – e pálida, sem falar, séria, abatia-se contra o peito dele, estremecendo longamente.” O mesmo que acontecia às cortesãs célebres, como Valéria Messalina, a mulher mais poderosa de Roma; Cleópatra, que teve o primeiro amante aos 12 anos e seduziu tanto Júlio Cesa quanto seu títere Marco Antônio, e ainda mantinha  templo com jovens para satisfazer seus desejo sensuais; Paulina Bonaparte, irmã de Napoleão; Catarina, a Grande, que dizia praticar sexo seis vezes ao dia e tinha um harém com 21 amantes oficiais; e Mata Hari, holandesa à época da 1ª Grande Guerra, tida como espíã dupla, que tinha amantes de ambos os lados, alemãos e franceses, acusada foi fusilada em 1917.

Flaubert queria provar que o romantismo não passava de uma manifestação de loucura na literatura. Então, encarnou Emma como representante dessa loucura, e não havia maior loucura do que uma mulher casada cometer adultério por insatisfação sexual extrema – e com uteri furor . O romantismo se acometera de furor literário, desbragamento das letras, portanto deveria ser superado pelo seu reverso, espécie de escritura materialista, para acompanhar o naturalismo, ambos influenciados pelo cientificismo nascente, pos-iluminista. E assim tornou-se o embrião do que voga hoje na literatura: o veracismo.

Observe-se que Flaubert pode ter se inspirado em Cervantes, Emma atacada da mesma loucura  sofrida pelo “Cavaleiros da Triste Figura”, Dom Quixote. Tudo para inquinar de loucura o romantismo. Emma era, como Dom Quixote, uma sonhadora, uma irrealista. Mas Cervantes não é Flaubert, seu personagem é um crítico da própria civilização, dos costumes – crítica essa que se expande como uma semeadura do espírito, que iria influenciar toda a literatura das gerações seguintes. Dom Quixote é um épico; Madame Bovary é um mito sexual, encarnando o furor do realismo nas letras.

Ora, o audacioso escritor que teve sua obra máxima confrontada pela justiça, depois inocentado, igualou-se a outros autores com sua galeria de mulheres “adúlteras”. Temos “Kitty – o Véu Pintado”, de Somerset Maugham, cuja personagem trai o marido e depois confessa; Genoveva, que teria traído o Rei Arthur com seu maior guerreito Lancelote; Francisca de Rimini, a mulher pega em flagrante com o irmão de seu marido e castigada por Dante, na Divina Comédia; Margarida de “O Maestro e Margarida”, esposa que trai o marido com um maestro – e fica louca, o autor: Mikahail Bulgakov; Helena, da Iliáda de Homero, que  trai o marido com Páris, acarretando a famigerada Guerra de Troia; Hester, personagem de “A Letra Escarlate”, de Nathaniel Hawthorme, adúltera punida com a forca nos primevos dos Estados Unidos fundamentalistas; Dona Flor, personagem de Jorge Amado, com seus dois maridos, um vivo e outro morto; Connie Chatterley, em “O Amante de Lady Chaterley”, de D.H. Lawrence, que trai o marido com um trabalhador braçal movida apenas pela “atração sexual”; “Tesse de Urbervilles” (1891), obra de Thomas Hardy, uma mulher na era vitoriana, seduzada e depois abandonada pelo amante, que o marido repudia e acaba enforcada em prça pública.  

Flaubert de sua vez não pode deixar impune o Romantismo, embora ele, escritor, seja fruto desse mesmo romantismo. Assim, ele castiga sua personagem, a romântica sonhadora e infiel Emma. E como se vê da sequêcia de adúlteras nas letras, todas severamente punidas, Flaubert, mais realista que o próprio rei, impinge à sua personagem fim brutal. Nada de vingança do marido, um bovariano, medíocre, provinciano, imbecilizado e insensível à realidade dos fatos: Emma Bovary é praticamente trucidada pelos próprios amantes, pela sociedade, pela estupidez, pela esperteza de alguns de seus algozes (os personagens Lhereux e Guillaumin), sua única saída é recorrer ao suicídio, por arsênico, que a leva a sofrer como Cristo na cruz – Cristo esse  ironizado pelo autor na pessoa do boticário Homais e mediocremente defendido pelo vigário, Sr.Bornisien.

Enfim, desce a cortina. E a vida vai continuar, como se nada houvesse acontecido – é assim o mundo materialista do superrealista   Gustave Flaubert.

Proclamou, nas letras, a irrealidade do próprio realismo.

                                                          

                                                            Bsb, 27.01.16


 TRATADO  SOBRE A  CONVIVÊNCIA




                          Murilo Moreira Veras

O livro em pauta hoje é o TRATADO SOBRE A CONVIVÊNCIA e seu autor JULÍAN MARÍAS AGUILERA (1914-2005), filósofo espanhol, discípulo de José Ortega y Gasset (1883-1955). Compõe-se de 49 miniensaios, tendo como temática principal a convivência entre pessoas e nações, com riqueza de detalhes,  sugestões e sobretudo reflexões. Marías teve uma vida profícua, escreveu muito, recebeu condecorações e combateu, o tempo todo, o bom combate, discutindo, sugerindo, informando sobre a realidade de nosso  tempo. Cremos que, pela linha assumida o filósofo  integra a corrente que Mário Ferreira dos Santos, escritor e também filósofo paulista, designava “filosofia concreta” – ou seja, especulação sobre a realidade como ela realmente se apresenta, sem a carapaça ilusória da ideologia.

2.. Antes de oferecer minha impressão pessoal sobre esta obra de Julián Marías, entendo de bom alvitre resumir os 49 temas abordados pelo autor:

1.Introdução

            Parte da promessa evangélica de que “A verdade vos tornará  livre”

2.Abertura ou fechamento

           Para Marías, existe uma abundância de informação no mundo, produção de livros em excesso, embora considere uma forma de sobreviver à esperteza;


(a)“Minha convicção de que sem uma considerada dose de bondade se pode ser “esperto”, mas não verdadeiramente inteligente

(b)“Nesta época em que a produção de escritos é imensa, em todas as suas formas, em que é inacabável não já o conteúdo do que se publica sobre qualquer questão, mas os simples títulos, a capacidade de distinguir é salvadora, talvez a única forma de sobreviver à inundação que nos acossa por todos os lados”- Julián Marias.

               © talvez a esperança esteja nos jovens

3.Ventos contrapostos

               Neste item ele insiste no excesso de informação e exalta a veracidde como antítodo, sobretudo contra o vírus totalitário

(a)  excesso de informação

(b) enxurrada de produção de livros

© ventos da falsidade: o “totalitarismo”

(c)  supostamente desaparecido, este  continua visível


4.O Irrenunciável

                Neste item, põe-se em evidência a irrenunciabilidade dos direitos fundamentais das pessoas, um deles o direito à veracidade:

(a)  os direitos fundamentais em que se funda a “realiade” é irrenunciável

 “ora, a verdade deve ser a moeda de troca da sociedade,desde que sadia, realize sempre um negócio perfeito, sem vícios redibitórios.” – Murilo


5.Verdade e Mentira

                 Neste artigo, o autor aborda a influência da imprensa e da TV e como a mídia pode prejudicar a saúde da sociedde:

(a)nada prejuca mais a saúde de uma sociedade do que a impunidade da mentira;

)b)“ ... a mentira, a falta de ética dominante, é contra o florescimento do projeto civilizatório, portanto, contra a humanidade.” – Murilo

6.Mais da Conta

                Marías cita o poeta espanhol Antonio Machado:

               “Mente-se mais da conta por falta de fantasia: também a verdade se inventa.”

7.Posse ou Negação

               O autor insiste em que devamos nos apropriar da realidade, para não resvalar em erros

8.Complacência indevida

               Marías aponta neste item a necessidade de cultuarmos a verdade:

(a) é urgente uma virada na direção da verdade

(b) restabelecer a saúde do corpo social invadida por essa doença


9.Complacência na mentira

                 Para o autor, não podemos transigir no aceitar a mentira:

(a) mentira: um dos maiores males da humanidde

 (b) não há complacência  à mentira

 © avançaremos  em direção ao futuro, eliminando-se a mentira


10.Insurreição da Mentira

               O autor continua apontando a mentira como um mal:

               “A única soisa necessária é uma virada na direção da verdade, uma vontade firme de não aceitar a mentira nem submeter-se a ela, nem sequer deixar-se macular e pertubar por sua influência.” – Marías.


11.Prosaísmo

                Para o autor, o mundo moderno sofre de um fenômeno chamado de “prosaismo”, ou seja, falta de imaginação, criatividade, afasia mental:

(a) há uma invasão do “prosaísmo” que penetra nas vidas indivíduais, não exclusivo dos espanhóis, mas de toda a Europa, do mundo quiçá;

(b) “o homem faz tudo por razões líricas” – Ortega y Gasset

 © o antítodo: o lirismo, a imaginação;

“(d) O prosaismo mata o desejo e fecha o futuro; os únicos meios de abrí-los são o lirismo e a imaginação” -  Marías.



12.Viver contra a verdade

            Neste ensaio o autor reflete sobre o problema da falta de verdade no mundo atual e suas consequências:

(a) é dominante em nosso tempo: vive-se contra a verdade, melhor, vive-se com medo da verdade;

(b) os três maiores males do século: o terrorismo, a droga e o aceite ao aborto;

          © programa   para o século XXI: reconciliação do homem com a    verdade, liberdade irrenunciável, realização do homem e mulher como tais, aceite à mortalidade, busca absoluta da verdade.

13.Falsificadores de Dinheiro

                Marías abomina os falsificadores, responsáveis pelo descrédito e a erosão do valor monetário, com influência negativa à economia;

(a) há cumplicidade da sociedade deixando operar ainda hoje “prensas clandestinas” ou escritores que difundem a falsificação;

(b)  condenar  os falsificadores, desprezá-los, eis como salvar a saúde da sociedade;

© o mesmo com relação à “corrupção” que deve ser erradicada


14.Imagem Falsa

           Neste item, o autor denuncia que as pessoas hoje falseiam a realidade e isto implica numa visão errônea do mundo:

(a) abusa-se  do apelo à democracia e aos democratas

(b) os indivíduos perderam a capacidde de agir, de rejeitar e corrigir, estabelecer a verdade, sua importância

© as pessoas se tornaram “vulneráveis”

(d) quanto mais liberdade, melhor

(e) as maiorias muitas vezes são oprimidas por minorias atuantes.


15.Resitência ao Nada

        Marías se apoia na atitude de Unamuno de que se deve “resistir ao nada”:

(a) projetos são feitos em todas as idades, sempre partindo do passado

(b) devemos nos manter sempre aptos e vivos

© o que levamos desta vida não são bens materiais, tesouros adquiridos, mas, sim, nossos projetos existenciais

16.A Proporção

         O ensaista aponta que há uma desproporcionalidade das coisas e dos fatos nos tempos atuais:

(a) milhões  de pessoas vivem em estado de erro: falta-lhes o senso de proporcionalidade dos fatos da realidade concreta

(b) Espanha: meio milhão de analfabetos e o restante analfatos funcionais

© os fatos não são devidamente equalizados

(d) há certa falência nas estatísticas

(e) uma grande falácia, por exemplo: o aquecimento global, baseado apenas em estatísticas

(f) colóquios  e debates na mídia: inócuos, quando não preocupantes

(9) há uma certa atração pelo “catastrofismo”

(h) não se observa a justa proporção entre os fatos ocorridos


              17.Fronteiras do Apreço

                           Neste item, o autor aponta a falta de apreço a pessoas e às                                        doutrinas e instituições:

                         - as expressões “direita” e “esquerda” são expressões estúpidas                  e funestas, a não ser que se refiram  às mãos ou às casas.


                  18.Ordem de Magnitude

                                 Neste item, o autor observa uma desorientação atual do                                    mundo, falta de clareza da realidade e aponta os motivos:

(a) jornais na razão inversa dos interesses

(b) TV : assuntos desimportantes, informações catastróficas ou tediosas, tertúlias e programas vergonhosos, piadas insolentes, opiniões às vezes ineficazes e impróprias, partidas de futebol já vistas

© a repercussão é imensa: os assuntos realmente importantes são esquecidos

(d) a mais perigosa: a megalomania gerada pelos “nacionalismos”

(e) Europa: desorientação sobre si mesma e seus membros.


19. Fragilidade da Evidência

              A visão da realidade tem se tornado frágil:

(a) filósofo Gratry: “Tout ce qu’ um homme a vu est vrai” – tudo o que um homem viu é verdade : o que não se vê, o resultado pode não ser verídico

(b) “Ser homem é um permanente e inseguro esforço de hominização, uma conquista do que se é: uma pessoa.” – Marías.

20.O Reverso da medalha

                O autor assinala que não adianta querer agradar as pessoas   se elas de antemão já são do contra:

              “ Não se deve tentar contentar aqueles que  não vão se contentar.” – Marías.


21.O Espírito que sempre nega

              Os terríveis efeitos do negativismo perdurante hoje em dia:

(a) Goethe: “Der geist der stets verneint” = “o espírito que sempre nega – o diabo.”

(b) atitude diabólica: o negativismo

© indíviduos,  grupos, organizações, partidos e até países que adotam a negação como estatuto

(d) a criatividade requer certa ingenuidade, sobrepõe-se a atividde negativista.




22.Infernar (Infernizar?)

               O autor explica o que está acontecendo com as pessoas, ao infernizarem os outros:

(a) infernar: mais que inquietar, é perturbar, irritar ou tudo junto

(b) atividade negativista

© há pessoas, associações, grupos e partidos que se dedicam a infernar

(d) há indivíduos vocacionados para infernizar os outros

(e) observa-se um rancor em tudo e em todos: “história       universal do infernar”

(f) certas pessoas: contra o que é digno, livre, promissor

(g) Espanha com fortes raízes teologais forjou casualmente o verbo “infernar” – permanente tentação do homem.


23.Agressividade

                Como o ser humano se tornou agressivo e egoista:

              (a)“Quem só pensa em si mesmo e no que lhe pertence – ou crê que deveria pertencer-lhe – revela uma anomalia, uma percepção deformadora do real, uma incapacidade de viver verdadeiramente no mundo com toda a sua complexidade e riqueza” – Marías

             (b)  deveria se voltar para o bom senso e ao “amor justo”

        24.Cativos

                             Sobre a liberdade para não se se livrar do cativeiro mental:

(a)  “Não ter liberdade é mau, mais é muito mais grave não ser livre” – Marías

(b) o totalitarismo: em torno de uma figura fascinante, às vezes desconhecida – Hitler, Lenine, Stalin

© partidarismo: forma de politização – abdicação da liberdade pessoal

(d) diálogos atuais: falsificações estéreis

(e) Quevedo para o homem de nosso tempo: liberdade esclarecida.


25.Desplantes

                Discute a falta de diálogo, distorção da política e outros atos negativos:

(a) dito ou ato cheio de arrogância, grosserias: eis o dicionário de nosso tempo

(b) impossível haver diálogo quando há descaramento

© impossível negociar com qualquer um ou conviver

(d) política: requer vontade, entendimento, compromisso, avalição e concessões

i(e) mpossível discutir a partir da negação ou distorção do real.


26.Impunidade Verbal

                 Problemas relacionados com a manipulação a bel prazer do uso da palavra:

(a) incremento da incontinência verbal : políticos e escritores

(b) intolerância: má retórica, propaganda, massas manipuladas

© as pessoas como massa dem anobras, verdadeiros autômatos


      27.Coisas Claras

                     Como os fatos e as coisas em Espanha podem clarear-se:

(a) há uma certa clareza em Espanha

(b) mas a mentira ainda é um valor.


28.O Cortês e o Valente

                Reclama o autor da falta de cortezia e do altruismo das pessoas:

(a) o cortez não exclui o valente – diz o dito popular espanhol

(b) a figura de João Paulo II quando em Cuba

© falta de cortezia, mesura, elegância na palavra e no zelo: frequente hoje

(d) “A incapacidade de admiração é um indício infalível da inferioridade e desconfiança” – Marías

(e) “Há pessoas a quem doi o talento de um Cervantes, Lope de Veja, Velazquez ou Goya” – Marías.


29.Expressão Pública

              A boa e a má representação política tem função pública:

(a)  toda política meritória se funda na opinião pública

(b) hoje todo mundo escreve, mas poucos escrevem bem ou até sabem escrever

© há três formas de comunicação pública: a retórica – arte de comover nascida na Grécia; a propaganda – técnica manipulatória e demagógica; a administração – notificação apenas aceitável

(d) política: pode ser degradante, mas também nobre, meritória e gratificante, uma arte a ser bem usada

(e) grandes políticos: Winston Churchil, Gen.De Gaule, Abraham Lincoln.


30.Espírito Positivo

               Deve-se cultivar o espírito positivo, isto é, observar a realidade integralmente:

(a) contrapõe-se: espírito negativista, este dominado pela ansiedade, o lado pior das coisas

(b) espírito crítico: observar atententamente o real, distiguindo o bem do mal – “le vrai d’avec le faux”, segundo Descartes.


31.Um Passo Atrás

                O autor nos previne como ser mais reflexivo, cauteloso no que se faz, diz e escreve:

(a) antes de falar ou escrever: dar um “passo atrás”

(b) parar, refletir, olhar as coisas de vários pontos de vista

© os ideólogos: simplificam com fórmulas, sem serem testadas, repensadas e até entendidas

(a)                   (d) continuar olhando, pensando, avançando até onde possível


32.Levar a Sério

                Levar a sério o que se vê, o que se quer:

(a) “O remédio para nossos males, se existe: não esta nas instituições, em opiniões difundidas pelas mídias, mas nas pessoas individiduais, em cada um de nós, no comportamento das inuméras parcelas da humanidade que compõem e suas articulações” – Marías

(b) “É frequente  ouvir elegiar um intelectual” que goza de grande fama, que mal foi lido, de quem não se recorda nem sequer uma ideia, uma imagem, um verso.” – Marías.


33.A Última Instância

             A responsabilidade da opinião pública não se confunde com uma opinião qualquer:

            “... estabelecimento de uma opinião pública responsável e justificável, também plural, sem ser atomizada, caprichosa – se assim for não é opinião pública, mas uma opinião qualquer e nem é opinião” – Marías.


34.Qualidade Pessoal

              O filósofo enfatiza a necessidade das pessoas serem corretas, honestas e verazes:

(a) decisiva  a capacidade de distinguir as pessoas: na vida privada e pública

(b) TV: contribui para a queda de qualidade dos espectadores, mostra   rostos, gestos, palavras

© más companhias: também pertubadoras

(d)há pessoas que nos ganham a confiança à primeira vista

(e) confiemos   mais em nós mesmos do que nos outros

(f) traço   dominante do mundo atual: não é a imoralidade, mas a desorientação

(g)  há uma esperança para o mundo: a adoção da verdade como valor.


35.Questão de Imaginação

      As grandes virtudes de se usar a imaginação:

                   (a) para plenejar o futuro

                    (b) só a realidade antecipa o futuro

               © pavoroso horizonte dos países: esqueceram a história

                        (d) inimigo da imaginação criadora: a timidez, a excessiva                                 modéstia

                    (e) Kant ousou dizer: “Sapere Aude” – ousa imaginar

                    (f) tédio: sintoma primário da excassez num país

                        (g) o maravilhoso da vida humana: nunca se chegar a uma                                           vida  que se queria

                    (h) “Governos sem imaginação no seu “modus operandi” é                                 um governo frágil, provinciano, o resultado é que o                                              País        decresce em mérito –  é justo o que acontece                                    atualmente        no Brasil: é governado por pessoas                                                  incompetentes, sem     imaginação, e, pior,                                           retrógrados.” – Murilo


              36.Integração

                  A cultura deve ser integral, fragmentá-la é desvalorizá-la e torná-la   infértil:

(a) supreende-nos:  hoje coisas importantes são negligenciadas

(b) qualquer  coisa é chamada de cultura: cultura da violência, prostituição da língua

© toda cultura é una : sua fragmentação é ignorância         

37.O Horizonte

                       Como visualizar  nosso horizonte, particular e público:

(a) “... o maior problema que enfrentamos é o descohecimento da história, potencializado por sua deliberada falsificação. A ignorância a reduz a um mínimo, muito próxmo do zero; as falsificações nos introduzem nos números negativos, o que é ainda mais grave.” – Marías

(b) “Domina no mundo uma visão míope, incapaz de abarcar um horizonte amplo, para não dizer de levar em conta o futuro previsível” – Marías

© é perniosa a omissão de quase tudo o que vale a pena

(d) “... as políticas, as decisões de governo costumam  ser apresentadas com uma visão “doméstica”, imediata, sem conexão com projetos de longo alcance.” – Marías

(e) falta  de visão de conjunto em relação às outras nações européias e também as americanas

(f) é vigente hoje: a mesquinharia, a miopia dos “nacionalismos”, sem propostas articuladas, desprovidos de conteúdo e criatividade.


38.Projetos e Prazos

               O autor sugere como as nações devem se organizar em termos de projeções:

(a) organizar   o pluralismo: projetos através dos “partidos políticos”

(b) projeção  em horizonte dilatado, evitem-se empreendimentos utópicos, pois, costumam levar ao desastre

© Espanha fim do século XV: criadora do ocidente, projetando-se à América – lugar generoso na história.


39.Convivência e seus Limites

               Para o autor, a Espanha progrediu, mas só razoavelmete:

(a) a vida pública espanhola está melhor

(b) condições   essenciais de convivência: liberdde, variedade de atitudes, teses e propósitos

 requisito  básico: não destruir a concórdia, baseada na verdade

(d) vontade  de não prejudicar

(e) reduzir   a agressividade

(f) fazer  as coisas bem o melhor possível

                                          40.Pensar na Democracia

                                                              Requsitos propostos  para a democracia:

(a) o único sistema de governo que pode ser considerado legítimo

(b) condições: ser possível; cumprir seus requisitos; ter limites do poder, governo ou parlamento; não tomar o nome democracia em vão (bastante ocorrível)

© há democracias contaminadas, sob perigo e países que não a tem


41.Iniciativa

                Urge que os governos e nações  tomem iniciativas:

(a) proliferam  organizações junto com a mídia, propondo mudanças, causando instabilidde nas sociedades

(b) discutem-se  assuntos menores

© “Os grandes projetos que podem dar esperança a um povo, que suscitam o interesse e a atividade que dão conteúdo às vidas individuais, não têm lugar.” – Marías

(d) ... “não se deve seguir docilmente aquilo que nos querem impor.” – Marías

(e) “... o decisivo é que cada um tome por sua conta a iniciativa e se esforce para ser o que deseja ser, o que sente que teria de ser e não o que lhe imponham, pela força ou por meio de astúcias.” – Marías.


42.O que se Pode Dizer

                       Critérios do autor sobre a liberdade de           expressão:

(a)  liberdade  de expressão para todos – em todos os sentidos:  respeito, crítica, contradita, insubmissão aos critérios de outrem

(b) a mídia tem deveres

© constitui  perversão da democracia: partido político ter por objetivo “opor-se” a outro.


43.Em suas Mãos

                O autor faz uma advertência:

                 - é preciso que depositemos confiança nos partidos políticos, embora a maioria seja inconfiável.


44.O Despertar das Maiorias

                Marías aponta o problema das maiorias e minorias na democracia:

(a) fenômeno  atual: a opressão das maiorias pelas minorias

(b) há inúmeras maiorias que se mantêm silenciosas

© o direito das minorias é essencial, mas é indesejável que elas oprimam as maiorias – muitas delas apáticas

(d)  século  XXI: que seja aberto à criação, à originalidade, mas contrário a todas as formas de “terrorismo”, degradante e perigoso.


45.Aonde se Quer Ir

                 Neste tópico o autor perquire o que queremos para o nosso futuro, faz suas propostas:

(a) o que os partidos políticos realmente querem, para onde querem que o País vá?

(b) as maiorias mantêm-se afásicas em grande parte do mundo – o que é angustiante e obstrui o futuro

© nosso  século nos propões duas alternativas:  prosperidade  ou decadência

(d) está  em nossas mãos optar: pela ignorância, o isolamento, a hostilidade, a falsificação da realidade

(e) é necessário decidir aonde queremos ir, quem nos conduzirá, quais as pessoas que serão nossos guias

(f) fundamental:  não se enganar, não viajar em companhias indesejáveis

(g) nosso destino pode não ter saída, nossa realidade diminuída, sem orientação e ponto final.


46.Para Começar o Século XXI

                O autor propõe agenda para o século entrante, soluções edificantes:

(a) voltar  os olhos para o passado

(b) totalitarismos:   devem ser execrados, mas deixa herdeiros

© enorme  o aumento populacional: curiosamente visto como um desastre

(d) eis a verdade: o que ocorre é falta de organização e generosidade

(e) técnica aliada ao liberalismo democrático: responsáveis pela fabulosa criação de riqueza

(f) demagogia existente: essa criação de riqueza não perdura  – certamente os demagogos de plantão desejam a perpertuação da pobreza, permitindo a manipulaçã, o domínio das pessoas

(g) é inquietante: o desaparecimento das vocações científicas –  devido a excessiva especialização e a falta de entusiasmo

(h) desde 1960: terrorismo organizado, consumo exagerado de drogas e aceitação social do aborto

(i) urgente: temos que nos tornar herdeiros do legado do passado – é nossa condição humana

(j) globalização: grande falácia, o mundo na vedade é plural

(k) reina pavoroso provincianismo: no Ocidente e na América, apesar do tecnicismo e da comunicação

(l) os nacionalismos exarcerbados derivam dessa espécie de aldeanismo

(m) é preciso que nosso século complete o que já foi feito.


47.A Ilusão da Europa

                Os erros comeitidos pela decantada união européia:

(a) a UE poderia ter sido criada diferente: mais criativa e com esperanças

(b) introduziu-se:  curiosa combinação de homogeinidade e provincianismo

(a)                   © as  nações se desconhecem mutuamente

(d) fala-se  de paz, mas o que há é e extermínio entre os europeus

(e) é preciso iniciar nova etapa: correção e aprendizagem com os erros cometido

(f) renovação realística: a Europa se transformou numa espécie de fecundo enxerto

48.O Século XXI como Porvir

                Marías assinala como deve e não deve ser nosso futuro:

(a) Século XXI: falta imaginação

(b) é preciso pensar o novo século como espaço histórico – a história a grande esquecida

© deve se  olhá-lo não como futuro, mas PORVIR – pois depende de nós, de nossa irrenunciável liberdade.



49.Ponto de Partida

               Segundo ele, eis como tudo deve se iniciar:

(a) continuidade e não “continuismo”. aquela significa renovação – rupturas  são retrocessos

(b) forças em grande parte explicativas de nossa história: preguiça e inveja – o “partidarismo” pertuba o sadio mecanismo da história

© há tendência moderna e pós-moderna de esquecimento da história

(d) empobrecimento cultural:  nossa situação hoje

(e) a sociedade deve seguir em frente

(f) grande  fator da DECADÊNCIA: as fragmentações, de ideias, pontos de vistas e falta de CONSCIÊNCIA

(g) o terceiro milênio: abre-se como uma imensa PERGUNTA.


3. Nossa Impressão

   

Julián Marias é um filósofo  de grande conceito, haja vista que foi discípulo de José Ortega y Gasset. Como dissemos antes, Marías, filósofo, persegue a corrente a que se filiou Mário Ferreira dos Santos – a filosofia concreta, especulação sobre a realidade, arejada das impurezas ideológicas. Podemos perceber essa visão em todos os temas objeto das reflexões do autor. Não se trata apenas de um “tratado sobre a convivência” – o Mestre Marías vai mais além, suas análises, sempre percucientes e objetivas, versam sobre ética, estética, educação, filosofia e política, sem falar que dá palpites também em sociologia, estatística e história. Portanto, é um verdadeiro “filósofo”. Diríamos até que ele, em seus miniensaios, adota método semelhante à  maiêutica  de Sócates, coletando dados do real – as ocorrências proposionais – para através delas, extrair suas coclusões. O resultado é que suas observações são extremamente úteis, válidas e  verazes. Muitas delas de uma oportunidade gritante. É claro que Marías tem em mente a realidade da Espanha, seu país de origem, mas sua visão abarca toda a Europa e até a América. E vamos além: o que o filósofo observa no seu país, as particularidades,  os absurdos, as incongruências, a afasia reinante, a atuação ambígua dos partidos políticos, a falta de horizonte claro em termos de perspectiva – é como se estivesse se drigindo ao caso brasileiro, à nossa situação, a se referir a nosso povo, nossas ideias, nossa cultura, enfim as nossas deploráveis circunstâncias.

A maior preocupação do ensaísta ao expor os problemas que, a seu ver, entravam não só  o progresso da Espanha, mas de todo o mundo, é a falta de clareza dos políticos e consequentemente dos governos. Como resultado, por prevalecerem suas ambições pessoais ou partidárias, em vez de as nações que comandam  progredirem, evoluirem, mediante a continuidade das ações e dos projetos, os ditos políticos e governantes se acomodam com um continuismo medíocre e improfícuo. Segundo Marías, dever-se-ia era dar continuidade aos projetos, corrigindo os erros cometidos. Outro mal que ele sabiamente assinala nos nossos tempos é a tendência de a “democracia” ser tomada em vão, quando na realidade o que proliferam são democracias “contaminadas”, isto é, eivadas de imperfeições, erros – e o  que é pior, fazer da democracia trampolim para a plutocracia, a demagogia, ou isso que o autor abomina que são as ideologias, hoje em voga, pois não passam de totalitarismo disfarçados. Outro ponto importante a se ressaltar no “tratado ético e estético” de Mariás é que ele faz absoluta apologia da liberdade, de o ser humano ser livre, ou seja, não se torne cativo de regimes, ações ou ideologias mesquinhas. E nisso, ele tem um pouco de “anarquista”, mas no bom sentido, como também parece ter sido, seu mestre Ortega y Gasset.

Por fim, assinalo que os 49 itens expendidos pelo autor, a maioria nos atinge de perto, parece terem sido escritos para nós, para nossas circunstâncias,  as advertências ali expostas são dirigidas ao povo brasileiro, à nossa situação, ao momento turbulento que vivemos, com nosso desenvolvimento em baixa, nossa moral perdida e quejandos afins, tudo sob suspeita –  cultura, literatura, religião, assim como vergonha, caráter e amor à Pátria.    

                                                                         

                                                                            Bsb, 8.01.16



     REFLEXÃO SOBRE UM BRASEIRO  LITERÁRIO
                                                             

                                                                          Murilo Moreira Veras








O livro a ser discutido na próxima reunião do Clube do Livro é “As Brasas”, de Sándor Márai, editado pela Companhia das Letras. O gênero é romance e sua leitura é, pelo número de páginas, 164 páginas, a rigor, não demorada. Não obstante isso, o leitor tem certa dificuldade quanto ao entendimento do enredo. O óbice está no estilo empregado pelo autor, pois o enredo todo é feito em “feedback”, isto é, fatos que aconteceram no passado e que são agora relembrados na forma de quase um “monólogo” e até solitário não fosse a presença de outro personagem fazendo com que se trate na realidade de um diálogo.

São três os principais personagens: Henrik, que é General aposentado, sua mulher Khrisztina e o amigo de infância, Konrad. A quarta se chama Nini foi quem criou o General, cujo pai tem grandes posses. Na realidade, trata-se de um triângulo amoroso, mas que só se vem a saber através do blá-blá-blá dialógico utilizado pelo autor.

O General, no foco do romance, já com cerca de 75 anos, alquebrado e solitário, só confia numa pessoa: a velha ama, que ainda cuida de tudo em sua casa.

É previsível ali, naquela casa, afastada, a existência de um grande segredo a permear. Começa pela falta de um quadro na galeria dos membros da família do General.  E esse retrato é de sua esposa, de há muito falecida, Khrisztina, aliás, pessoa enigmática, de quem só se sabe algo através do próprio General.

O foco da história está no encontro que o General marca com seu amigo Konrad. Ele pede que a ama Nini prepare o jantar o mais sofisticado que puder. Ali, naquele ágape íntimo muita coisa vai ocorrer.

Mas, na realidade, o que ocorre é um diálogo entre os dois contendores: o General e Konrad, seu amigo de infância. Melhor, um grande monólogo, pois o outro, Konrad é inteiramente monossilábico. Não quer esclarecer nada, prefere a incriminação do silêncio. Ora, quem cala, consente.

Tentemos desembrulhar a questão. Henrik, depois de todos esses anos, guarda consigo um grande segredo e esse se dilui num incomensurável rancor. Ali, naquele encontro, como brasas ardentes, as dos candeeiros de um tempo já passado, os dois se digladiam. Mas não com armas: com palavras.

Prestação de conta? Vingança? Quem deve ser punido? Como esquecer o terrível imbróglio surgido entre dois amigos?

É uma história de traição, um acontecimento ocorrido no passado, mas vem à tona agora. O autor constrói o seu panegírico pretendendo obter o reparo de um ato de traição conjugal.

No passado, os três eram íntimos, ele, Henrik, Khrisztina, sua mulher e o amigo de infância, o enigmático Konrad. O amigo visitava a casa do General corriqueiramente. Um dia, numa brumosa manhã, os dois vão caçar. A certa altura, surge uma presa e Konrad prepara sua arma para abatê-la. Mas, num breve lapso, ao invés de apontar para a presa, aponta para outra, o General, seu amigo, a três passos de sua frente. A suposta vítima tem a rápida presunção de que o amigo vai abatê-lo com um tiro. Ou tudo não passou de uma loucura? Por que ele queria matá-lo? Uma coisa muito grave acontecera.

Enfim, depois de todos aqueles anos, o General agora quer saber toda a verdade, se ele Konrad quis matá-lo e por que ele não o fez, .naquele dia.

Mas Konrad não abre o segredo e responde com monossílabos.

Agora, sim, através dos longos monólogos de desafogo do General é possível configurar a verdadeira situação. No passado, naqueles tempos de convívio, Khrisztina traiu o marido com o amigo. Os dois se entendiam muito bem, tinham os mesmos interesses e um vínculo: ambos eram de família pobre. O General, ao contrário, vinha de família nobre, grandes posses.

A literatura de um modo geral está repleta de enredos sobre traições amorosas. Ana Karênina de Tolstoi traiu o marido com um volúvel militar aristocrata, o marido não aceita, revida drasticamente, proíbe-a de ver o filho, ela se mata no fim do livro. Luisa de Eça de Queiroz trai o bondoso marido com seu primo sádico e irresponsável, depois de grande sofrimento, morre nos braços do marido, que a perdoa. E, enfim, para não nos enveredarmos em mais traições – que são muitas e o tema é inesgotável – temos a traição enigmática de Capitu de Machado de Assis a seu marido Bentinho, ex-seminarista, depois advogado a exercer uma lenta, mas cruel vendeta. Não há certeza absoluta de que ela Capítu tenha traído Bentinho com seu amigo.

Tracemos um ligeiro paralelo entre as duas obras, Machado e Márai. A meu ver, ambos são do gênero psicológico. Machado explora esse gênero com ardil e extrema habilidade. O seu objetivo é demonstrar que a ficção é, de si, ambígua, como o é o ser humano. No livro, o que se tem é o lado do marido traído, não temos a confissão da suposta traidora. O autor criou o enigma, como extensivo ao ser humano. E o que ocorre em “As Brasas”: a traição é provada, há indícios, até um suposto crime premeditado. Os cúmplices não tentam mais esconder. Khrisztina abandona o lar e Konrad, o amante desaparece da cidade de uma hora para outra, sem deixar pista, um recado ao amigo. São a prova da traição.

Todo sesse imbróglio o leitor só vem saber através das longas falas do General, enquanto o outro, o traidor, se limita a escutar.

Suponhamos agora que o Sr. Sandór Márai queira dizer outra coisa com esse estranho e inconsútil romance praticamente a dois personagens. Ora, ele foi expurgado da sua pátria Hungria. Não significará o romance um libelo a ação dos comunistas que tomaram de assalto sua pátria e sufocaram, ali, as liberdades, inclusive a dele, que teve de homiziar-se nos Estados Unidos? Konrad o traidor, Khrisztina a pátria que se deixa trair, à força de uma ideologia acintosamente contra a dignidade de um povo, uma nação, traída?

Concluindo. Não é um romance de leitura fácil, por causa da constante temporal, que nos dificulta o entendimento, de tal forma que o leitor, nós, afinal, ficamos como quê refém do blá-blá-dialógico.

É o que temos a dizer ao digerir esse pequeno tijolo psicológico.

                                                                             Bsb, 25.07.15

  

                 O NAZISMO BRASILEIRO – PEQUENA

HISTÓRIA : FICÇÃO OU REALIDADE?
                           

                                 Murilo Moreira Veras   


O livro A Segunda Pátria do Sr. Miguel Sanches Neto deu-me a impressão de se tratar, mais do que uma narrativa, espécie de “...samba do criolo doido”, nos moldes da invectiva humorística do escritor carioca Stanislau Ponte Preta.

A narrativa se desdobra algo à la volonté, os entrechos movendo-se sem pé nem cabeça, tantas são suas absurdidades.

- Getúlio Vargas faz pacto secreto com Hitler, envolvendo, além de negócios, a divulgação da ideologia nazista no Brasil?

- O Füher vem ao Brasil a convite especial do então também ditador Getúlio Vargas?

- Hitler – sabido e notório que não gostava de mulheres, mas, sim, de cães e crianças, especialmente seus sobrinhos – em Porto Alegre mantém, em absoluto segredo, encontro erótico com uma brasileira de origem alemã, chamada Hertha, por sinal a heroína do romance?

E não se resumem a este pé as especulações do autor, ao contrário há um crescendo alucinante, espécie de relatório futurista, com o adendo de se referir, de roldão, a um retábulo da história do Brasil, envolvendo o governo de Getúlio Vargas e a Alemanha de Adolf Hitler.

Hertha Sheiffer – a heroína ou melhor, anti-heroína  do romance – é uma brasileira, filha de alemães, de quem se narra uma história estapafúrdia. Órfã de pai e mãe germânicos, ela foi criada pelo tio Onkel Karl, pessoa muito liberal e de vida solitária, que lhe dá a regalia de agir e pensar como bem entende, daí a moça só viver pensando em sexo. Com o tempo, acaba se tornando promíscua, passando a se imiscuir com gregos e troianos, inclusive com Adolpho Ventura, negro criado entre alemães, que conseguiu estudar e se formar engenheiro. Hertha tem filho dele e se diz apaixonada por ambos, filho e pai.

Com este argumento, o autor de certo quer desmoralizar a tese central e razão de ser mesmo do arianismo nazista: as raças superiores, como a alemã, não devem se misturar com as inferiores, que são os judeus, índios, pretos, ciganos, e também comunistas.

São esses os principais ingredientes com os quais o Sr. Sanches Neto constrói este seu romance de trama extravagante, à semelhança de obras fantasiosas como a série criada pelo escritor espanhol J.J.Benitez  Cavalo de Troia  e as alucinações  extraterrestres de Erick von Daniken em seu  Eram os Deuses Astronautas?” – todos usando sua imaginação como donos da verdade.

Então é isto que se vê, um romance pretendendo apreciar um período da história brasileira – o do Governo Vargas – ditador à semelhança de outros ditadores, Mussoline, Salazar, Franco e Hitler, todos, como se sabe, querendo amordaçar nações e amedrontar o mundo à conta de suas ideologias fascistas.

Você sabia, por exemplo, leitor e leitora – de quem sempre se espera sejam afeitos à boa literatura – que Getúlio Vargas não se suicidou, mas foi assassinado pelas mãos de seu mais próximo guarda-costa, o negro Gregório Fortunado, cognominado “Anjo da Morte, o qual, agindo a mando de Oswaldo Aranha, abafou  seu protetor na cama com um travesseiro? Pois é assim que o autor narra, em seu romance, esses acontecimentos, com que considera, assim, errada toda nossa história, agora à luz também do 3º do Terceiro Reich de Adolf Hitler.

O próprio autor coloca entre seus personagens nesta insólita trama um tal Miguel Sanches, descrito como “... Filho de pais espanhóis que chegaram ao porto de Santos para trabalhar nas lavouras de café, em substituição à mão de obra escrava”.

Pois esse senhor Miguel Sanches, adulto se tornou adepto do integralismo e, depois, hitlerista. Não é difícil reconhecê-lo avo do autor, Miguel Sanches Neto. Nasce, então, a dúvida: será que ele não era prosélito do nazismo e assim seu livro é uma espécie de “mea culpa”?

A propósito de livros serem escritos assim de arrojo, acreditando-se com ele bater record de vendagem, observe-se o que escreveu no século XVII, Miguel de Cervantes, autor da obra-prima mundial Dom Quixote, livro editado em 1605 em Madrí, página 503 da edição Editorial Juventud. Trata-se de uma conversa entre Sansón Carrasco, D. Qixote e seus escudeiro palrador Sancho Panza. O assunto dos três é a história, cultura, os políticos e literatos, quando Dom Quixote  se sai com esta: “La historia es como cosa sagrada; porque ha de ser verdadeira, y donde está la verdade, está Dios, en cuanto a verdade; pero no obstante esto, hay algunos  que asi componem y arrojam libros de si como se fuesen buñielos (bolinhos fritos).”

Parece que o nem tão louco quanto parece Dom Quixote, pela pena de seu criador, Miguel de Cervantes, dirigiu esta crítica diretamente a outro também Miguel, escritor do século XXI, com grande peso de verdade. Aliás, convenhamos a crítica se generaliza, cabendo a carapuça a outros autores – esses que lançam livros aos montes no mercado, sem preocupação com a qualidade, mas quantos serão vendidos e a soma arrecadada, os “best-sellers”, atuais bolinhos de letras que fazem furor no mercado da anestesia mental.

Outro aspecto observável neste “Segunda Pátria”, do Sr. Miguel Sanches Neto é que a trama tem certa analogia, não sob a forma de palimpsesto, mas  com algum parentesco com o romance de Graça Aranha, de 1902, intitulado Canãa.

O livro de Graça Aranha, escritor maranhense,  segundo a historiografia oficial teria dado início a uma nova fase no romance brasileiro como exemplário do chamado “romance-tese”, em que o autor combina narração com ideias filosóficas, recheado de pitadas propedêuticas, a se entrechocarem. A síntese da obra de Graça Aranha é o seguinte: dois imigrantes alemães vêem ao Brasil para trabalhar na lavoura de café na região de Santa Catarina,  ambos com ideologias diferentes. Um é universalista e se guia pela lei do amor (Milkau) e o outro é divisionista e só acredita na força bruta (Lentz). O autor inspirou-se nas correntes filosóficas do final do século XIX prenunciando, assim, as  ideias modernistas. Também ali, o autor, considerado germanófilo, narra situações de conflitos ideológicos, com pitadas de filosofia teutônica.




Impressões Pessoais  

              

                Não é meu objetivo desvalorizar essa obra do autor, escritor consagrado e premiado pela crítica, com vários livros publicados. Ocorre que neste Segunda Pátria, a meu ver, o autor desvirtua os fatos históricos, de forma histriônica. Como insinuamos linhas atrás, talvez ele esteja fazendo “mea culpa” ao narrar esta história sobre escaramuças havidas em locais onde vicejaram colônias alemãs, mais tarde transformadas em atuantes núcleos nazistas. Eram verdadeiros nichos onde se cultuavam o arianismo do Eixo, sua doutrina disseminada aos demais colonos: o ódio aos judeus, negros, índios, ciganos e comunistas.

Talvez nisto resida o mérito do livro: uma advertência ao povo brasileiro para que fiquemos todos atentos à infiltração de ideologias espúrias em nosso País. O nosso passado histórico de lutas libertárias, nossos costumes, a fé que ainda cultivamos – tudo isso faz com que o povo não se coadune com regimes autoritários. Inobstante isso, continuamos dando boas vindas ao imigrante, a quem muito o País deve em termos de progresso, ideias e o empreendedorismo por eles praticados.

                                                                                Bsb, 27.05.15


PARIS EM TEMPO DE HEMINGUAY

                                                                                              Murilo Moreira Veras



Sob nosso olhar, o livro de Ernest Heminguay, PARIS É UMA FESTA.

Confesso: da obra do autor só li O VELHO E O MAR, sem dúvida uma obra prima. O que de Heminguay sei é que foi autor muito badalado pela crítica e durante sua vida escreveu relativamente muito, com livros como ADEUS ÀS ARMAS, QUANDO OS SINOS DOBRAM, este filmado e protagonizado por Gary Cooper e Ingrid Bergman.

Este ora sob discussão não me causou grandes arroubos. Na realidade, a meu ver trata-se de memórias, ou seja, reminiscências vividas por um escritor em começo de profissão (tinha à época entre 22 a 27 anos) e narradas mais tarde, em 1957, como explica o autor, portanto mais de trinta anos depois. Heminguay deve ter feito algumas anotações, para poder reproduzir em detalhes o que viveu tanto tempo atrás. Então, para disfarçar ele afirma: “Seja como for, ficção ou não, há sempre a possibilidade de que lance alguma luz sobre aquilo que foi escrito como matéria de fato.”

É possível, sim, que Heminguay tenha escrito matéria de fato, quando revive aqueles seus momentos em Paris e a tudo ele qualifica como sendo uma”festa”. Para o leitor atual, suas memórias não ressuscitam a verdadeira Paris senão uma cidade então pacata, com remotas lembranças dos desregramentos do Período de Terror vividos durante a Revolução Francesa de 1789.

Sua descrição da Cidade Luz nos parece de certo modo tosca e esquálida de emoções, haja vista que se restringe a descrever o comportamento de seus companheiros de ofício, escritores iniciantes ou já tarimbados, mas todos deslumbrados, como Scott Fitzgerald, James Joyce, T.S.Eliot, Gertrud Stein – a célebre Miss Stein – e outros, de fato muito mais medíocres que esses. O que é estranhável é que vivendo naquela época, a chamada Belle Époque, em Paris, não faça referência, por exemplo, a Henry Miller, Anaes Anin, assim com Paul Verlaine, Beaudelaire, Arthur Rimbaud e outros.

Em filme recente, Wood Allen – aquele cineasta americano cujo principal lema é desmoralizar as virtudes e alardear o sexo como item de felicidade eterna –0 rodou um filme intitulado “Uma Noite em Paris” em que a Belle Époque é muito bem retratada, com os escritores em baderna pelos bares, cafeterias, realmente uma festa de bebedeiras e fantásticas elucubrações desses boêmios literatos, como se tudo não passasse de uma farra.

Heminguay, que não parece ter conhecido Wood Allen, nos traz uma visão pessoal. Vê-se nos seus escritos o muito de egoísta e temperamental que era. Teria sido um grande jornalista, segundo a crítica, talvez pelo modo de escrever, de maneira enxuta, matando a cobra e mostrando o pau, no jargão chulo. Gostava de ser elogiado e já aquela época demonstrava ser o máximo e que os demais não sabiam escrever.

O livro PARIS EM FESTA não nos empolga. No nosso entender não passa de certas passagens da vida do escritor em Paris, ao lado da mulher e do filho recém-nascido. Paris não é propriamente uma festa, parece mais um lupanar onde se entretiam meia dúzia de escritores noviços deslumbrados, a fazerem arruaça nas cafeterias, restaurantes e bares. Não nos dá, na verdade, um visão do que realmente era Paris, pelo que Heminguay descreve uma cidade até suja, quase medieval. Interessante são os comportamentos dos personagens apontados pelo escritor e seus amigos de farra e muita conversa fiada. Referimo-nos a Scott Fritzgerald, um escritor snob, demonstrando riqueza sem ter e volúvel como sua esposa, a Zelda, esta totalmente desprovida de tramontana, chegando a ponto de enganar o próprio marido. Aliás, a certa altura, Heminguay  relata  que ela desmiolou-se de vez. No centro de toda essa esbórnia literária estava a figura de Gertrud Stein, espécie de guru, à época, em cuja residência fazia saraus com a presença desses delfins, monitorando o que escreviam e faziam, ela própria uma “fora-da-lei” típica bellepoquiana, matrona, dona da verdade e suas opiniões consideradas sagradas, não se sabe bem porque. Segundo Heminguay, ela também o considerava um bom escritor.

Talvez ai se encontre a parte mais aproveitável na festa parisiense descrita por Heminguay, esses modos de ser de escritores ali envolvidos, como James Joyce, considerado um gênio por Miss Stein, T.S.Eliot e Fitzgerald. T.S.Eliot sabe-se então que era pobre e teve de ser ajudado para manter-se como escritor, quando hoje é tido como uma das maiores  expressões  da poética inglesa, embora fosse natural dos Estados Unidos.  

A festa de Paris talvez se resuma nisso, um prelúdio da Belle Epoque cujos eflúvios, as esbórnias e as bebedeiras sugerem como a origem dos movimentos modernitas nascentes e que se espalharam pelo mundo como modelo de expressão artística, cultural e literária. Tais eflúvios aportaram ao Brasil por navio e encantaram os “hommes des lettres” de então, como Oswald e Mario de Andrade, supostos criadores do modernismo tupiniquim.

Não é de estranhar que respirando tal atmosfera, o Heminguay cultor de uma suposta literatura realista, querendo ser mais realista que o próprio rei e indo mais de vagar com o andor da modéstia, tenha resolvido dar cabo à vida em 1961, um ano após prefaciar seu “Paris É uma Festa.”

                                                           Bsb, 11.05.15


   


O  FIO DE ARIÁDNE  MODIANO


                         

                                                          Murilo Moreira Veras
                 1.   O Autor


Prêmio Nobel 2014, o escritor francês Patrick Modiano é autor de 40 livros, dos quais 30 são romances, portanto é um romancista. É badalado na França, decantador de Paris. Recebeu o prêmio máximo francês, o Goncourt e o Prêmio de Romance da Academia Francesa justo por este livro “Uma Rua de Roma” – em francês Rue des Boutiques Obscures. Escreveu roteiros cinematográficos (Lacombe Lucien, em parceria com o cineasta Louis Malle, em 1974), também autor de livros infantis e não ficção. Enfim: é um verdadeiro “gênio” esse “admirado e festejado pela irretocável beleza de seu estilo claro e fluente” que é Patrick Modiano.

 2.   O Livro, suas Nuanças

 O título em português não revela muita coisa, é vago “uma rua de Roma”, melhor e mais adequado o original, em francês “Rue des Boutiques Obscures”. Porque é a história que se passa numa rua de obscuras boutiques, misteriosos lugares, pessoas erráticas, personagens que se sucedem quase aleatoriamente, nomes difusos – tudo para, numa sequência de capítulos, também confusos,  realçar a amnésia do personagem principal. Aliás, ninguém sabe realmente quem é esse personagem. Guy Rolland, auxiliar do detetive C.M.Hutte? Howard de Luz que também pode ser seu avô? Pedro McEvoy, espécie de boa vida? Pedro Jimmy Stern, mas este teria desaparecido em 1940? O que se sabe é que ele, Guy Rolland, não sabe quem realmente ele é e busca, de forma difusa e como diz o francês, “nonchalement”, quer dizer, preguiçosamente, sua verdadeira identidade, pois perdeu a memória.

Não há negar, é uma narrativa singular, mas extravagante. Para se ter uma ideia da extravagância do autor, seu livro contem nada menos que 35 personagens e cerca de 54 lugares que o tal Guy Rolland percorre ou são apenas citados. O intuito do autor é esgarçar a trama, torná-la cada vez mais confusa, labiríntica, desnortear o leitor, a meu ver, à guisa de uma novela policial ou policialesca. Nosso Rubem Fonseca faria melhor, embora sem o charme desse premiado Modiano. Outro que Modiano quer imitar, mas está longe, em estilística e logística ficcional, é John Le Carré, cujas novelas primam pela aventura, mistério e muita ação.

O livro lê-se quase de um fôlego. O autor propõe logo de início um enigma para o leitor decifrar, ou melhor vai guiando-lhe os passos para, ao final, ousar encontrar o resultado. Ocorre que não existe “the end”, como nos filmes noir. Então a narrativa do Sr. Modiano não deixa de ser uma história noir, de filme, não tem fim, é indefinida, obscura, enigmática.

A segunda orelha do livro parece nos dar uma suposta chave. “La Vie dele Bottegne Oscure”, que teria dado nome ao título do livro, é uma rua existente em Roma que, na década de 1930, integrava o  gueto judaico italiano.

Que chave seria essa? O que essa narrativa quer se referir, melhor, o que representa esse Guy Rolland, desmemoriado, a buscar sua verdadeira identidade? Uma tarja na orelha tematiza: “...Uma narrativa esplendorosamente labiríntica, da qual o leitor sai fascinado para sempre.”

Ousarei fazer uma elucubração a respeito desse enigma proposto pelo autor. Penso que Modiano, o autor, possa ter se inspirado em assunto da Segunda Grande Guerra Mundial. Digo mais, nos filmes de espionagem, notadamente um dos que se constitui, até hoje, um dos maiores enigmas cuja trama não foi elucidada, de maneira totalmente convincente. É o filme “Casablanca”, os protagonistas principais Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Ali não é um indivíduo só que busca resgatar sua verdadeira memória, é a própria história que quer se desvendar, em  si mesma, nos personagens, os quais, observe-se, são todos aventureiros. O enredo é labiríntico. É época da Guerra. Há um americano perdido em Casablanca, dono de um bar, estilo americano, por onde passam inúmeros personagens, policiais, foragidos, espiões, vigaristas, todos ali se mistura, interagem. Fogem do famigerado conflito? Ou fazem parte dele? O americano (Bogart) teve uma paixão no passado, com a belíssima (Bergman), também desconhecida e que atualmente está casada com um foragido, talvez espião. Esses três personagens se encontram no tempo real do filme, em Casablanca, no bar do americano, na realidade também um aventureiro. Bogart vê reacender sua antiga paixão, mas ela, Ingrid,  vive com um espião, de si, perseguido pela polícia. Bogart o esconde no bar, faz parte de sua paixão ajudar. Há uma intriga policial, o marido espião tem de ser repatriado para a Alemanha. Trocando em miúdos: o casal é descoberto, têm de partir num voo noturno fretado. E aquela cena final que simboliza toda a ideia do filme: o casal entrando no avião e Ingrid Berman, chorosa, mas lindíssima, acenando para seu ex-amante Boggart da porta do avião, enquanto este responde com aceno, longe. E o avião parte furando a neblina a envolver o cenário numa atmosfera de enigma e mistério.

Ora o nosso herói – melhor, anti-herói Guy Rolland, que é auxiliar do detetive C.M Hutte, está de partida, porque seu empregador está encerrando a atividade e vai fechar o escritório. O detetive sabe, nebulosamente, que Rolland perdeu e memória e que vai buscar encontrá-la, não sabe onde nem quando. Tudo é nebuloso. Ele pode assumir a identidade de várias pessoas. É Pedro McEvoy, que trabalha na Embaixada Dominicana, amigo de Porfírio Rubirosa – aquele célebre play-boy, na realidade grande vigarista internacional. Mas também pode ser Pedro Jimmy Stern (este teria desaparecido em 1940), bem como Howard de Luz. Qual deles é o verdadeiro personagem?

Na realidade, todos os personagens são vigaristas, de uma forma ou de outra. Ou são contrabandistas, indivíduos indolentes, sem caráter. Há inclusive um tal “Cavaleiro Azul”, que só se tem dele a voz e que parece até ser um assassino.

A narrativa segue um caminho vagaroso. Guy Rolland não parece muito preocupado, vai levando, com uma sucessão de fatos, até desimportantes. Apontam-se ruas, avenidas, cafés, hotéis (geralmente decadentes) de Paris, lugarejos. Os personagens às vezes surgem do nada, aqui e acolá se ligam à trama. Estes são sempre figuras erráticas, não há nada fixo na narrativa. O leitor fica ansioso – se é que há surpresa na leitura do livro, parece mais um filme “déjà vue”. Nada de novo no front dramático.

 3.   Um Fio sem Fim.

 Ao final, a narrativa não tem fim. Guy Rolland não reencontra sua memória perdida, diz que vai para o Pacífico, quem sabe outro personagem fantasma o ajude, um tal Freddie. E é por isso que o livro tem esse nome “Rue des Boutiques Obscures”, porque tudo é obscuro, brumoso, o autor parece não encontrar apoio em sua história.

Outra versão interpretativa viável seria que o Sr. Modiano quer se referir à atmosfera, em Paris, à época da Segunda Grande Guerra. A vida não faz sentido, o mundo parece perdido. O gueto de “La vie delle Bottegne Oscure” em Roma é o mesmo gueto de Paris. O pós guerra é asfixiante, cria uma vigarice generalizada. O judeu deixou-se cordeiramente ser levado para os fornos nazistas. Nonchalement, sem reagir. Guy Rolland consegue se salvar do forno da mediocridade. Onde está a bela Denise Yvette Coudreuse? Caiu numa armadilha, a armadilha da fuga do inferno nazista. Ela própria uma ladra, uma vigarista, que se deixou prender? Denise seria Ingrid Bergman que perdeu também o amante. Não é um avião atravessando a neblina, mas um carro cujos viajantes foram aprisionados na fronteira.

 4.   Reflexões Ficcionais Recorrentes

 O romance do Sr. Modiano tem qualidades ficcionais, está bem escrito, tem estrutura moderna, capítulos curtos, tanto quanto um “best-seller”, digamos “light”, desses que não visa o mercado fácil. Seu estilo é objetivo, mas, a nosso ver, falta-lhe agilidade, atmosfera de um verdadeiro suspense, como policial também falha, desprovido totalmente de ação. Romance de amor também não é, foge-lhe o sal, o necessário voyeurismo – inexistem cenas de sexo no livro. Em certos momentos decai na vulgaridade. Os personagens – que absolutamente não são redondos como requer a boa psicologia romanesca – são frágeis, evasivos, desfibrados de caráter. Muito diferente dos personagens, por exemplo, de um romance como “Trem Noturno Para Lisboa”, com figuras fortes, expressivas, bem urdidas psicologicamente.

Cá aos meus botões, fico imaginando se um romance como “Dom Casmurro”,  se tivesse sido escrito por um autor francês, certamente teria arrebatado das mãos do S. Modiano o prêmio Goncourt que recebeu por este “Uma Rua em Roma” ou “La Vie des Boutiques Obscures”. E o que dizer da surpreendente novela “Noite”, de Érico Veríssimo, narrando as peripécias noturnas de um desmemoriado em Porto Alegre? Ou o interessante “Os Tambores de São Luis”, uma história do Maranhão vivido em um só dia por um personagem? E cito também a novela “Maria da Tempestade”, com que João Mohana estreou o modernismo em São Luis. Mas seus autores não são franceses, mas brasileiros cuja nação, o Brasil, segundo Charles De Gaulle “.. n’est-ce pas um pay sérieux.”

                                                                           Bsb, 27.03.15




  







                           







REFLEXÕES SOBRE A HISTORIA DA LITERATURA ALEMÃ

                                                  

                                             Murilo Moreira Veras


Em discussão, o livro “História Concisa da Literatura Alemã”, o autor é Otto Maria Carpeaux, austríaco, que emigrou para o Brasil, aprendeu nossa língua e tornou-se jornalista, escritor,  também crítico literário e tem uma extensa obra.

Por enquanto dispenso dizer se foi adequada a indicação, apenas pretendo refletir sobre alguns aspectos do livro. Afinal, alguns  traços nos une à cultura germânica, haja vista que houve, no passado, autores brasileiros  que a admiraram, como Tobias Barreto, Manuel de Oliveira Lima, Lima Barreto e supreendentemente Monteiro Lobato, segundo artigo de Rafael Ban Jacobsen (site AMALGAMA). Sem falar em João Ubaldo Ribeiro, que disse ter morado na Alemanha.

A literatura alemã não exerceu influência apenas na Europa. A cultura ocidental  deve tributo a luminares germânicos,  como Goethe, Hegel, Nietzsche, Rilke, Heidegger, Thomas Mann e tantos outros.

É sob esse enfoque que fazemos esse comentário, onde refletimos sobre as influências que escritores germânicos exerceram sobre a literatura mundial. Repito: não  iremos confrontar e analisar autor alemão com estrangeiro, como seria ideal. Limitamo-nos aos nossos objetivos que é ler e discutir o livro de Carpeaux, cotejando os principais escritores alemães, cujas obras tenham consonância com a literatura mundial e também com a nossa.


1. Idade Média


Otto Maria Carpeaux, a título de “concisa”, nos apresenta uma visão panorâmica da literatura germânica a partir de suas raízes. E seu ponto de partida é a cristianização, isto é, quando os povos teutônicos se confrontaram com os monges beneditinos. Assim, a civilização alemã, propriamente dita, inicia com esses monges, fundadores, ali, dos primeiros conventos. O latim era fundamental nessa época.

- São Bernardo (680-750)

- Heliand (“O Redentor”) – o Evangelho versificado;

- Einhart - Biografia do Imperador Carlos Magno.

Com o recuo do latim, surgiu a literatura dos leigos:

- Otto von Freising (1114-1158) – temática dos cavaleiros, política com inspiração mística.

- Walther von Der Vogelweide (1114-1158) – o maior poeta alemão da Idade Média.

- Heinrich von Veldeke (1180) – holandês que escreveu em alemão, sua “Eneit” – inspira-se na “Eneida”, de Virgílio.

- Gottefried von Strassburg (1210) – escreveu o poema “Tristão e Isolda”, baseado em Thomas de Bretagne, em que se baseou Wagner para compor sua ópera do mesmo nome.

- Wolfram – o poema “Parzival” inspirou outra ópera de Wagner “Persival”, nele também se inspirando Goethe (“Wilhem Meister”) e Thomas Mann.

Fim do século XV, a literatura era decadente na Idade Média.  Tempo dos “goliardos”, estudantes de teologia que frequentavam tavernas e bordeis, a exemplo do poeta francês François Villon.

No período, surgiu um manuscrito do convento beneditino, hoje conservado na Biblioteca Estadual de Munique, chamado “Carmina Burana”, a mais lírica poesia individual  da Idade Média.

- “Canção dos Nibelungos” era um poema épico anônimo (1205) cujo autor talvez fosse austríaco, tendo inspirado a ópera “O Anel de Nibelungos” de Wagner. Em termos de mérito, a ópera figura ao lado de “Chanson de Roland” e “El Cid” –  como se sabe,  a maior façanha de toda a literatura.

Literariamente, o século XV foi decadente, em todos os setores, inclusive linguístico. Reinava na Alemanha o dialeto da Boêmia, próximo ao saxônico, no qual se expressou inclusive Lutero.

Em meio a esse marasmo, havia fenômenos isolados como o escritor Sebastian Brant (1458-1521), que influenciou  Erasmo de Roterdam, na Holanda e Gil Vicente na Espanha.

Observe-se que dos círculos da chamada “Devotio Moderna” nasceram dois monumentos: a “Imitação de Cristo”, e principalmente a obra de Erasmo, precursor da Reforma.

É  a época do humanismo que não se compara absolutamente com o francês de Montaigne, tampouco do inglês.

Os principais expoentes do período foram:

- Erasmo de Roterdã (1466-1536), que era holandês, autor do “Manual da Ética Cristã-humanista”, terrível arma contra o clero romano. Foi atacado tanto pela Igreja quanto por Lutero.

- Martin Luther (1483-1546) – Lutero – espírito medieval formado pela leitura da Bíblia e, também de Santo Agostinho. Ele que tinha contatos com Pascal, Kierkergaard, portanto, uma espécie de “Anjo e Demônio”.  Carpeaux dá-lhe o epíteto de  o maior prosador e gênio linguístico”.


2.O Pré-Barroco e o Barroco Alemão


Passemos para o século XVI. A literatura deixa de ser literatura para se tornar um documento histórico. O humanismo propriamente dito se divorcia da Reforma e torna-se canônico. Em 1587, é publicado em Frankfurt “A História do Dr. Joannes Faust”, livro que inspirou Marlowe, Lessing, Goethe e até mesmo Valéry e Thomas Mann.

Adentramos ao Barroco, quando a literatura alemã começa a ser valorizada. Dir-se-á que o século XVII cultiva já a alta literatura. Observe-se que Shakespeare só foi conhecido na Alemanha 150 anos depois. É fundado o Teatro Vienense e a literatura provem  de um grupo de aristocratas juristas, burocratas, teólogos protestantes e cientistas.

O Barroco alemão difere do protestante inglês e holandês, pois é pobre, tem costumes brutos, inseguro em termos de religião, reunindo beatos maquiavélicos, lascivos e também, por vezes, mártires. Isso inclusive demonstra sua inviabilidade cultural.

Por essa época despontam os famosos “corais” da Igreja Luterana, principalmente os expressos nas fantásticas cantatas de Johann Sebastian Bach. Surge o maior hinógrafo, o autor Paul Gerhardt (1607-1676), obra essa composta durante a famigerada Guerra dos Trintas Anos.


3.Século XVII


O século XVII é rico em poesia na Europa inteira. O maior poeta católico foi Johannes Scheffler (1624-1677), autor de “Angelus Silesius”, o “Caminhante Angélico” como ficou conhecido – obra, por sinal, próxima ao panteísmo.

Christian Hoffmann von Hofmannswald (1617-1673) e Daniel Casper von Lottenstein (1635-1683) se especializaram em poesia erótica, lasciva embora gongóricas.

No período, destaca-se uma obra barroca em prosa: “O Aventuroso Simplicio Simplicissimo”, o autor é Jacobo Grimmelshausen (1622-1676), espécie de panorama da época,  romance picaresco como o Dom Quixote, de Miguel de Cervantes.

4.Século XVIII


Estamos agora no século XVIII. O barroco já passou para o esquecimento. Aliás, tal como ocorreu no Brasil, o barroco parece não ter existido. Pior na Alemanha, pois, é o único país da Europa que não tem literatura alguma, no momento. É tempo de racionalismo.

A grande enciclopédia não é literária, mas musical e chama-se Johann Sebastian Bach (1685-1750), que, pouca gente sabe, pertencia à Sociedade de Ciências e Filosofia de Leibnitz – uma mistura de pietismo e racionalismo. E pasmemo-nos: foi amigo de Voltaire e de d’Alembert, ambos rebeldes religiosos.

A literatura deste século é protestante. Corneille, o teatrólogo e Racine, poeta clássico, não foram compreendidos na Alemanha. O primeiro poeta moderno nesse tempo é Christian Gellert (1715-1769, sobre quem Frederico, o Grande teria dito: “... o único sábio razoável entre os alemães.”

Internacionalmente famoso foi Frederich Klopstock (1724-1803)  divulgador da língua. A epopeia “Der Messias” é uma espécie de continuação de “Paradise Lost”, de John Milton, o poeta luterano,entretanto, mais esperançoso, sua temática a reconciliação de Deus com o mundo, o sacrifício de Cristo e o perdão geral.

Romance de formação nessa época foi a “História do Jovem Agathon” de Christoph Weland (1733-1813). Já Georg Lichtenberg (1742-1799), mais moderno, antecipou as ideias de Nietzsche e Freud, inclusive desafiou a cidade universitária em que lecionava, vivendo em concubinato. Cita-se também Moses Mendelssohn (1729-1786), aliás, o primeiro judeu na literatura alemã, autodidata, pobre, mas inteligente, espírito tolerante, embora fosse tímido. Seu neto foi o famoso compositor Felix Mendelssohn, criador de memoráveis peças musicais.


5.O Pre-Romantismo


A maior expressão literária à época foi Gothold Ephraim Lessing (1729-1781), tão universalista quanto Voltaire, Pope e Samuel Johnson, sua peça dramática “Klinger” assinala o pré-romantismo.

Segundo Carpeaux, o pré-romantismo alemão inicia-se com  “Wherther”, uma novela epistolar, escrita por Goethe, que se tornou  um verdadeira revolução amorosa à época, acarretando uma sequência de suicídios entre jovens. Já Johan Heinrich Voss (1751-1826), notabiliza-se pelas traduções perfeitas da “Odissiea” e “Ilíada”, o autor reconhecido por Goethe e Schiller.   

Como pré-românticos, Carpeaux inclui vários autores, aqueles que iriam anteceder dois grandes expoentes da literatura não só alemã, mas mundial: Goethe e Schiller. O livro “Whether” é um prenúncio da fortuna clássica de Goehte.


6.Período  Clássico


O período seguinte abrange duas correntes: a clássica e a anticlássica. Tempo da burguesia cujos principais ídolos foram Goethe e Schiller. Mas, neste século XIX,  surge, outros luminares: Immanuel Kant (1724-1804) – a construção do mundo pelo espírito humano e a arte como ocupação desinteressada das atividades espirituais.

Johann Friederich von Schiller (1757-1805), amigo inseparável de Goethe, professor da Universidade de Iena, conselheiro do teatro de Weimar, dirigido por Goethe. É autor de grandes poemas filosóficos: “Ideias”, “O Ideal e a Vida”, “O Passeio”, mestre no gênero épico-dramático. Afastou-se de Shakespeare, mas sem se aproximar dos gregos.


7.Os Românticos



Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), o maior poeta clássico da literatura, um dos iniciadores do romantismo europeu. Sua vida a história de um temperamento romântico, filho de família burguesa de Frankfurt. Na Itália, produz a safra mais rica de sua vida. As “Elegias Romanas” são o poema erótico mais ardente da literatura moderna. Estudou o filósofo Espinosa, Mineralogia, Botânica e Anatomia, tendo, inclusive, antecipado as ideias darwinistas. Em “Conversações com Goethe”, Eckermann eterniza as concepções e os sentimentos do grande escritor alemão. Hermann Hesse, outro autor famoso, em “Jogo das Pérolas de Vidro” inspirou-se na obra de Goethe “Anos de Viagem de Hilhelm Meister”. Fato curioso, inclusive paradoxal: embora idolatrado pela Alemanha e também pelo mundo, os “hegelianos” da esquerda, assim como cientistas e tecnólogos, combatiam-no e o odiavam, inquinando-o de “velho reacionário”, “ o aristocrata”, “homem dos tempos passados”. Enquanto isso T.S. Eliot, o grande poeta inglês, afirma: “Goethe teria sido mais um grande sábio do que um grande poeta.

O romantismo é um movimento literário especificamente alemão, os demais noutros países dele tributários. Joann Gottlieb Fichte (1762-1814), filósofo, foi quem lhe deu origem. Devido a seu irracionalismo, contribuiu com o ideário para o nascimento do nacionalismo exacerbado de que se originou o nazismo.

Outro nome proeminente é Novalis (pseudônimo de Frederich von Hardebberg – 1772-1801), católico não convertido, grande poeta, cujo livro “Hinos à Noite” é tido como o maior monumento poético do romantismo alemão. Em “Fragmentos”, antecipa a psicanálise e a moderna filosofia da natureza. Tem-se também como antecipador do simbolismo e dos poetas simbolistas.

Joseph Freiherr von Eichendorft (1778-1857), ponto alto do romantismo, teve suas obras musicadas por Brahms, Hugo Wolf e Roberto Schumann.

Catalogados como românticos, temos ainda pelo menos três escritores importantes: Hegel (1777-1834), Humboldt (1769-1859) e Schopenhauer (1788-1860). Hegel, considerado o maior filósofo dos tempos modernos, com obras como “Fenomenologia do Espírito” e “Filosofia do Direito – livros por sinal de difícil leitura, aliás característica do autor, mais incompreendido do que compreendido, pois, ora defende a monarquia, ora propaga o socialismo político. Humboldt por sua obra “Kosmos”, panorama do Universo. Já Schopenhauer, o máximo do pessimismo alemão, cultuava o budismo e a filosofia indiana.


8.Os Revolucionários


Carpeaux analisa agora o que ele denomina período “pré-Revolução e Revolução”, já referindo-se ao século XIX. Assinalamos os mais conhecidos e que, de alguma forma, contribuíram para o conhecimento do cultura alemã:

- Henrich Heine (1797-1856 – considerado o coveiro do romantismo;

Ludwig Feuerbach (1804-1872) – que muito inspirou a doutrina marxista;

Karl Max (1818-1883) – suposto filósofo, com ares de economista, fundador da ideologia em que se baseia o comunismo. Aliás, Carpeaux o coloca como figura da história universal, não da literatura.


9.Século XIX


No século XIX, segundo Carpeaux, todos os escritores alemães são nacionalistas. Acrescenta que o positivismo alemão da época nada tem a ver com Auguste Comte. Não se trata de uma filosofia, mas uma atitude anti-filosófica.

Na literatura alemã agora o novo personagem é Nietzsche (1844-1900). E segundo este o grande Reich não tem cultura, é um reino de bárbaros e ignoram a realidade. Estamos no raiar do século XX. Os livros do autor de “Assim Falou Zaratustra”, espécie de novo evangelho do super-homem, foram impressos à sua custa. Passou dez anos no manicômio. Estranhamente é lido e publicado até hoje.

São  expoentes da época:

- Rainer Maria Rilke (1875-1926) – sua principal obra  “Livro das Horas”, uma grande meditação sobre Deus, o amor, a pobreza e a morte, o vocabulário mais místico do que cristão;

- Thomas Mann (1875-1955) – considerado o clássico da literatura alemã, assemelha  Balzac, Stendhal, Flaubert, Hardy, Henry James e Conrad, seu livro principal: “A Montanha Màgica”;

- Martin Buber (1878-1965) – escreve sobre a cabala judaica.

Carpeaux data o nascimento do expressionismo alemão entre 1910 a 1914. O maior poeta foi Gerge Heyn (1887-1912). Citamos alguns mais:

- Walter Benjamin (1892-1940) – faz crítica marxista sem o determinismo econômico;

- Ernst Bloch (1886-1977) – socialismo religioso;

- Georg Kaiser (1878-1945) – escritor habilíssimo, escreveu 50 peças;

                   - Hermann Hesse (1877-1962) – poeta e novelista, assemelha-se a Rimbaud, Valéry, T.S.Eliot e Maiakósvski.



             10. A República de Weimar


A Alemanha parece perdida: o imperador e outros monarcas exilados, aristocratas despojados do poder, o exército dissolvido, a burguesia ameaçada pelos proletários revoltados e camponeses desesperançados.

Assinalamos a seguir os autores essenciais:

- Oswald Spengler (1880-1936),autor de “O Declínio do Ocidente” que influenciou Tynbee;

- Wilhelm Dilthey (1833-1911) com “A Experiência e a Poesia”;

Werner Jaeger (1888-1961), autor de “Paidea”, a formação do homem grego;

- Max Weber (1864-1920), o mais notável em economia política e história econômica, um dos fundadores da República de Weimar;

- Karl Manheim (1893-1947), com “Ideologia e Utopia”;

- Stefan Zweig (1881-1942) – segundo Carpeaux, suas biografias são belíssimas;

- Robert Musil (1880-1942) sua obra-prima “O Homem sem Qualidades”;

Max Scheller (1875-1928) modernizou o mundo católico com “Da Revolução dos Valores”;

- Ernst Juenger (1895-1998) um dos maiores prosadores em língua alemã, mas admirador de Heidegger, no entanto uma figura isolada;

- Erich Maria Remarque (1898-1970) – “Nada de Novo no Front Ocidental”;

- Bertold Brecht (1898-1956) um dos dramaturgos mais representados no mundo, com inúmeras peças de sua autoria, dentre as quais “O Cícrulo de Giz Caucasiano”;

-  Franz Kafka (1883-1924), um dos autores mais lidos ao lado de Rilke e Thomas Mann. Muito citada é “A Metamorfose”. Sobre o escritor diz Carpeaux: “... Kafka foi um “displaced person”: criou símbolos de uma humanidade “displaced” no Universo.


11.Contemporâneos


Os doze anos de regime nazista constituem, na visão de Carpeaux, uma cesura na literatura alemã. E acrescenta: a literatura alemã não merece autores, pois não vale nada.

Dentre os contemporâneos, destacam-se dois autores:

- Gunter Grass (1927), autor de “O Tambor” em estilo brutalmente naturalista. E “Anos de Cão” – a história da vida do cão predileto de Hitler;

- Theodor Adorno (1903-1969), último dos grandes doutores do marxismo. Músico de profissão, pensador formado nas leituras de Hegel.

A análise de Carpeaux sobre a literatura alemã cessa em 1960. Coube a Stefan Wlhelm Bolle continuar esse trabalho no artigo “Á Sombra do Muro”. Por razões óbvias, dispensamo-nos de sua análise.


                                                                         Bsb,11.03.15









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