O QUINZE — A GRANDE SECA
Murilo Moreira Veras
O livro para discussão
no próximo encontro no Clube do Livro, 24.04.25, é O QUINZE, a epopeia da maior
seca no Ceará pela pena da escritora cearense Rachel de Queiroz. Vale dizer que já lemos livros da autora.
1. Prólogo
A autora tem
carreira literária muito lisonjeada, pertence a Academia Brasileira de
Letras e sua obra laureada, inclusive com o famoso prêmio Camões. Lembremos que
ela impressionou o leitor pelas crônicas editadas pela revista Cruzeiro, sob o
título Última Página. Ganhou fama,
dinheiro inclusive por novela adaptada pela Globo, as Três Marias, que ela diz não ter gostado. Sabe-se que foi filiada
ao Partido Comunista, mas desvinculou-se dele, também apoiou a Revolução
Militar de 64, devido seu primeiro presidente ser o General Castelo
Branco, cearense como ela, mas deixou depois de
apoiar o movimento.
Em termos de fortuna
crítica, o livro teve encômios positivos de Augusto
Frederico Schmidt, Mário de Andrade e Davi Arrigucci Jr. e prefácio de Elvia
Bezerra. Vê-se que o livro granjeou prestigio inusitado, à custa dos
suposto melhores críticos do País, pelo menos à época.
2. Enredo
A autora diz ter escrito este livro aos 20
anos, muito nova, mas que já praticava a escritura desde os 12. O assunto é a
grande seca no Ceará em 1915, tanto que o título, em tradução francesa, ficou
como L’Année de la Grande Secheresse.
É a história de uma família retirante impelida pela a terrível seca que sofreu
o lugar chamado Logradouro, interior
do Ceará, região do Cariri, sempre sujeita à seca. É a família de um vaqueiro,
o Chico Bento, empregado daquele sítio, propriedade de Vicente, herdado dos
pais. Com a seca desbragada que atacou toda aquela região, Vicente, o
proprietário, obrigou-se a despachar o vaqueiro. Chico Bento, com a mulher
Cordelina e seus cinco filhos, teve que
sair, por conta e risco próprio, e cuidar da vida, sem indenização, só a
palavra seca do proprietário. Não tendo direito ao trem, como alguns poucos
tiveram, o vaqueiro Chico Bento com a mulher e uma trempe de filhos ainda
pequenos, teve que enfrentar a retirada a pé, em busca
de uma espécie de Eldorado, que seria o Amazonas, onde poderiam ter vida melhor
e escapar da tragédia. A travessia que eles fazem é terrível, passam fome,
chegam a esmolar, sofrem decepções horríveis. Um dos filhos morre por ter
comido uma planta venenosa. O mais velho, de 12 anos, na caminhada, acaba
fugindo, tentando livrar-se da fome e nunca mais é visto. O menor a mãe tem que
se desfazer de um dos filhos, por estar em situação crítica, doa a Conceição, a
neta de Dona Inácia. Conceição é uma das principais personagens da estória. Com
ela, corre outra linha de narrativa no
livro — um affair amoroso, subliminar.
Vicente oculta uma espécie de paixonite por Conceição, sua prima e neta de Dona
Inácia, a matriarca da família. Mas há um desentendimento entre os dois, a moça
é professora e não tem nenhuma vontade de casar, conquanto tenha uma certa
inclinação pelo primo. Já ele nutre uma paixão enrustida pela prima. Por fim,
com o comportamento arredio dela, acaba se desiludindo.
Depois dos trancos e barrancos que Chico Bento
passa com a família, com a ajuda de Conceição, esta com sua influência junto as
autoridades, consegue passagem em vapor para São Paulo. Para aliviar o fardo,
Cordulina e Chico Bento deixam o filho mais novo, que estava muito magrinho,
com a madrinha. E Conceição aceita e vai criá-lo como filho. O livro termina
com a chegada da chuva.
3. Impressão e Conclusão
Este relato da maior seca havida no Ceará
completa 95 anos, a autora a famosa escritora Rachel de Queiroz, falecida há 22
anos. A nosso ver, a autora sofreu influência de A Bagaceira, do paraibano José Américo de Almeida, talvez o
primeiro a tematizar o infortúnio da seca de 1915. O assunto seca nordestina viralizou à época em
autores como José Lins do Rego, com Menino
de Engenho, Graciliano Ramos Vidas
Secas. Também João Cabral de Melo Neto, com seu famoso Morte e Vida Severina. A autora assegura que escrevia desde os 12
anos e que lia autores famosos, Dostoievski, por exemplo. De alguma forma, ela
se imbuiu desses relatos. Nota-se pelo peso trágico das palavras, a descrição
da miséria, a linguagem seca, igual a aspereza do sertão, a fala dos
personagens, dura, direta, rascante, o dialeto rude dos sertanistas.
Não é uma estória agradável, é miséria pura,
urubu estraçalhando carne morta, criança com fome engolindo planta venenosa.
Criança morrendo, sem alimento. Miséria. Ingratidão, perversidade. Abandono
total das autoridades. Mas, Enfim, vem-nos a telha: por que o vaqueiro, trabalhador da fazenda do
proprietário há tanto tempo não foi indenizado? Deixou-o abandonado com a
família de mulher e cinco filhos?
Houve época em que, à busca de conhecimento
literário, ousei ler tudo quanto foi livro, coisas boas e ruins ou péssimas.
Hoje sou muito mais
seletivo, em termos de leitura. Lí tudo o que seria a fauna literária do
chamado modernismo brasileiro. Penso que a escritora,
influenciada por certa literatura negativa, usou neste livro o sensacionalismo.
O livro da autora é interessante como relato até mesmo histórico do que foi
essa terrível calamidade no Ceará.
Bsb, 17.04.23
MACHADO — BIOGRAFIA LITERÁRIA
O livro em pauta para
discussão no próximo dia 28.11.24 é MACHADO, o autor Silviano Santiago,
escritor, crítico, ensaísta, doutor em letras pela Sorbonne e não sei quantos badulaques
mais. O autor premiado pelo Camões 2.022.
Sobre o livro farei
apenas uma apreciação sob minha modesta ótica. Se critica for, perdoem-me os
amigos e amigas, a culpa é da minha leitura, dos parcos conhecimentos que tenho
sobre literatura e talvez o fato de não
me levar por esses presunçosos que
considero verdadeiros saltimbancos literários à busca de louros.
Entrementes, à guisa
de crítica, meço minhas considerações, conforme os mandamentos da verdadeira
crítica, criados pelo próprio Machado de
Assis — que também foi crítico literário. Um deles, o principal, por sinal, é
de que o crítico nunca deve depreciar o criticado, ao contrário sempre
encorajá-lo e dar-lhe, se for o caso, os esclarecimentos necessários.
No caso em espécie, em
que leio o livro de tal sumidade, sinto-me até meio receoso em ousar criticar
essa potestade em que se tornou, em nossas letras, o sr. Silviano Santiago. Primeiríssima coisa:
não sei com catalogar seu livro, se memórias, descrições, biografia, ensaio,
memórias, generalidades, dissertações, tratado de medicina ou considerações
gerais e etc.
Eis o que penso sobre
o livro:
1 — Machado é
comparado a Flaubert, ambos são escritores e epiléticos e daí segue-se uma
lenga-lenga sobre o assunto (págs. 13 – 47);
2 —- Cheio de salamaleques, como se Machado fosse
igual, o autor cita Marcel Proust e faz o que Jorge Amado alcunhou de laisser
faire laisser de parler, o leitor fica confuso. Lembro a famosa carta de
Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal
sobre as novas terras descobertas — em se plantando tudo dá, o
negócio é escrever, encher páginas;
3 — O autor escreve como se fosse uma
metralhadora, é um sábio ou um doidivana literário?
4 — Relembra o suposto romance havido entre
Machado e D. Georgina Cochrane, esposa de José de Alencar, amigo de nosso
biografado. Trata-se de um imbróglio amoroso, criado por certos críticos de
plantão, que ficam mexericando sobre a vida particular de escritores famosos. A
propósito, o sr. Antônio Carlos Sechim, também da ABL, fez palestra, revelando
esse caso, inclusive informando que Mário de Alencar, filho de José de Alencar,
seria na realidade filho biológico de Machado;
5 — O autor sem
perceber o mal gosto da informação, expõe uma verdadeira catapulta de notícias
do trivial carioca à época de Machado, como que colocando o escritor na
berlinda dos fatos;
6 — O que nos é
intrigante é que o autor abusa da
amizade entre Machado, já ancião e doente, e Mário de Alencar, os dois sofrem
do mesmo pesar, a epilepsia — o fato diagnosticado pelo dr. Miguel Couto,
clínico de ambos.
7 — Observe-se o Cap
VIII, pags. 292/378, cujo título é A Faca têm duas pontas, uma delas
assassina — o título é realmente surrealista. O autor inspeciona e
aproveita a vulnerabilidade de Machado, especulando sua literatura e cria
detalhes fantasiosos, quando ele, o velho Machado faz confidências a seu amigo
Mário;
8 — Embora elogie
Machado, considerando-o um grande escritor, o autor critica, até mesmo de forma
cruel, toda a literatura do Mestre, com que se alia a seus inimigos, Silvio
Romero, José Veríssimo, Araripe Junior e Capistrano de Abreu, agora
alinhados aos estrangeiros, também críticos da literatura brasileira, como John
Gledson, Paul Dikson, Helen Caldwell e Susan Sontag, todos americanos,
certamente por inveja da obra universal e imortal de Machado de Assis.
9 —
Último capítulo – Transfiguração. Pensei que o autor se recompusesse de
seus aleives velados à obra e à pessoa de Machado. Mas prefere usar um escape,
apela para a ilusão, a identificar a pessoa inusitada que teria sido Machado. Compara-o
ao menino que retrata Jesus no quadro famoso de Rafael — Nossa Senhora e o
Menino Jesus. Insinua que o Menino Jesus do Quadro é o menino negro,
carioca que se tornou escritor.
Vêm-me à
mente a peça de Shakespeare Júlio César, depois de seu assassinato, quando
Marco Antônio no Senado, concita os senadores com estas palavras:
“The evil
that men do, lives after them,
The good
is off entered with their bones.”
Ou seja,
no idioma do velho Machado — “ O mal
que os homens fazem, vive para sempre, o bem é sempre enterrado com seus
ossos.”
Bsb,
21.11.24
OLISMO DE JON FOSSE
Murilo Moreira Veras
É a Ales é o livro a ser
discutido no Clube do Livro no próximo dia 31.1024. O autor é Jon Fosse,
escritor norueguês, segundo postado na capa do livro editado pela Cia das Letras
— “Um dos maiores escritores da Europa” conforme o escritor Karl Ove
Knausgard. Resta dizer que o autor Jon Fosse recebeu o maior galardão mundial
de literatura — o NOBEL 2023.
De antemão devo
informar aos companheiros que indiquei este livro por dois motivos: Primeiro
porque é obra premiada pelo Nobel e segundo, porque gostaria de ouvir a opinião
de nossos novos críticos e apreciadores das letras, no Clube, no que se refere
a uma escritura literária mais moderna, não só moderna, mas sobretudo
diferente, simbólica, melhor dizendo. É o teor deste livro desse escritor
norueguês.
1.
Enredo
Devo logo dizer que não é fácil deslindar o enredo de É
a Ales. Não sei se sabem, creio que sim, que as categorias da prosa
literária, depois do classicismo, naturalismo, realismo, surgiu várias formas
de expressão literária sob a égide do chamado modernismo. Dentro desta
modalidade, autores há que ousaram escrever de forma diferente, até mesmo para
se contrapor a certas imbricações utilizadas por certos escritores, à guisa de
virtuosistas na arte de escrever. É assim que surge o simbolismo, inclusive
fonte da chamado o realismo fantástico, usado e abusado pelos escritores
sul-americanos, Garcia Marques e quejandos, em Portugal o tão aclamado pela
nova crítica, Saramago.
Tentarei, resumidamente, deslindar o enredo do livro de
Fosse. No início, a cena é trocada por dois personagens Ales e Signe, sua
esposa. Signe está muito preocupada com a saída que seu marido Ales quer fazer,
numa fria e chuvosa noite nos fiordes. Ele diz que vai dar uma volta no seu
barco nos fiordes, que voltará logo. Ela continua apreensiva, com medo de
acontecer alguma coisa. Mas ele acaba saindo, enfrenta o tempo, mas volta são e
salvo. É então que as coisas se embricam, porque agora já entram em cena outros
atores, Kristoffer e Brita, cujo filho de sete anos, que também se chama Ales, saiu para os fiordes num barco muito frágil. Acontece
que o menino que estava com o pai, acabou afogado e o pai o traz nos braços,
morto. Brita, a mãe, não acredita que o filho morreu e pede que viva. Aparece
ainda outra figura a Avó, que tem também o nome de Ales, para confundir ainda
mais.
Assim, Signe a todo instante se recorda da tragédia,
embora tenha ocorrido há alguns anos, tragédia que ela transplanta para o
marido, que se chama Ales, o menino morto na tragédia, que também se chamava
Ales. Ora, o que significa isso? Não seria a tragédia de nosso tempo, as
famílias afogadas nos barcos da artificialidade? Os seres humanos fragilizados
por suas próprias estroinices, lutar contra a natureza, as verdades
consagradas? O naufrágio não seria o ser humano sem sentido nesta vida? A
família perdida com seus entes naufragados pela inépcia, afoiteza e falta de
sentido?
2.
Impressão Final
Confesso que o livro É a Ales de Jon Fosse me
impressionou muito. Acredito mesmo que o livro tenha vários significados, que
não se trata de uma simples narrativa. Observe-se, por exemplo o final — que
considero fantástico, até mesmo com sentido metafísico. Cito-o in-verbis:
“e ela olha para ele então desvia o olhar para o nada leva
as duas mãos à barriga e fica de mãos postas e eu ouço Signe dizer, Jesus me
ajude “
Bsb, 12.10.24
MINHAS GAVETAS
DO MONSTRO
Murilo Moreira Veras
Kacal Pires é poeta de
Brasília-DF e o livro que acaba de publicar com ilustrações de Adriana Moraes —
tem o título de Minhas Gavetas do
Monstro.
Trata-se de uma
coletânea de poemas constante de 253 páginas. O Autor é nosso conhecido de longas datas — desde
quando seu pai, Abelardo de Gomes Pires, nos mostrou seus primeiros
poemas, isto há mais de meio século, ele, o autor, um rapaz de doze ou treze
anos. Na ocasião disse a meu amigo: Esse menino vai longe. E foi. Ai
está o poeta, agora já adulto, com este fabulário completo de poemas, temas ora
simples, ora complexos, pequenos desvairos aéticos, extravasando éclogas de
pequenos e grandes desvios de nossa atualidade.
Até o título desse
poemário é original: Minhas Gavetas
do Monstro, no qual apresenta estratos e relatos da poética do autor. E
mais, estão arrumados nas Gavetas de uma antiga escrivaninha de mil anos de
cujas gavetas se desvelam criaturas originais, diabinhos ousados e soturnos,
enfurecidos talvez — a nos surpreender com suas artimanhas, ora alegres, ora
tristes, sonhos e lembranças, as quais, por incrível que pareça, nos agradam.
Pequenas lembranças, instantes voláteis, raciocínios atemporais, ideias
originais de saltimbancos sonhadores — basta que o classifiquemos em nosso
dicionário mágico de poesia.
Ora, nesses estranhos
tempos em que nós vivemos, os ardilosos poemas de Kcal Pires nos enlevam, nos
fazem lacrimejar, sonhar ou simplesmente nos enredar nessas moderníssimas
artificialidades, as quais, no entanto, nos tornam mais leves, gratos e fazem
de nossos momentos ociosos idílios de blandícias e fantasias.
Bsb,
8.10.24
ULYSSES – A GUERRA DE TRÓIA
Murilo Moreira Veras
“O Meu nome é Ninguém – O Juramento” — eis o livro para discussão no dia 25.10.23. O autor é Valério Massimo Manfredi, arqueólogo italiano e escritor.
1.Prólogo
Trata-se da história da famosa Guerra de Tróia, um dos maiores mitos da mitologia grega, que teria ocorrido entre 1.300 e 1.200 aC. — quer dizer a mais de mil anos antes do nascimento de Jesus Cristo. O autor, arqueólogo e escritor, reconta esse mito, mediante narrativa autobiográfica de Ulysses ou Odisseu em grego, ou seja, a autobiografia do mito grego.
2.Enredo
Em vez de utilizar uma narrativa do mito, o autor, engenhosamente, inova, escrevendo a autobiografia de Ulysses, o principal personagem desse suposto acontecimento — a Guerra de Tróia. As ruínas dessa cidade milenar encontra-se, por incrível que pareça, em Portugal, em frente a Setúbal, município de Grândola, freguesia de Carvalhal. Seu pai era Laércio, rei de Ítaca, pequena ilha, desgarrada da Ásia Menor, a mãe Anticleia. Laércio foi um dos argonautas que fizera parte dos aventureiros argonautas que ousaram encontrar o famoso Velocino de Ouro, a lã de ouro de um carneiro alado. O personagem principal dos argonautas foi Jasão, além de Argos, Pólux, Fineu e Laércio. Portanto, Ulysses herdou o espírito aventureiro do pai.
O raconto biográfico de Ulysses se desenrola com narrativas de suas aventuras, desde cedo. Sabe-se que ele era o protegido de Atena, a deusa grega da sabedoria, da guerra e sua estratégia, filha preferida de Zeus, também a deusa dos ofícios com habilidades em tecelagem, sendo a patrona de Atenas, onde até hoje é festejada. As aventuras de Ulysses ocorrem desde sua mocidade em Ítaca, inclusive em suas viagens. Até que é convidada para participar da escolha do noivo de Helena em Esparta, ele também pretendente entre vários outros príncipes, Menelau um deles. Em Esparta conhece Penélope, prima de Helena e logo os dois se apaixonam um pelo outro. Apesar de Helena ter uma queda por Ulysses, ela acaba escolhendo Menelau, então rei de Esparta, ruivo e potente. Ulysses resolve fugir com Penélope, mas na fuga resolve retornar à casa dela e pedi-la em casamento aos pais. Casam-se em Ítaca e têm um filho — Telêmaco. Então, dá-se a tragédia, Helena, tendo já uma filha, é raptada por Páris, príncipe de Ilya, ou seja, Tróia, ele filho do rei Priamo. É o início da estrepitosa Guerra de Tróia. Toda a Grécia é obrigada a entrar em guerra contra a faustosa cidade-forte chamada Tróia, a fim de reparar a honra ferida de Menelau, rei de Esparta. Dai por diante são as peripécias de arregimentação de todos os estados gregos (ou aqueus) contra a poderosa e invulnerável Tróia (em latim Ilia).
Odisseu, agora empossado pelo pai Laércio como rei de Ítaca, obriga-se a participar da guerra com seu exército. Tido como grande articulador desde jovem, ele passa a dialogar com os troianos, tentando convencer o rei Príamo a entregar Helena a Menelau e pagar pelo rapto como devido e tudo ficaria resolvido, sem derramamento de sangue. Como embaixador, entra na fortaleza da cidade para negociar com o rei, mas não é atendido — e é assim que a guerra se desencadeia, com batalhas absurdas, terríveis, os mais famosos guerreiros gregos em fúria — Aquiles, Ajax, Menelau, Agamenon e ele Ulysses, além Patróclo e inúmeros outros. Do lado de Tróia — Heitor, Páris, Enéias e quantos mais. A guerra prolonga-se por 10 anos. Ora vencem os gregos, ora os troianos — conforme os desejos dos deuses, também envolvidos na arena das lutas, desde o início da refrega. No Olimpo, torciam pelos gregos: Atena, Nefasto, Hera, Hermes, Tetis e Posseidon e por Troia: Afrodite, Apolo, Ares, Artêmis e o próprio Zeus. Sem saída, a guerra vai se tornando interminável — os gregos sempre perdendo. Até que Odisseu recorre a um ardil capaz de levar a vitória decisiva aos gregos e exterminar Troia para sempre. A essa altura ambos já haviam perdido seus maiores heróis, Aquiles do lado dos gregos e Heitor dos troianos. O artifício de Odisseu — um imenso cavalo de pau construído a ser dado de presente aos troianos como prova da desistência dos aqueus, dando como perdida a guerra, eles retornando a seus lares. Na verdade, um artifício para conseguir entrar na fortificada cidadela, dentro dele se escondiam um pequeno exército de gregos. Os troianos se deixaram enganar, o rei permitiu que o presente entrasse, enquanto os troianos festejavam por terem derrotados os gregos. À noite, quando toda a cidade dormia, os troianos adormecidos pela farra, sorrateiramente, os gregos saíram do bojo do cavalo e escancararam os imensos portões da fortificada cidade. Então, os gregos chacinaram sem piedade tudo e todos. Apenas um grupo se salva da catástrofe, graças a bondade de Ulysses — Enéas e toda sua família fogem através de um corredor desconhecido.
3. À guisa de crítica
A guerra de Troia é um dos eventos mitológicos mais conhecidos. Poucos no entanto leram os poemas de Homero, fonte literária do inusitado fragor. Claro que no poema propriamente dito os fatos são muito mais ardentes, as descrições dos combates terríveis, na insânia do corpo a corpo os combatentes, todos de certo modo heróis, se arrebentam, os membros estripados, o sangue jorrando, gritos horríveis, enquanto, por incrível que pareça, os próprios intrigantes conversam entre si, até afirmam que se conhecem, mas agora são inimigos não fidagais, figadais, isto é, um tem de fulminar o outro. Ora, isto o autor narra de forma mais branda, para não perder o leitor. Preferiu narrar de forma mais literária. Claro, isto não diminui e estro do autor, ao contrário, dá-lhe mais crédito, envergadura literária e não aborrece o leitor com firulas mais horrendas, como o fez o texto homérico. Aliás, o livro é uma espécie de suspense, o leitor ansioso para saber em que vai dar tudo aquilo, as aventuras de Ulysses jovem até o final, a brutalidade. É claro que muito além da verossimilhança literária de Homero, que, aliás, diga-se, dizem que nunca existiu, é uma personagem também mitológica.
É, sem dúvida, um livro interessante, mas tem um segundo volume que seria o retorno de Ulysses à Ítaca — que durou vinte anos e outra saga homérica a Odisseia. Haja fôlego para tanto mito.
Bsb, 18.10.23
SALVAR O FOGO OU VER O CIRCO PEGAR FOGO
Murilo Moreira Veras
De novo temos como leitura e discussão, no próximo dia 29.08.23, o escritor Itamar Vieira Jr. — agora com este Salvar o Fogo, selo da Todavia. Para nossa informação o livro do autor se transformou num verdadeiro best-seller, tendo caído nas graças dos esquerdistas de plantão e outros que tais, inclusive a menino dos olhos da mídia oportunística.
Livro posto, temos de lê-lo e naturalmente explicitar nossas impressões.
Neste breve comentário, que implica no que achamos sobre o segundo livro de nosso estrepitoso autor baiano, reservo-me o direito de fazer algumas considerações gerais, algo diferente do que sempre tenho feito.
Parece-nos que o autor, pelas linhas gerais do livro e pelo que tem exposto nas suas já inúmeras entrevistas, com este pretender desenvolver uma linha de escritura, obedecer a um plano onde dá relevo à cultura afrodescendente e divulga suas origens, enquanto literatura específica. Enfim, fazer renascer entre nós o culto aos ancestrais dos quais somos todos descendentes, com a prevalência dos negros, seus hábitos, cultos e costumes. Não sabemos se ele, com esse empenho, seja exitoso em seu objetivo, pois a cultura africana está bem impregnada na maneira de viver do brasileiro, haja vista a culinária.
Se considerarmos o plano geral do livro, suas facções e fissuras literárias, emprego de cortes ligeiramente estilísticos — capítulos curtos, conforme os best-sellers atuais, assuntos rápidos, pensamentos aleatórios, cortes e notas sensacionalistas, troca de falantes — tudo para chamar a atenção do leitor, tendo como pano de fundo a vida, os costumes, o sofrimento imposto aos negroides, conquanto misturados aos dos índios, primeiros moradores da Terra de Santa Cruz. Salvar o Fogo nos dá essa visão, mais ou menos caótica, para explicar as reminiscências de um povo sofrido por ter se tornado escravo, deportado de suas origens. É o que representa a personagem Luiza, menina, moça e depois vergada pela idade como ponta-de-lança de uma narrativa eivada de sofrimento.
Presos por esses fatos, a prender o fôlego do pobre leitor, vemos transcorrer, folha a folha, miséria, infortúnios, mal-entendidos e um futuro sombrio para os personagens. Até sem querer, mas querendo, temos que sofrer a angústia da leitura, pesada como chumbo.
Salvar o Fogo, a nosso ver, é um pesadelo, ficamos todos suspensos na armadilha que o autor nos mantem preso. Tem-se a impressão de que não saímos salvos do fogaréu que toma conta do cenário que nos traça o livro, espécie de beco-sem-saída. É vermos o circo de toda nossa empatia aos pobres dos negros tocarem fogo no circo de toda benevolência e fraternidade de que gozamos como um povo alegre, falante e de boa índole para quem nos olha do exterior.
É o que temos a argumentar.
Bsb, 12.08.23
O ASSASSINATO DE ROGER ACKROYD
Murilo Moreira Veras
O livro que vamos discutir no dia 25.05.23 é O ASSASSINATO DE ROGER ACKROYD, a autora a famosa Agatha Christe. Não precisa de apresentação, escritora de ficção policial com inúmeros livros publicados, tendo ficado milionária pela venda de suas estórias.
1. Prólogo
Até hoje os livros da escritora são vendidos — best-sellers no gênero. Confesso que nunca tinha lido Agatha Christe e tinha até má impressão de sua escritura. Ocorre que ela tem maneira específica de escrever livros policiais, gênero de certo modo com características especiais, tanto que poucos se arvoram tentar campo minado que é a ficção policial.
2. Enredo
Em Fernly Park, bairro de classe alta em Londres, reside o sr. Roger Ackroyd, milionário esquisito. Numa noite, após um jantar oferecido a seus amigos pessoais, os convidados se retirarem, depois da ágape, Ackroyd é brutalmente assassinado. A arma do crime um punhal arabesco, de lâmina finíssima, inclusive pertencente a Ackroyd, resultado de presente. No jantar, participaram os familiares, a esposa sra. Ackroyd, a sobrinha Flora, o filho adotivo Ralph Paton, o médico Dr. James Sheppard, seu secretário particular Geoffrey Raymond e o Major Blunt, amigo do milionário de longas datas. Todos encontram-se pasmos com o súbito assassínio, que acham tratar-se de assalto, embora nada tenha sido roubado — o que torna o fato extremamente misterioso. A irmã do Dr. Sheppard, Caroline, muito curiosa e que tem mania por desvendar crimes (o que parece ser o alter ego da escritora) sugere que seja contratado um detetive particular, pois a polícia não parece conseguir desvendar tão curioso crime. Os policiais ficam criando fantasias, sem resultado, que seria saber o verdadeiro culpado. Ela então sugere um detetive fora-de-série, aliás seu vizinho no momento — Hercules Poirot.
Poirot — criação da escritora, ao lado de outra personagem Miss Marble — aceita a missão e logo se dispõe a trabalhar. É um homúnculo em estatura, mas que tem um cérebro ágil e pleno de recursos híbridos, tendo desvendado vários casos difíceis. Quem o auxilia na investigação é o Dr. Sheppard, por sabê-lo amigo e frequentador assíduo da mansão de Ackroyd. A partir daí, mil e uma encenações são feitas e criadas, por Poirot, inclusive com insinuações feitas por Caroline, algumas aceitas, outras não. São tantas as pistas e elocubrações do genial detetive, que o leitor vai fervendo a cabeça para saber, ou melhor, adivinhar quem seria o autor do crime. E chega-se à conclusão que todos os presentes do funesto jantar, àquele dia, são culpados — ou seja, Poirot, com suas conclusões mirabolantes, assevera que todos podem estar envolvidos no assassinato do milionário, inclusive os empregados da residência, a começar pelo mordomo Parker. Assim todos são suspeitos, a Srta. Russel e Ursula Bourne, ambas domésticas nos trabalhos da residência, que, segundo ele, tinham interesse em assassinar o milionário. Poirot passa a investigar, um por um, os passos de cada qual. Então os fatos mais vão surgindo em cada personagem, espécie de rolo compressor, a desfraldar a vida dessas pessoas suspeitas. Cada um apresenta um álibemi que o detetive vai esclarecendo, sempre acompanhado pelo Dr. Sheppard. Em certo momento, no auge dos fatos, vindos à tona, Poirot pergunta ao médico: “Você acha que ele se suicidou?” E o médico responde firme: “Não, foi assassinado.”
O leitor então prossegue desesperado para saber ao final quem seria o assassino, num suspense avassalador.
3. Nossa impressão
,
É o primeiro livro que leio da autora. Não tinha boa impressão de seus livros, achava fosse todos uma forma de ganhar dinheiro, enfim, best-seller. Claro, o estilo é de um best-seller. Mas é preciso distinguir um bom best-seller do ruim, feito só para ganhar fama, histórias absurdas, erotismo barato ou romantismo exagerado. Este não. É sem dúvida um best-seller com todas as características, mas não há negar um best-seller de primeira grandeza. Eu diria construído como um verdadeiro suspense policial e daqueles de tirar o fôlego. Aliás, a autora tem uma peça (também era teatróloga) intitulada Gato e Rato que dizem ter ficado em cartaz 4 décadas em Londres — minha filha que estudou um período lá, assistiu e diz que é uma loucura. Este romance policial é de tirar o fôlego de qualquer um . Os fatos vão se sucedendo numa avalanche e o leitor é pego de surpreso no final. Aliás, é o grande tour de force do livro. Passo a passo, o leitor vai acompanhando o malabarismo do detetive Poirot e é absolutamente brilhante a maneira como a autora nos vai surpreender no final das 300 e tantas páginas do livro.
4. Conclusão
Posso até me enganar, mas a autora é, sem dúvida, uma das maiores escritoras no gênero, para mim supera Edgar Allan Poe, igualando-se a Arthur Conan Doyle. Não obstante encontrar no livro — e isto jamais irá empanar o estro da autora —alguns pequenos senões, decorrentes da interpretação da história, senões que me reservo por hora não revelar, para não tirar o gosto e o grande prazer que constitui a leitura deste magnifico suspense policial, criada pela genialidade da autora.
Bsb, 12.05.23
A INVENÇÃO DO LIVRO
O Infinito Em Um Junco
Murilo Moreira Veras
O livro em pauta hoje, 25.04.23, no Clube do Livro é O Infinito em um Junco – a autora, doutoranda na Universidade de Zaragoza e Florença, Irene Vallejo. Sua obra premiada pelo Ministério da Cultura da Espanha, elogiada por Mario Vargas Llosa, o The York Times e o El Pais.
1. Prólogo
O livro de Irene Vallejo divide-se em dois grandes temas: I – A Grécia Antiga, o Futuro – II – Os caminhos de Roma. Á égide desses dois parâmetros a autora, engenhosa e criativamente, expõe o resultado de suas pesquisas em torno do Livro, como nasceu e evoluiu.
Para tanto, ela consultou as mais diversas fontes e subdividiu seu trabalho em subtemas, de modo a tornar a pesquisa mais palatável ao leitor. O ponto de partida foi a Grécia, sem esquecer os diversos meandros pelos quais o livro passou e os percalços pelos quais a ideia foi crescendo, sempre a evoluir. A criação do livro se abeberou em várias fontes, utilizado os mais diversos artifícios, desde o palmito dos juncos até os papiros, todos matéria prima natural ou animal, de confecção problemática, difícil, mas possível, graças ao senso criativo de seus inventores.
Ao lado da criação propriamente dita do livro, nele ou por meio dele inspirados, cresceram outros inventos, como o fogo, o alfabeto e demais artefatos que ao livro de algum modo se associaram. O princípio era fazer com que o ser humano crescesse em conhecimento e sabedoria com os avanços tecnológicos, com que se retirassem as pessoas da ignorância e obtivessem um futuro melhor. Como se vê pelas pesquisas, esses artefatos não se realizaram sem percalços, sangue e sacrifícios. A pesquisa vai nos inteirando desses percalços, sofridos e resolvidos, todos com sofrimento duro, às vezes espécie de pagamento exigido pelo destino.
Na primeira parte, peripécias por que passa a criação do livro em lugares remotos, a Macedônia e o Egito — neste a criação da fantástica Biblioteca da Alexandria, verdadeiro símbolo da sacralidade do livro como objeto de divulgação da cultura, literatura e historiografia. A grande biblioteca sonhada por Alexandre Magno e todos os sacrifícios a que se submeteu o grande tempo da sabedoria, na antiguidade. Fatos e atos horripilantes como a chacina da filósofa Hipácia e o incêndio insidioso permitido por Júlio César,
A 2ª parte refere-se à Roma, como a ideia do livro progrediu na sociedade dos césares, onde os principais valores eram a força da guerra e da conquista. Por incrível que pareça, o livro conseguiu se sobrepor a esses valores e sobretudo sobreviver com eles. Observe-se como os romanos acabaram aceitando a ideia do livro e integrá-lo em sua cultura, claro à custa de grandes esforços dos escritores, sábios e até da parte do próprios Imperadores. Basta observar os subitens dessa 2ª parte. É interessante descobrir como o livro era considerado em Roma, entre escritores, sábios e eruditos, inclusive a verificarem-se os caráteres desses escritores, caso de Cícero e até do próprio Júlio César, suas fraquezas e desvio de caráter, por exemplo o incêndio da Biblioteca de Alexandria, a ele atribuído.
No Epílogo — em que a autora conclui sua extraordinária pesquisa, ela nos alerta para o fato de que há os esquecidos nessa grande evolução, pelo que ela abre espaço para esses esquecidos, como também contribuíram nessa grande evolução, os misteriosos caminhos percorridos pelo livro até se solidificar como construtor da cultura e modernidade.
3.Impressão à Guisa de Crítica
O livro da autora faz jus aos prêmios que lhe foram conferidos. É bem escrito e apesar de suas 442 páginas, o leitor é impulsionado pela escritura, com grande curiosidade em obter o resultado da pesquisa, como buscasse um tesouro escondido. A autora soube construir uma trama que agrada o leitor com capítulos enxutos e plenos de curiosidades.
Acode-nos apenas tecer algumas considerações, que, absolutamente não empanam o primoroso trabalho da autora. São as que se seguem:
a) A autora elogia os feitos de Alexandre, que invadiu o mundo antigo, incorporando cidades e nações, como ele dizia, até encontrar os confins da terra então conhecidos e até desconhecidos, todavia, a custo de sangue, violência extrema, igualmente fez o ditador Hitler, na Europa. Depois imortalizar sua figura com a sonhada Biblioteca de Alexandria?
b) À página 302, a autora nos parece cair em contradição: elogia o livro, inclusive como símbolo civilizatório, mas ao mesmo tempo acha que o “... leitor é sodomizado pelo texto”, por isto pede moderação à sua leitura para evitar que se torne um vício. Um vício a leitura de um livro?
c) Sobre considerar quais livros são clássicos, a autora indica aqueles que apontam para a liberdade, enquanto também elogia os que distinguem o bem do mau, a verdade da mentira.
d) A nosso ver, não foram apenas os livros que despertaram no mundo o lume civilizatório na humanidade, mas, sim, os símbolos gerados pela razão, a fé, ambos influenciados pela Religião.
e) Os livros se tornaram veículos das mensagens do Mestre de Nazaré, florescendo através de seus Apóstolos, simples pescadores sob o sopro do Espírito Santo, conforme compilados nos Evangelhos.
f) Muitos desses livros apontados como clássicos nos transmitiram o veneno do Mal, apelam para a violência e a discórdia, até mesmo contra vontade de seus próprios autores, exemplo o suposto best-seller de Adolf Hitler e outros do mesmo naipe.
g) Não basta só elogiar o livro como “... as melhores coisas neste mundo”, como sugere a autora (pag. 137 in fine) — em si um instrumento cultural extraordinário, mas que mal compreendido pode nos levar a feitos delirantes (O Sofrimento de Werther, de Goethe, que incitou uma série de suicídios na Europa).
h) A autora defende a eternidade dos livros como, símbolos civilizatórios, com que estamos de acordo, mas com restrição. O receio é que, maldoso e infiel como soe ocorrer às vezes o ser humano — nossa civilização talvez se desvie totalmente.
i) Temos exemplo disso em nossos dias, quando divisamos os sinais da tecnologia mais avançada de hoje, a dita Inteligência Artificial – IA, a todo custo querendo dominar o mundo com seus experimentos danosos, a criação dos super robôs — exemplários da espécie do filme Exterminador do Futuro, capazes talvez de exterminarem a raça humana. É isso que nos preocupa sobre nosso futuro.
Através de ações e movimentos concretos, rezemos para que os livros, criados pela inteligência humana, se tornem instrumentos de fé e esperança. Que sejam escritos muitos livros que ousem transformar nosso mundo, trazer-nos esperança, nos alimentar de cultura sadia, mais sábia e não desfile só ódio, vingança e negatividade. Da mesma maneira que nasceu nas palmas dos juncos enlameados, que o livro se embeba de luz, amor, sobretudo sirva de exemplo e galardão, ouse seguir os ditames crísticos.
Por fim, que os livros de alguma forma nos livrem de nos tornarmos escravos de carne e osso dos robôs de ferro, parafusos e cérebros malignos.
Bsb, 18.04.23
UMA ESCABROSA ESTÓRIA INDÍGENA
Murilo Moreira Veras
O livro a ser examinado no dia 23.02.23 é O Som do Rugido da Onça, a autora Micheliny Verunschk — certamente descendente de família europeia. O livro recebeu o prêmio Jabuti, 64º de 24.11.22. É uma literatura realmente estranha.
1. Preliminares
Trata-se de uma narrativa sobre dois indígenas, de tribos diferentes, ine-e, de tribo miranha, menina adolescente e Juri, da tribo Comá-Tapüjaa, menino, também adolescente, que foram levados da mata onde viviam, transportados para a Baviera. Isto teria ocorrido em 1820, quando o zoólogo Johann Baptist von Spix e o botânico Carl Friedrich von Martus, ambos da Academia de Ciências da Baviera, aportaram ao Brasil, em 1817. O objetivo dos dois naturalistas era “ desbravar o interior do país e registrar suas impressões sobre a fauna, a flora e os povos que aqui habitavam.” Não se sabe ao certo, se o rapto foi por troca de alguma coisa, ou roubados das tribos. Também podia terem sido presentes dos maiorais das tribos. Na realidade, foram quatro indígenas transportados em navio, dois não resistiram a pavorosa viagem, somente dois ousaram aportar à Baviera, aos cuidados dos dois cientistas. Os dois indígenas ficaram aos cuidados da própria Rainha, onde recebiam todos os cuidados, porque ela tinha filhos pequenos, queria-os conviverem com os dois índios. Lá, Ine-e, a menina, foi batizada como Isabel e Juri, o menino, Johannes Juri — com o que eles perderam suas personalidades.
Como esperado, os dois não se acostumaram à Baviera, ficaram doentes, devido o frio intenso, também a alimentação, que era totalmente diferente, acabaram falecendo. Juri, em junho de 1821 e em março do seguinte Isabela. A rainha da Baviera — Karoline, consternada por querê-los vivos e se tornarem cidadãos europeus — mandou célebre artista construir um belo túmulo em homenagem aos dois infelizes indígenas.
2. Impressões de leitura
Nos séculos XVI e XVII, Michel de Montaigne (1533-1592), escritor francês, escreveu sobre índios canibais brasileiros. Fez contatos com os huguenotes que instalaram colônias no Brasil, na segunda metade do século XVI, a chamada França Antártica e em 1562 alguns indígenas foram levados para a Europa para serem exibidos ao rei Carlos IX e sua corte. Dessa experiência, Montaigne escreveu o ensaio “Dos Canibais” (vol.I de sua obra “Ensaios”). Doravante tornou-se corriqueiro a captura de índios para servirem de exposição às cortes europeias, o Brasil exibido ora um paraíso, ora um inferno. O estranho que os indígenas levados por Montaigne, que eram guaranis, se adaptaram perfeitamente à França, integrando-se à Corte. Coisa que não aconteceu com os dois infelizes Ine-e e Juri, certamente por não serem guaranis.
Talvez até inadvertidamente, pois o livro é de 2022, a autora passou a fruir, com essa estrambótica estória, dos frêmitos atuais, alvo número um da mídia, que, de repente, começou a elogiar os indígenas e colocá-los como os maiores sofredores da história, pregando o extermínio dos aborígenes pelo governo anterior — o qual, na realidade, eles querem crucificar!
Não ousamos desmerecer os méritos da autora, ao correr da leitura que o leitor faz, por sinal, aos trancos e barrancos. O aproveitamento dos contos indígenas, transportados para o texto criado, mitos e lendas, procurando embelezar a criação literária, à custo de pesquisas em alfarrábios anteriores, sem dúvida. Diz ter consultado especialistas e os agradece pela valiosa contribuição.
Mas, e daí, como fica o leitor que se vê embaraçado com os mitos indígenas, sua cultura extremamente pobre, o truncamento do fio da leitura. O leitor desconhece o linguajar indígena dessas tribos totalmente atávicas.
Vem-nos à baila, por exemplo, a criação literária do inimitável Guimarães Rosa, em seu extraordinário Grande Sertão, Veredas, a magia da linguagem, a riqueza do sentido da vida sertaneja, eivado de brilho, dando asas à imaginação. Quanta diferença!
Bsb, 10.02.22
FLORES PARA ALGERNON
Murilo Moreira Veras
O livro em discussão no
próximo dia 29.09.22 no Clube do Livro é do autor Daniel Keyes, mestre
pela Brooklin College — Flores para Algernon. O autor é falecido e este
livro teve a vendagem de 5 milhões de exemplares.
1.
Início
Em nosso Clube do
Livro já lemos mais de 140 livros, tratando de “n” assuntos, romances, contos,
poemas, de modo que, nós, clubistas, já temos uma visão mais ou menos cósmica
do mundo da literatura. Mas, esse livro de Daniel Keyes impressionou-nos deveras.
A despeito da grande vendagem, vê-se que não se trata de best-seller. É
muito bem escrito, não tem muitos diálogos, a linguagem, isto é, a tradução, é
escorreita, dentro dos moldes da ficção literária. Então a venda extraordinária
do livro se deve ao seu conteúdo, à temática, à trama quase fantástica. E, a
meu ver, principalmente porque nos traz uma grande advertência, equalizando-a
para os dias atuais — a atividade científica como melhoria ou piora do mundo.
No caso específico do livro de Keyes, a pesquisa científica capaz de
transformar uma pessoa nascida com baixíssimo nível mental — caso do nosso
personagem Charles Gordon — de debiloide que era a um verdadeiro gênio em que
se tornou.
A trama do livro, isto
é, o que aconteceu com o personagem central é algo de fantástico. Com a devida
proporção, semelha-se ao personagem daquele filme O Médico e o Monstro em que o sujeito tinha dupla personalidade,
ora o médico prestativo, ora o monstro terrífico. Também, espécie de Frankenstein,
aquele ser horrível criado em laboratório por um cientista louco.
É o que acontece com o
personagem central desse livro de Keyes. Aliás, são dois personagens, um a
variação do outro, o camundongo de laboratório, chamado Algernon e Charles
Gordon, um rapaz que sofre debilidade mental de nascença. Observe-se que o
título do livro evidencia o rato em vez do humano. Isto vale dizer que o ser
humano, sujeito à transformação pela cirurgia feita, iguala-se à condição de um
rato, portanto, tratado como tal, um simples objeto de pesquisa. É esse
exatamente o tour-de-force do livro de Keyes — o ser humano rebaixado à
condição de um rato, um camundongo objeto de pesquisa. Mas um rato inteligente,
tornado inteligente pela cirurgia que os pesquisadores o submeteram. Mutatis
mutandi, o mesmo ocorre com Charles.
Eis os fatos. Charles
Gordon é um rapaz, desde o nascimento retardado mentalmente. Seus pais,
sobretudo sua mãe Rose não se conforma com isso, acha que ele é normal, bate
nele quando faz besteira, sofre porque os vizinhos o humilham. O pai, Matt,
vendedor de artefatos de barbearia, acha que não tem jeito para o filho, já
nasceu assim, não pode se modificar, o jeito é aceitá-lo como ele é. O casal
vive em briga por isto, principalmente quando nasce Norma, a outra filha mais
nova, por sinal normal, mas que não se dá bem com o irmão. Outro conflito:
Rose, a mãe, acha que Charles tem problemas com a irmã menor, inclusive
sexualmente, o menino fica olhando para ela, quer abraçá-la, pensa que quer
agredi-la, quando na verdade o menino apenas quer brincar com ela. Matt
discorda, defende o menino, coisa da cabeça medíocre dele. Acabam aceitando que
Charles vá para uma clínica, se tratar como débil mental. È assim que o menino,
agora já rapaz, é submetido na Residência Warren, abrigo de crianças retardadas,
a uma cirurgia cerebral feita pelo Dr. Strauss, psiquiatra e neurocirurgião,
acompanhado por outros pesquisadores, Warren, Prof. Nemur e o auxiliar Burt.
Submetem-no a uma pesquisa original custeada pelo Governo, acompanhando a
pesquisa laboratorial com o ratinho chamada Algernon, que teve seu cérebro
aumentado, tornando-se um gênio. Agora são dois gênios: Algernon e Charles.
O rato é gênio em todas os certames no laboratório, Charles, operado o seu
lóbulo, o córtex cerebral, órgão responsável pela inteligência humana, compete
com Algernon e acaba vencendo-o. Assim, dentro de pouco tempo, Charles torna-se
um gênio. A transformação de Charles transparece nos Relatórios de Progresso
que escreve para os pesquisadores. Ocorre que, com a cirurgia, sua
personalidade se modifica. Ele chega ao máximo de genialidade. Lê toda espécie
de livros, científicos e ficcionais. Faz trabalhos científicos, discute com
eruditos sobre quaisquer assuntos, encontra erros nas pesquisas, desconfia dos
pesquisadores e suas pesquisas. Consegue lê em várias línguas. Cria laços
passionais com a antiga professora Alice, faz amor com sua vizinha Fay, uma
efervescente pintora. Sua personalidade está tão aguçada que ele se torna até
um voyeur — passa horas olhando outra vizinha no banho, despida.
Então as coisas
começam a degringolar com Charles. Sua personalidade agora muda, tem visões
horríveis, bebe desbragadamente, desrespeita os pesquisadores, duvida de suas
pesquisas, revolta-se contra tudo e todos. Torna-se pessoa intragável, sem
amigos. Até os jornais especializados o tratam como o imbecil-gênio. E
pior de tudo — acaba retroagindo para o que era antigamente: um imbecil.
Exatamente o que ocorreu com Algernon, que acabou maluco e pior — morto.
Acarretado pela pesquisa?
2.
Impressão e Crítica
É de vê-se que o livro
envolve severa contradita à ciência, pelo menos essa do campo neurológico,
melhor, os avanços extraordinárias quanto às pesquisas realizadas no cérebro humano.
Tudo na perspectiva de que a ciência pode tudo, os feitos já realizados e
os futuros, com realizações estupendas,
em todos os campos do conhecimento humano. No caso, o cérebro agora vasculhado
como vetor do aprimoramento, pesquisas a mais visando o aperfeiçoamento do ser
humano, até a tal inteligência artificial, a criação do ente perfeito, o homem
máquina ou a máquina feito homem. Naturalmente visando a ascendência total e
absoluta do ser. Dai a figura engembrada do Frankenstein. Até onde
vamos?
A meu ver, esse é o grande valor do livro de Keyes. Não
é uma literatura comum, uma mera ficção, a historieta de um debiloide que
mexido no seu córtex frontal — o segredo escondido da inteligência humana no
ente criado por Deus — se torna de repente um gênio. Mas quê espécie de
genialidade ele porta, se não passa de um autômato, sem coração, sem
sentimento, sem amigos, inclusive um fato terrível — ele, o abestalhado que era
no passado, virou gênio por pouco tempo, agora retroage de maneira violenta.
Flores para o Algernon — não será um aviso
de que é defeso intrometermo-nos nos mistérios do cérebro e do ser humano como
criatura gerada na perspectiva de uma transcendência a que não temos o direito
nem podemos violentar, como o fazem aqueles que se arvoram de senhores do
destino, da razão e da sabedoria perene incontestáveis?
Bsb,
15.09.22
VIGÍNIA WOOLF E O FLUXO DE CONSCIÊNCIA
Murilo Moreira Veras
“Mrs. Dalloway” é o livro que vamos discutir em nosso encontro do Clube do Livro, no dia 31.08.22. A edição é da Nova Fronteira, a tradução é do poeta Mário Quintana, apresentação da Jornalista Marília Gabriela.
Resta-nos logo dizer que concluímos a leitura com sacrifício de tântalo. O texto da autora é labiríntico, com descrições de altista, espécie de fenomenologia literária. O leitor, coitado, que se vire para alcançar o voo estrambótico da autora.
1. Preâmbulo
A autora — maior representante inglesa da linha literária designada de fluxo da consciência (streams of consciousness) — narra um dia na vida de sua personagem Clarissa Dalloway, esposa de Richard Dalloway, pertencente ao Parlamento Britânico. Sem capítulos definidos, a narrativa se desenrola ao sabor da consciência da personagem, os assuntos em trambolhões, jorros de acontecimentos, muitos inconsequentes, saltados, exatamente como fluem de uma cérebro desabrido. É exatamente a estilística batizada de fluxo da consciência — a mesma usada por James Joyce (Ulisses), Dostoievski, Tolstoi, também dito monólogo interior. Ainda a usaram Marcel Proust, William Falkner e para alguns críticos literários, no Brasil, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Hilda Hilst e Clarice Lispector. Nesta edição, aparece um croquis do centro de Londres em 1920, dando a ideia dos pontos da cidade citados e supostamente percorridos pelo pensamento da personagem. Clarissa, o personagem central viraliza pelos locais, até mesmo sonambulamente, enquanto escaramuça a vida inglesa, através de inúmeras outras personagens, criticando alguns, elogiando outros, desvendando seu interior, o amor que teve com Peter Walsh. Tudo isto prevendo um jantar em sua casa, a ocorrer à noite, em que compareceriam os amigos mais íntimos dela, Clarissa Dalloway.
2. Enredo
É muito difícil o pobre do leitor desvendar a trama do romance, verdadeiro imbróglio. A autora parece querer desvendar o mundo britânico, remover fatos, futricas diversas de outros personagens, por sinal, inúmeros, ao mesmo tempo que satiriza atos e pessoas, ao lado de paisagens londrinas, bairros, transportes, qualificando uns e outros sob sua luneta literária. O leitor se perde nesse verdadeiro painel de futricas. A autora segue sua escritura ao sabor de seus próprios pensamentos. O extraível desse caracol fantástico é conseguir saber que a autora faz uma descrição da sociedade britânica à época, para o que usa e abusa da memória, tendo como pivô central uma senhora de 52 anos, casada com um parlamentar mediano, enquanto ao redor surgem personagens com ou sem pecadilhos, espécie de crítica social, a autora na sua torre de marfim, a ironizar Deus e o mundo.
3.Conclusão
Extrair a razão de ser de uma novela como essa é-nos problemático. Não encontramos motivação plausível. É claro que a autora é figura elogiadíssima pela crítica moderna, haja vista a apresentação nada simplória de Marília Gabriela, que é jornalista, não literata. A tradução é limpa, graças ao lirismo poético de Mário Quintana, o português escorreito, o que valoriza bastante o texto pantagruélico da autora.
Eximo-me de declinar algum critério para obra que considero espécie de alvéolo, fora de nossa visão material de vivenciamento, quando o que aspiramos como leitor é nos abrigar em fatos mais reais, assuntos que nos façam enriquecer nosso restante caminho, procurar entender a vida e nos vangloriar de fatos que nos alegrem e nos fortaleçam e melhorem o mundo, não o perfeito que inexiste, mas aquele possível na perspectiva do quotidiano razoavelmente vivido — enquanto somos personagem nele.
Bsb, 27.08.22
VERÔNICA, A VIDA E OS PINGUINS
Murilo Moreira Veras
Verônica e os Pinguins é o livro em pauta no Clube do Livro, a autora Hazel Prior, selo da Gutenberg. São 314 páginas, a meu ver, bem aproveitadas. A autora, além de escrever, toca harpa e vive em Exmoor, sudeste da Inglaterra com o marido e um grande gato ruivo.
1. Prólogo
Poucas pessoas conhecem ou se inteiraram sobre os pinguins, como vivem, se reproduzem. Pouca gente sabe que essas criaturas não são mamíferas, mas simplesmente aves, portanto ovíparas. Vivem em colônias aos milhares em terras frias, geleiras, o reduto a Antártica e as ilhas afins. São os pinguins-de adelia (pygoscelis adeliae). Pois este livro descreve um passeio de uma senhora de 86 anos às geleiras da Antártica, onde passa a conviver com cientistas que estudam e fazem pesquisas sobre os pinguins. O que se passa ali e o porquê dessa senhora se deslocar para viver algum tempo nessas paragens tão desérticas é o tour de force do livro da autora.
2. Enredo
Verônica McGreedy é uma senhora de 85 anos, viúva, milionária e ao que parece sem herdeiros, pelo que ela saiba. Vive solitária numa mansão, na Escócia, cujos únicos empregados, que a servem, é Eileen, espécie de faz-tudo para ela e um jardineiro que cuida do jardim. Só iremos saber o miolo do livro, no desenrolar de uma história ao mesmo tempo trágica, aventureira e até engraçada. Aos poucos, inteiramo-nos de que Verônica teve infância e adolescência bastante trágicas, os pais falecidos a época da guerra, num desastre, ela entregue a uma tia que a distratava, depois levada para ser criada num convento de freiras. No convento, ainda adolescente é vítima de imbróglio amoroso com um tal Harry e sua namorada, depois sofrendo bullying na escola, acaba se envolvendo com Giovanni, rapaz italiano que é prisioneiro de guerra, com quem pretende fugir. Ocorre que Verônica está grávida do italiano, as freiras ficam horrorizadas, mas fazem o parto dela, ela agora está com o filho Enzo, as freiras cuidando dela e do filho. Mas por pouco tempo. Até que um dia, ela acorda e não encontra mais o filho — as freiras, à revelia da mãe, o entregam em adoção a um casal de certa posse. O tempo passa e Verônica, saindo do convento, se emprega numa empresa imobiliária cujo dono é milionário. Este se engraça de Verônica, que sempre foi muito bonita e se casa com ela. Ocorre que o milionário tem amantes, mas Verônica agora administra parte da imobiliária por conta própria, divorcia-se do marido, o certo é que logo ele falece e ela acaba ficando milionária, mas sozinha. Tudo isto é contado na forma de um diário, mais tarde lido por Patrick, neto de Verônica. Patrick é o filho do único filho de Verônica com o italiano.
Verônica agora é uma mulher milionária, solitária, voluntariosa, cuja vida não lhe parece ter sentido. Até quando descobre que tem um neto chamado Patrick, filho de seu filho, alpinista, morto num acidente. Por sua vez, Patrick é um rapaz, criado sem família, de vida meio irregular, trabalha consertando bicicleta, puxa uma droga e é também desiludido do mundo e da vida. Enfim, Verônica se encontra com o neto, não o tolera a princípio. É quando ela é tomada pela ideia maluca de, assistindo a um programa sobre a sobrevivência dos pinguins na Antártica, resolve passar um tempo naquele ermo gélido e ajudar a salvar os tais pinguins-de-adélia. É praticamente a segunda parte do livro, narrando as peripécias de Verônica na ilha habitada por pinguins, onde vai conviver com os cientistas administradores de um programa científico, a moça Terry e os colegas Dietrich e Mike.
Enquanto isso, Patrick que lê o diário de vida que lhe envia sua avó Verônica, também se apaixona pela ideia de salvar os pinguins e sabendo que ela já se acha sozinha entre os cientistas, resolve se mandar para lá. Na ilha ele faz as pazes com a avó, ajuda na vida excêntrica dos cientistas e acaba se apaixonando por Terry. Ocorrem peripécias de todo jeito, pinguins morrendo, eles conseguem salvar um que eles chamam de Pip, Verônica fica muito doente, quase à morte, Dietrich e Mike agora já gostam da velha intrusa, fazem tudo para salvá-la. No final as coisas se arrumam algo diferente. Verônica se restabelece, retorna à sua mansão na Escócia e ao contrário do que dizia, vai fazer seu testamento e deixar seus milhões de libras a seu neto Patrick, ele que decida o que fazer com a grana, em vez de destinar, como queria, para salvar os pinguins. De sua vez, Patrick prefere ficar na ilha com os cientista e seu novo amor, a enigmática mas simpática Terry e seu blog dos pinguins.
3. Apreciação
É bom que se diga que o livro de Hazel Prior não é um best-seller. Não tem seus ingredientes essenciais: sexo, violência, terror, palavrões, linguajar chulo. Ao contrário, está bem estruturado, a autora usa técnica literária bem moderna, como parte do enredo relativo ao diário de Verônica em feedback. Os capítulos são curtos, mas bem adaptados ao estilo da narrativa, o que faz com que o texto não fique enfadonho, além de despertar certo suspenso quanto ao desenrolar dos fatos. Tanto pode versar sobre uma aventura, como tratar de educação, comportamento e problemas familiares. Sem falar que um dos tour de force é a vida de uma pessoa idosa, o comportamento de Verônica, milionária, mas solitária e infeliz, depois o fato de conseguir ter um sentido da vida, mesmo que seja para salvar pinguins.
Claro que se trata de uma ficção, com seus arroubos, suas incongruências, uma senhora com 86 anos se mandar para a Antártica para ver e ajudar pinguins. Ora, não se trata de um trabalho científico. É uma história humana, com todas as falhas de um ser humano, como as de Patrick que muda totalmente de vida pelo amor, embora sob o empuxo da grana que irá receber da avó.
Confesso que gostei do livro, sobretudo devido esses aspectos positivos e interessantes que a autora ousou demonstrar na narrativa.
Em 18.06.22
AS MENINAS REBELDES
Murilo Moreira Veras
O livro em discussão no próximo dia 26 é As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, edição da Companhia das Letras, 2009. Com este são três livros que lemos da autora no Clube. Como é sabido, Lygia faleceu há pouco, tendo sido grande perda nas letras nacionais, ela com 104 anos.
1. Prólogo
Este livro foi escrito em 1973, a autora com 55 anos, em plena maturidade, em idade e espírito. Imagina-se que a autora o escreveu sob a atmosfera e cenário do chamados “anos de chumbo” da história política do País — epíteto que lhe tem dado a esquerda para o período do governo de Garrastazu Médici (1969-74). Tirante algumas exceções, artistas e escritores faziam coro contra o governo e a chamada Revolução de 64. Decantava-se a quatro ventos que vivíamos sob uma ditadura de ferro, não importa se o País recebesse benefícios, em economia e atualização. É neste clima e sob essa atmosfera, gerada inclusive pelos grupos subversivos que faziam ações terroristas em diversos recantos do País, que a autora Lygia Fagundes Telles escreve essa novela de 279 páginas. Certamente para acompanhar o séquito de alguns intelectuais que haviam aderido às ideias que diziam mais atualizadas e revolucionárias, provindas da Revolução Cubana, o mundo a encaminhar-se para uma etapa, que diziam progressista e libertária.
2. Enredo
Em depoimento, a autora diz que partiu da realidade para a ficção. Trabalhou durante três anos na confecção da novela. É parte da vida de três personagens: Lorena Vaz Leme, Lia de Melo Schultz e Ana Clara Conceição. As três vivem hospedadas num pensionato das freiras Santa Marcelina, em São Paulo. Lorena é a mais intelectual delas, de família rica e tradicional, com propriedades de terras; Lia às vezes chamada Lião, se envolve em luta armada contra a suposta ditadura junto com Max, seu amante, mas que ainda continua virgem e Ana Clara, a mais bonita de todas, mas detraqué, dependente de droga. Traduzir o imbróglio das três meninas rebeldes, o fio da meada narrativa criada pela autora é que se constitui um problema para o pobre do leitor. Sim, porque a autora utiliza o aclamado monólogo interior, na verdade o famigerado fluxo de consciência (streams of consciousness) utilizado por certos escritores, à guisa de serem mais modernos que os outros. No pensionato, destaca-se a presença de Madre Alix, que em algumas ocasiões aconselha as três meninas, embora não as queira convertê-las. Elas, as meninas, são todas desmioladas, matriculadas em faculdades, mas pouco frequentam as aulas. Não sofrem restrição e fazem o que lhes dá na telha. Envolvem-se com namorados. No meio de toda essa balbúrdia, através de monólogos intermináveis, o leitor se perde nesse verdadeiro cipoal de pensamentos e elucubrações das três personagens, ora é fala de Lorena, ora é a de Lião se agatanhando com os amantes, cujo pensamento se imbrica com o de Ana Clara e de Lorena, a ricaça que decide desligar-se de sua prole. Como se diz em francês o enredo é um mélange, espécie de desbragamento orgíaco literário, cuja trama parece se dissolver num tropel olímpico de ideias e pensamentos.
3. À Guisa de Apreciação
Haja leitura, haja entusiasmo, haja ânimo para desembrulhar essa narrativa. Que verdade seja dita, de Lygia, a escritora que morreu centenária, prefiro os seus contos curtos, mas palatáveis em gênero, número e grau. A autora — penso eu, com a devida vênia — enveredou-se no cipoal literário do fluxo de consciência, aquele modismo de uso e abuso de autores que se autorrotularam, supermodernos, a partir de James Joyce, Virgínia Woolf, William Faulkner, Marcel Proust, Edouard Dujardin. Também na mesma linha se acham José Saramago, Clarice Lispector e Hilda Hilst — esta amicíssima de Lygia. Arrisco a dizer que, nesse livro, a autora quer nos alertar sobre os problemas do mundo moderno. Sim, mas sua ótica é ideológica. Deixa-se imbuir de todos aqueles refrões esquerdistas, àquela época servindo como isca, principalmente ao público jovem, desorientado diante dos acontecimentos. Os militares — os mesmos que conseguiram evitar que o marxismo terrorista tomasse conta do País — não tiveram a devida sensibilidade de orientar a juventude, ao contrário tratou os jovens como também subversivos. Não tardou para que os chamados intelectuais, os da linha esquerdistas, se rebelassem, quase em massa. Lygia deve ter ido também na onda.
À guisa de exegese, penso que as três meninas representam as três classes sociais: Lorena, é a classe alta, que esbanja arrogância, enquanto quer se alinhar às outras, ombreando-se com as outras classes; Ana Clara é a classe média que não tendo esperança nem força moral e econômica para fazer o contrapeso social, desilude-se e entra no mundo da droga; enquanto Lia, a classe mais baixa, revolta-se contra as injustiças e os desmandos da política, apelando para a força bruta, o terrorismo — não é atoa que seu amante se chama Max, de Marx.
Não dou descrédito ao livro de Lygia, nem ouso criticar seu talento literário. Sob minha ótica, sempre penso na literatura como arte, até certo ponto, sob a égide da ética e da estética. A atividade literária tenho-a sempre com a finalidade de elevar o sonho humano, portanto não me encho de orgulho de dizer isto — mas o ofício de escrever deve sempre que possível desviar-se da leviandade e do desconstrutivismo.
Bsb, 12.05.22
LYGIA : A DISCIPLINA DO AMOR
Murilo Moreira Veras
O livro hoje — 26.04.22 — a ser discutido é A Disciplina do Amor, a autora Lygia Fagundes Telles, selo da Companhia das Letras. É mais um livro da autora que lemos no Clube do Livro.
1. Preâmbulo
A autora, Lygia Fagundes Telles, faleceu no início do mês, sabe-se de falência dos órgãos. A mídia informa que ela tinha 98 anos, faltando poucos dias para completar 99. Pesquisamos e logo verificamos que, na realidade, ela faleceu com 103, quase 104 anos. É só consultar a Wikipédia. Acontece que Lygia, misteriosa como sempre, escondeu 5 anos de sua vida. Observe-se que ela era procuradora do Instituto de Previdência do estado de S. Paulo. Por mérito literário, pertencia a Academia de Letras de São Paulo e Academia Brasileira de Letras. Também pelo mesmo mérito, obteve quase todos os prêmios possíveis, Jabuti, até o maior galardão em língua lusófona, o Camões em 2005, pelo conjunto de sua obra. Foi ovacionada pela crítica, quase todos os seus livros premiados, sem falar que foi o quindim de ioiô dos luminares literários, Érico Veríssimo, Paulo Ronái, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector e Hilda Hilst, as duas últimas suas grandes amigas, segundo afirmou. Crítica escrita e falada, ela foi entrevistada, suas obras decantadas a quatro ventos. No entanto, declara que não vivia de livros, ela uma simples autora do terceiro mundo. Este livro inclusive recebeu o prêmio Jabuti e do IPCA. E mais: ela própria declara que é sua melhor obra. Afirma ser uma escritora engajada, certamente também com a realidade brasileira e mundial, embora, não seja política.
2. Do Conteúdo e Filigranas
Os críticos quase todos concordam com o mérito deste livro escrito em 1980, acompanhando a aferição da própria autora. Vou discordar, não como crítico de carteirinha, que não o sou e se alguma observação qualitativa faço, apego-me sempre à discrição normativa de Machado de Assis, isto é, não demolir o autor, espelhar alguns aspectos de sua obra, sob a égide da ética e estética literária. Considero-me apenas um leitor atento.
Logo de início, o livro não me parece de contos, mas, sim, resultado de fragmentos de sonhos, impressões, convicções pessoais, observações e lembranças de viagens — quem sabe crônicas ou simples anotações de leituras. Não propriamente contos, embora Mário de Andrade tenha dito que se um escrito o autor disser que é conto, que seja conto. Tecnicamente a matéria literária, como a da autora, não tem o caráter do conto — uma estória curta, com começo, meio e fim. Não me convenço, como leitor de quase todos os livros da autora, que este A Disciplina do Amor seja seu melhor trabalho. É interessante, admira-se sua maneira de escrever, fazendo certas alusões simbólicas, crítica velada, o mistério escondido em certos momentos, cuidado e acuidade quanto à recepção do leitor — minudências em que ela, Lygia, é mestra, sobretudo em seus contos. Entretanto, faço algumas leves observações sobre o valor de seu pensamento e suas convicções expostas neste livro específico.
3. Impressões Pessoais
Vou expor apenas algumas digressões sobre o livro, reproduzindo o que escrevi em certas páginas:
Pag. 140 – Frases Fatais : Nesta pequena crônica, evidencio a contradição da autora, que esquece fundamentar seu juízo. As feministas são por demais extremadas, exorbitam da verdadeira razão de serem acima dos homens — esquecem que são a contraparte do homem. Recorrer a Che Guevara não é bom argumento: ele na verdade foi um monstro transviado de libertador, sabe-se que chegou a matar seus próprios companheiros desafetos, cinicamente sorrindo.
Pag. 143 – Revolução na Igreja: Vê-se, nas entrelinhas, que a autora se contagiou dessa virulenta interpretação à teologia católica, que é a ideologia marxista, a chamada esquerda católica. Se alguns padres empederniram a Igreja com regras medievais, esse desvio não deve macular os ensinamentos preconizados pela fé católica, uma parte podre não deve contaminar o todo. Essa doutrina desvirtuada pelo Vaticano II talvez tenha contribuído para essa invasão espúrias às hostes católica, contrária aos ensinamentos crísticos, que foi e continua sendo a Teoria da Libertação. A autora se apoia em Tristão de Athayde, o venerável escritor católico que defendeu a politização do País através do esquerdismo. Alceu de Amoroso Lima, seu verdadeiro nome, deixou-se enganar, entrando na onda da maioria dos escritores, artistas e aproveitadores sociais. A autora esquece que a Igreja é representada pela ortodoxia verdadeira, vultos de pessoas sábias, do passado e do presente, como, por exemplo, G.K. Chesterton. Sem falar nos seus construtores: Sto.Agostinho, Sto.Tomás de Aquino, Santa Tereza d’Ávila. Sem desmerecer os méritos literários da autora, é de se esperar que ela recorresse à leitura da história da Igreja e não fizesse julgamento prévio à esquerdista, na pressuposição de salvar o Brasil e o cristianismo da direita fascista.
Pag. 150 — O Escritor e o Leitor: Nesse breve anúncio Lygia assegura que ...”O escritor pode ser corrompido mas não corrompe. Pode ser louco, mas não vai enlouquecer o leitor, ao contrário, poderá até desviá-lo da loucura.” Em entrevistas ela confirma essa sua convicção. Discordo. O escritor não está imune de, através de seus escritos, se tornar perigoso. O ofício de escrever deve se manter ao nível da ética e da moral. Não se trata de censura que o obrigaria a deixar de escrever, mas de uma obrigação moral. Escritores há e houve que fizeram grande mal à humanidade, embora tenham sido grandes e apreciados autores. À guisa de exemplário, eis alguns:
- Marquês de Sade e Emil Cioran, ambos de escrita execrável.
- Goethe, com seu livro Werther cuja leitura acarretou muitos suicídios no mundo inteiro.
- Shopenhauer, com seu desastroso pessimismo.
- Nietzsche, pelo seu nihilismo, desnorteando as pessoas.
- Baudelaire, com suas poesias negativas, as Flores do Mal.
- Montaigne, devido seu exagerado ceticismo.
- Diógenes, filósofo grego que inundou o mundo com seu cinismo filosófico. E tutti quanti mais.
4. À Guisa de Conclusão
Essas nossas ressalvas, tanto ou quanto pessoais, não denigre de maneira alguma a obra de Lygia Fagundes Telles, escritora de tantos dotes literários, já traduzida para meio mundo (Paulo Coelho também o foi, mas descabe qualquer comparação). Reconheço-a como a grande dama da literatura brasileira atual. Seu passamento deixa um vazio nas letras, além de ter sido pessoa admirável e admirada, inclusive por este que subscreve essas sinuosas, mas sinceras linhas.
Bsb. 14.04.22
ORGULHO E PRECONCEITO
CLUBE DO LIVRO
Murilo Moreira Veras
Em nosso encontro hoje, 28.02.22, discutimos o livro ORGULHO E PRECONCEITO, de Jane Austen (1777-1817), Ed. Civilização Brasileira, tradução de Lúcio Cardoso. É o primeiro romance da autora, publicado pela primeira vez em 1813, em Londres, com o título Pride and Prejudice.
1. Prólogo
Confesso que já tinha o livro, mas não o lera. Confesso também que a autora, Jane Austen, não me atraia. Sempre a tive como uma espécie de autora de best-seller à antiga, do mesmo diapasão de E O VENTO LEVOU, continuação daqueles romances da belle-époque da Biblioteca das Moças.
2. Enredo
Comecei a ler nossa Jane Austen motivado a criticá-la. E assim o foi, mais ou menos, até à metade do livro. Pareceu-me mais um livro de intrigas, conversa entre comadres, água com açúcar e aquele, como disse nosso regionalista Jorge Amado, converser tapiativo , conversa fiada, sem parar. A partir do meio do livro, começo a notar que a autora não era uma escritora vulgar, que caiba nos moldes simplistas do best-seller. Aos poucos fui compreendendo que o conteúdo de seu romance ia muito além, não se tratava de uma simples novela de costumes à inglesa. A autora prescrutava a história da Inglaterra, com agudeza e grande descortínio psicológico, justo o período em que os ingleses estavam prestes a entrar na dureza da era vitoriana (1837-1910), se comportavam à retranca, para não perder seu snobismo, sua altivez, enquanto fossem castas familiares herdadas do sangue azul britânico, se impusesse e desfrutassem os deleites do puritanismo farisaico. É justamente a figura ridícula de Mr. Collins, clérigo que vivia à custa da tia, floreteando em futricas de madames, casamentos e namoriscos, à busca de heranças.
Vamos aos fatos cronológicos do romance. Narra-se a história da família Bennet, formada pelo marido Mr.Bennet, sua esposa, Mrs. Bennet e cinco filhas: Jane, a mais velha, Elizabeth, a segunda, Katherine ou Kitty, a terceira, Mary, a penúltima e Lydia, a mais nova. Cada uma das moças tem um caráter, responsável pelo desenvolvimento da linha da ação do romance. Jane é muito bonita, mas já passa da idade de casar. Elizabeth é a personagem principal, recatada, mas crítica e muito responsável quanto ao nível social da família. Kitty é meio escondida na trama, o mesmo que Mary, embora seja a mais familiar de todas. Já Lydia é justamente o contrário das demais irmãs: namoradora, volúvel e comporta-se mal na sociedade onde vive, sempre colocando a família em situações difíceis. Mr. Bennet, o pai, por outro lado, não se preocupa tanto com o caráter das filhas, sequer pensou em dar-lhes os necessários e imprescindíveis dotes. Até que as coisas começam a degringolar perante a família.
Enquanto pinta esse novo quadro dos acontecimentos, a autora vai analisando os entreatos, como pintasse uma paisagem, o colorido letárgico e negativo dos passos dos figurantes. Como as moças da época só procuravam se casar, elas se apresentavam em bailes, que os havia e eram os principais assuntos das fofocas e da vida diuturna. Eram ali onde nasciam os namoros, de que, depois, podiam gerar casamentos. Esses bailes se restringiam às castas, dificilmente permitidos a pessoas pobres, sem qualificações familiares ancestrais. Mr. Bennet, o genitor das cinco casadouras, não era pobre, mas os seus bens constituíam-se apenas na sua casa e na pequena propriedade de onde tirava sua renda. Sem filho varão, com cinco moças, praticamente elas não tinham dotes e todo enlace requeria a outorga do dote, como exigia a legislatura inglesa à época. Os Bennets submetiam-se também aos Gardiners, Mr. Gardiner era o irmão de Mrs.Bennet e quem possuía muitos bens. Começa então os romances. Jane se apaixona por Mr.Bingley, rapaz de família graduada, com recursos. Elizabeth vê-se alvo de atenção de Mr. Darcy, de família riquíssima, mas considerado snob, o enlace totalmente preterido pela tia Lady Catherine, mulher orgulhosa e proprietária de valiosos bens, dizendo-se defensora da nobreza familiar. É nesse ponto que ocorrem os desastres. O primeiro é o imbróglio com o namoro de Jane, que a família de Mr.Bingley não aceita, devido mexericos. Mas o pior é o que ocorre com Lydia, com dezesseis anos apenas foge com certo militar, Mr. Wickham, de má fama, jogador e devedor de uma fortuna no lugar. Então todos os personagens se cruzam para a fatalidade, comovendo toda a família.
3. À Guisa de Crítica
Jane Austen teve vida muito curta, 44 anos, o que realmente singulariza sua escritura, a habilidade com que soube armar seus romances, a agudeza de sua interpretação dos fatos, sobremodo a crítica sutil que fez da sociedade, embora nunca tivesse saído de seu meio, simplório e até certo ponto rústico. Fato cuja análise nos extasia. O que ela quer dizer com essa história vai além do jogo de personagens, que apenas são figuras, caráteres, que ela utiliza para organizar o arcabouço da crítica simbólica que faz da época pré-vitoriana, a análise da Inglaterra perante o mundo, antes da Revolução Industrial. O inglês àquele tempo, representativo do que restava da nobreza, ousava viver o clímax do puritanismo, farisaico e pudico. Suas ações eram de viver na indolência, como observa-se em todos os personagens, homens ou mulheres. Eles, depois de impúberes, às custas das heranças paternas ou afins, o objetivo era a busca de um dote, para não esvanecer a fortuna pelo consumo, uma moça quanto mais rica melhor seria, fosse magra, feia, gorda (Mr. Collins e Mr. Wickham). Elas, com a garantia de seu dote, o plano era buscar o que fosse melhor, tivesse bens, lhes garantissem bem-estar, desfrutar da alta sociedade, o amor, quem sabe, viria por acréscimo.
A nosso ver, a parte mais importante do romance está no cap. LVI, o diálogo vulcânico entre Lady Catherine de Bourgh, tia de Mr. Darcy, a dama superiora, com Elizabeth, de classe média, (talvez média média), praticamente sem dote, de educação simplória. Observe-se que, enquanto a dama arrota grandeza, arrogância, falando em nome de sua família nobre e procura rebaixar a opositora, as respostas de Elizabeth são equalizadas, virtuosas, de equilíbrio e brio pessoal, não se deixando abater pelos insultos da outra, ao tempo que fulmina-lhe todas as acusações. É um verdadeiro embate entre a estupidez de uma e a sensatez da outra. Vale todo o romance.
Tenho apenas algumas observações a fazer sobre o romance, ipso facto da autora. As Bennets têm capacidade cognitiva muito além do normal, haja vista as falas, os diálogos, as observações, mas nunca saíram de um simples burgo — onde aprenderam, que colégio ou faculdade frequentaram? Os personagens masculinos, quase todos, são, pessoas ricas, bem vestidos, usam carruagens luxuosas, vivem no ócio e na orgia. O que fazem? Caçam, bebem, comem do bom e do melhor — e o que faz o resto das pessoas? Outro aspecto: alguns anos depois, em 1832, nascia uma grande escritora americana Louisa May Alcott cujo livro As Mulherzinhas tornou-se um best-seller mundial. Se examinarmos, Alcott, parece ter imitado muito a inglesa Austen, embora as circunstâncias sejam outras. A criatividade literária jamais esmorece, como fonte inesgotável da escritura.
Bsb, 12.02.22
A
CARNE : SENSUAL OU LIBERTINO?
Murilo
Moreira Veras
Neste 12.10.21, no Clube do Livro lemos o livro de Júlio Ribeiro, A
CARNE, selo da Ateliê Editorial. O livro tem tido uma trajetória de ataques da
chamada crítica oficial ou encômios de críticos apressadinhos. A 1ª edição do
livro data de 1888 e a última em 1911, editada em Paris — conforme informação
histórica dada por Israel Souza Lima. Pronunciaram-se sobre a obra críticos
como Álvaro Lins, Alfredo Pujol — este a dizer que o autor não alcançaria a
posteridade “com esta carne à cabeça, à guisa de coroa de louros.”
Também Manuel Bandeira em conferência em
sessão da ABL, em 16.04.45, comemorou o centenário do autor objeto da sanha
crítica da época. Marcelo Bulhões, da Ateliê, doutor pela USP, apresenta esta
nova edição, ele autor de tese sobre o Naturalismo Brasileiro.
1. Prólogo
É de vê-se que Júlio Ribeiro, morto em 1890, até hoje
ainda é relembrado, ora como escritor que ultrapassou uma “determinada zona
de intelectualidade” na visão de Álvaro Lins ou modernamente mais um autor naturalista
símile aos franceses Emile Zola, Flaubert e Maupassant. Na orelha desta edição
Antônio Dimas declara: “Eis aí um argumento para instalá-lo mais à vontade
na História da Cultura brasileira. Em canto discreto, todavia.” Sim, pois o
escritor mineiro de Sabará, não passava de um professor de linguista e
gramática, egresso da Escola Militar no Rio. Com o livro A Carne, ele
parece assumir muito além de um simples professor, para tornar-se espécie de seven-trompet-man
a esbanjar em todo o curso do romance conhecimentos de ornitologia, etnologia,
sociologia, verdadeiro polígrafo, sem falar que esnoba o pobre do leitor dando
aulas de cafeicultura e medicina. Observe-se que Machado de Assis criticou
severamente Eça de Queiroz por seu romance O Primo Basílio, por ter
abusado da escritura naturalista, com cenas eróticas e até mesmo impróprias
para a época.
2. Enredo
A narrativa chega a ser linear, um drama familiar onde o
patriarca Lopes Matoso, já viúvo, tem uma única filha, Helena ou Lenita, de
vinte e dois anos. O pai que vivia para essa filha a satisfazer todos os seus
desejos, um dia, repentinamente se sente
mal e sem mais a ver, falece. Sem ter parentes próximos e atarantada pela perda
do fervoroso pai, ela vai morar na fazenda do antigo tutor dele, seu grande
amigo coronel Barbosa. Trata-se de uma fazenda de café e o coronel a recebe
como se sua filha fosse, ele que também só tinha um filho, Manoel Barbosa,
Manduca, rapaz já quarentão, casado e separado, espécie de boa vida, tendo
viajado mundo afora. Os primeiros capítulos se desenrolam para descrever a
fazenda de café, a moagem e os trabalhos árduos dos negros escravos na
manutenção e produção da cafeicultura, as ocorrências dali decorrentes. Lenita
assiste a tudo isso, enquanto esnoba sabedoria, lendo romances e fazendo
passeios pelo matagal. Só depois, Manduca vai aparecer na história e sua figura
é antecipada por Lenita como um super-homem, bonitão, espécie de playboy, com
que adoraria conhecer. Indolente, tendo surtos de solidão e apelos sexuais, a
moça se sente isolada, chega a adoecer, mas o médico sabe que Lenita sofre de
ansiedade, inclusive sexual. Entrementes, ocorrem fatos desagradáveis na
fazenda, a fuga de um escravo, que é pego e é castigado com suplício terrível, depois
certo escravo velho que vivia de favor por bonomia do coronel, macumbeiro
desvairado que praticara vários crimes com suas mandingas, recebe castigo
violento, sendo queimado vivo. A tudo isto Lenita vê e participa, até mesmo a
fruir gozo íntimo. Nos próximos capítulos, Manduca chega de viagem, Lenita se
decepciona com sua aparência, o rapaz sofre de enxaqueca, ela quer ir embora,
desfrutar da vida citadina, mas no dia seguinte ele lhe aparece curado, airoso
e oferecendo-lhe ramo de flor. Doravante, tornam-se amigos, fazem caminhadas
nas trilhas, estudam e leem juntos, ele demonstra grandes conhecimentos de
botânica, discute sobre assuntos diversos, é versado em línguas. Enfim
apaixonam-se um pelo outro. Entretanto, só nos últimos capítulos chegam à via
dos fatos. Lenita que antes o desprezava, agora cai-se de amores por aquele
homem maduro, inclusive por tê-la salvado de uma mordida fatal de cascavel,
numa de suas andanças pelo matagal. Por fim, loucos de desejos um pelo outro, dá-se
o que já é esperado.
O final do romance é meio contraditório. Lenita, mesmo apaixonada,
descobre que seu amante tem relações íntimas com outras, decepciona-se, agora o
odeia, não quer mais nada com ele, embora já grávida. Enquanto ele está fora,
em viagem, Lenita deixa bruscamente a fazenda, vai para São Paulo e casa-se com
antigo candidato. Deixa carta ao amante de certo modo mandando-o às favas que
ela agora ia desfrutar vida de casada, nada de paixões desenfreadas. Madruga, o
amante, quando retorna de viagem, só encontra o vazio, lê a carta e descobre
que fora desgraçadamente enganado, que Lenita não passava de uma cascavel,
fizera-o de brinquedo de seus prazeres sexuais. Em seguida, suicida-se por
simples vingança!
3. A
guisa de crítica
Como se pode ver, A Carne é um romance de costumes com muita
descrição e um blábláblá interminável de cultura geral, a nosso ver até com
certas incongruências na sua estrutura. Como pano de fundo, para dar um tour-de-force
naturalista à história, nos capítulos finais, algumas pinceladas de erotismo quase
vulgar e caem as cortinas da peça teatral montada por um professor, que se
vangloriou de polemista, aparecendo em foto com Ramalho Ortigão e Antônio
Trajano, duas figuras supostamente de proa nas letras. É o que me consta dizer.
O resto são migalhas literárias.
Bsb, 1.11.21
POEIRA LUNAR : UMA AVENTURA EM FC
Murilo Moreira Veras
O
livro em pauta hoje, 19.10.21, no Clube do Livro é POEIRA LUNAR, do escritor
inglês Arthur C. Clarke. Clarke é entronizado como um dos maiores e melhores
ficcionistas em FC, ao lado de Issac Asimov, Ray Bradbury e outros também
notáveis. Informam seus editores que ele deixou um legado de 100 milhões de
livros vendido.
1. Ab
initio
Poeira Luna foi escrito em 1960 e muito do seu enredo o
autor se vale de seu conhecimento de física, engenharia, astrofísica,
cosmologia e astronomia. Inclusive muitas de suas ideias foram adotadas nos
voos siderais da NASA. Suas descrições são minuciosas, como a demonstrar ser
mestre em ciência e tecnologia. Só não consegue ultrapassar o atual suprafísico
Michio Kaku em seus fantásticos livros, o mais recente Física do
Impossível.
2. Enredo
O enredo parece simplório. Uma nave lunar — na realidade
espécie de ônibus — parte numa excursão turística com 22 pessoas, senhoras e senhores, para
fazer uma turnê na área chamada Mar da Sede, região ainda desconhecida da Lua.
Tudo segue em absoluta normalidade até a dita nave de repente ao percorrer
certa região se precipitar uma espécie de abismo e ser totalmente absorvida por
uma poeira, que não é uma simples poeira, mas maré gosmenta, que se infiltra no
veículo e pode até destruí-lo. A nave que não dispõe de itens suficientes para
se livrar do acidente fica presa a cerca de 15
metros da superfície e a tendência é se afundar cada vez mais,
inviabilizando qualquer tipo de
salvamento. Em outras palavras: os 22 turistas e a tripulação estão fadados a
serem sepultados para sempre num lamaçal de traiçoeira poeira. A maior parte do
livro, mais ou menos do capítulo 9 em
diante — são 31 ao todo — consiste em descrever como ocorrerá o salvamento da
nave Selene e trazer à vida 22 pessoas, mais a tripulação, de serem enterradas
vivas na Lua.
Como os especialistas da Terra, os engenheiros espaciais
conseguirão evitar a morte dos turistas?
2. Impressão
e crítica
Até o capítulo 9, a novela trata da viagem turística, com
as descrições alusivas ao passeio que devia durar apenas algumas horas. Não há
grandes novidades, perfeito para seu gênero, FC. Lembre-se que Clarke escreveu
em 2001 uma obra-prima, Odisseia no Espaço, transposto para o cinema
pelo genial Stanley Kubric.
O autor tem o dom de ficcionar a ciência e transmitir
assuntos difíceis à plebe rude que boia sobre o assunto — e isso é o que o
caracteriza como excelente ficcionista na área. O episódio da catástrofe
ocorrida com a pequena nave Selene transforma-se numa verdadeira
tragédia. O grande vilão é a poeira lunar, espécie de argamassa
que surge nas montanhas escabrosas da Lua, especialmente na área chamada Mar
da Sede. Qualquer coisa que caísse nas malhas dessa tal poeira, não teria
salvação.
A
partir do capítulo 10, a narrativa toda volta-se para a salvação dos turistas
da Selene. Doravante, o ficcionista passa a uma verdadeira avalanche, com
minucias descritíveis e indescritíveis sobre os planos concebidos pelos
engenheiros lunares e terrestres, todas as etapas do trabalho salvação. Isto de
forma minuciosa, até os parafusos a serem usados, ferramentas e quejandos,
todas as etapas de tudo que deverá ser feito.
Descrição do plano, trabalho dos engenheiros para enfrentar a tal poeira
lunar, material decorrente de milhões de anos dos desgastes da Lua, como
astro-satélite morto, bombardeado por
matéria galáctica.
São tão minuciosas as descrições do autor que acaba se tornando uma narrativa cansativa e enjoada para o leitor e o que é pior desagradá-lo na leitura e se desinteressar. Ás vezes, dá a impressão de esnobismo da parte do autor a querer empanturrar o leitor de informações, coisa até inútil, tendo em vista o currículo de Clarke. É claro que ele age com maestria e utilita destreza o tour-de-force da novela, que é a técnica do suspense — o leitor, coitado, fica o tempo todo roendo as unhas para saber afinal como e quando os infelicitados turistas serão resgat daquele inferno.
3. Impressão
final
O autor consegue fazer de sua narrativa um grande suspense,
qual aquele das fitas antigas de faroeste americano, como os filmes de Huston,
ou daqueles seriados em que se ficava esperando ansiosamente qual seria o passo
a ser dado pelo mocinho para salvar sua pele.
De qualquer modo, é um livro interessante. Os senões apresentados não lhe tiram o mérito, principalmente para quem é aficionado como eu a Ficção Científica, como os desenhos de Alex Raymond e sua genial criação de Flash Gordon.
Bsb, 30.09.21
EXEMPLO DE SUPERAÇÃO
Murilo Moreira Veras
O
livro em pauta hoje no Clube do Livro é do autor Ernest Hemingway, escritor
americano, de renome, laureado com Nobel de literatura. O Velho e o Mar,
já em 77ª edição, ora com o selo Bertrand Brasil, 2012.
Já
tivemos oportunidade de ler romance de Hemingway, de nossa parte lido com
reserva.
1.
Prólogo
Este O Velho e o Mar, segundo a apresentação, é o livro
mais popular do autor, que se distinguiu por suas reportagens de guerra e
livros de impacto como Por Quem os Sinos Dobram e outros do mesmo jaez. É a
história de um velho pescador, chamado Santiago, que fazia 84 dias que, todos
os dias na dura tarefa de pescar, para o ganho da vida, não pescava um peixe
sequer. Por isso, era tido pelos parceiros de profissão pessoa ultrapassada,
praticamente morta. Mas, mesmo assim, dito como alquebrado e inútil, em relação
aos mais jovens, Santiago, o velho não desistia de todo dia entrar no barco e
enfrentar o mar, a cobro de fisgar o produto mais desejado por um pescador:
pescar peixe, no mar. O velho Santiago, coitado, fazia tempo que não pescava
nada, não tinha essa sorte. Ajudava-o um garoto, Manolin, que tinha pena dele e
sempre o auxiliava, primeiro o acompanhando nas pescarias, a título de
aprendiz, também trazendo-lhe às vezes comida, que o velho vivia só. Depois, os
pais do Manolin o impediram de acompanhar o velho e passar para outro barco,
mais proveitoso na arte da pesca.
Num desses dias, Santiago sai de madrugada para enfrentar
o mar no seu pequeno barco, sem o ajudante, só com a coragem, pesando-lhe a
vergonha de ser um pescador inútil. Afasta-se da costa e depois de uma longa
espera, começa a fisgar algo, primeiro peixinho, que só serve para comer ali
mesmo no barco. É quando, lá para as tantas, fisga um que, tudo indica, ser
enorme. Então ele começa a lutar com o peixe, o maior que já tinha visto no
mar. É uma luta insana que o velho Santiago tem de fazer contra aquele
monstrinho do mar. O peixe arrasta o barco e salta acima das ondas, para se
livrar do anzol, enquanto reunindo todas suas forças o velho sustenta a vara e
dá-lhe corda até vê-lo cansar A muito custo, o velho consegue arpoar o peixe,
domá-lo, trazê-lo para a borda do barco e amarrá-lo, junto à embarcação, para
rebocar o monstro, com seis metros de envergadura.
É quando aparecem os maiores predadores do mar: os
tubarões. Primeiro um se acerca, Santiago consegue atingir-lhe com o arpão, ele
retorna, acaba abocanhando um pedaço do peixe ancorado no barco. E o velho
doravante tem de lutar renhidamente com uma malta de mais tubarões, todos
ferozes, enxotados a custo de pancada, mas sempre a estraçalharem o peixe
prisioneiro.
Durante cerca de dois dias o velho passa no mar, lutando
contra os tubarões, já extenuado de força, mas se ufanando de haver pescado o
maior peixe até então visto. Enquanto luta, ele, em monólogo, fala sobre sua
vida, os sonhos, a história de um ser humano que consegue vencer os tropeços da
vida.
2.
Avaliação
Críticos americanos e brasileiros consideram O Velho e
o Mar uma obra-prima. Não vou
contrariá-los. É certamente uma obra de valor literário, até do ponto de vista humanístico.
Hemingway o escreveu como o ápice de sua malograda existência. Era um repórter
e como tal, no livro, ele desenvolve uma técnica jornalística de suspense
literário. O que seria esse velho pescador que não consegue pescar e desafia o
mar para pescar o maior peixe já visto? Consegue domá-lo, matá-lo e trazê-lo
para terra e demonstrar que conseguiu vencer o impossível, fisgar um peixe
descomunal. Seria o que aconteceu com ele próprio Hemingway? Ele conseguiu
vencer na vida como repórter de linha de frente, escrever livros, hoje,
considerados imortais. A história de velho Santiago é um exemplo de superação.
Há um mote que diz: vence a vida, quem vence o medo e a morte. O velho é
um herói, fez como se diz, das tripas coração, e conseguiu vencer o desprezo, a
solidão, o malogro. Mas, o autor, Hemingway, venceu as intempéries da vida?
Creio que não: suicidou-se com 60 anos, um tiro, se não me engano no coração,
como fizera o pai e a neta, anos depois, suicidando-se no mar.
Ora, a história do velho Santiago lutando contra um
peixe-monstro, na realidade luta impossível, se analisarmos detidamente os
ingredientes dessa fantástica narrativa, tem o mesmo sentido do livro de Herman
Melville, Moby Dick, de 1851, a baleia assassina, que o capitão Ahab
enfrenta no mar, a título de vingança dos crimes que o monstro teria praticado.
A luta entre o bem o mal. Claro que Melville fez um romance imenso para narrar
esta história. Hemingway, jornalista de vanguarda, simplifica tudo, dá-nos
apenas o arcabouço dessa tragédia. Um velho, que não servia mais no ramo
pesqueiro (ou da vida moderna), renasce das cinzas, retira forças ocultas,
prova que tem peito ainda, enfrenta as intempéries da vida e vence o
impossível, o monstro do mar.
Cá entre nós, não sei se nosso Hemingway teve esta
intenção clara de ser um vencedor das intempéries da vida, tendo se livrado
fatidicamente dela por uma fraqueza de caráter, o suicídio.
A literatura nacional e mundial é prenhe desses exemplos
trágicos. Ninguém se engane quanto aos objetivos da ficção. Ela é sempre
uma faca de dois gumes, porque a ficção não é a realidade, embora saibamos
todos nós, até por experiência própria, que a realidade, muitas vezes, supera a
própria ficção.
Bsb,
3.09.21
RELATÓRIO SOFÍSTICO DE JACQUES DERRIDA
O livro de Jacques Derrida O Animal que logo sou prova a diversidade do autor diante da nova linhagem de filósofos franceses, dentre os quais Marcel Conche, Luc Ferry, André Comte-Sponville, Jules Deleuse, Felix Guatari, Marcel Onfray, todos agnósticos.
O objetivo é demonstrar o pensamento
desconstrutivista do autor, que se apropriou desse hibridismo filosófico ao
inaugurar um subramo da filosofia — o desconstrutivismo.
Derrida usa de um malabarismo verborrágico para
demonstrar, na sua visão, que o ser humano, o homo-sapiens-sapiens, na
realidade não pertence ao gênero animal, não como estabelece a taxinomia, mas,
sim, credita a ele gênero especial, autônomo,
o de animal racional, que ele apelida de animot, espécie digamos
de ser de tendência animalesca, que é animal mas não pertence ao gênero animal,
por ter qualidades intrínsecas violentas, que fogem às naturais desse gênero —
assim como da família do lobisomem. Mesmo dotado da razão, de racionalidade,
esse espécime que assume a coroa de sapiens-sapiens, na verdade tem instinto
bestial. Ele, este animot, é capaz de matar, não por instinto como os
outros animais, por vontade própria, para se garantir como Rei da Criação.
Segundo o streap-tease vernacular
derridiano, o ser humano torna-se pior do que o seu suposto símile animal
irracional, quando ele se vê nu diante do espelho — de
certo o espelho que representa a racionalidade — espelho esse cujo reflexo o
faz confrontar com o animal irracional que dele este se envergonha.
Na visão draconiana do desconstrutivista, a
nudez refletida no espelho significa que ele, ser humano não passa de um animal
que se envergonha da própria brutalidade. Daí o título do livro O Animal que
logo sou, isto é, usando a dialética desconstrutivista — o ser animal
fantasiado de racional diante do espelho irreprochável da Razão, da Ética e da
Moral. O homem sem as vestes da ilusão que esconde o que ele na realidade é, um
animal, travestido de humano.
Claro que esta visão negativista, desconstrutivista
do ser humano atenta contra todos os princípios, inclusive os da própria
ciência, quanto mais dos estatutos do cristianismo, da própria Religião em si e
sua Teologia. Sem falar que, mesmo na caracterologia freudiana trata-se de um absurdo.
O ser humano, mesmo dotado da fagulha do raciocínio e laureado com o livre
arbítrio decair da linhagem dos seres superiores e não passar de um
troglodita, fantasiado de sapiens. Se assim é o ser humano na fatídica
cartografia de Derrida, inúteis teriam sido as palavras do Mestre no seu Sermão
da Montanha, quando aconselhou os seres humanos a serem bons e justos — estaria
laçando pérolas aos porcos.
CDL/Bsb, 20.08.21
UM
CAVALHEIRO EM MOSCOU
Murilo Moreira Veras
Em
pauta hoje o livro de Amor Towles — Um Cavalheiro em Moscou. O livro teve
mais de um milhão de exemplares vendidos nos EUA — o que não deixa de ser uma
referência. A meu ver não se trata, a rigor, de um best-seller pelas
características que o distinguem. Ao contrário, o autor narra uma história
fictícia, mas que parece real.
1.
Prólogo
A
história se passa na Rússia Soviética. Trata-se de uma crítica sutil ao regime comunista,
inteligentemente desenvolvida. Também com sutileza, a despeito de reconhecer os defeitos intrínsecos do capitalismo
libertário, os bolcheviques pelo seu regime voluntarista e autossuficiente.
2.
Enredo
A trama é construída à moda de um livro
policial, com pitadas de suspense, dentro de um quadro histórico da Rússia. O
protagonista principal um conde — Alexandr Ilitch Rostov, pertencente à velha
oligarquia moscovita, representando o principado da família Romanov, descendente
da mais bem sucedida dinastia dos tempos modernos. O império foi desmontado
pelos bolcheviques, que instalaram, a partir de 1917, a chamada ditadura do proletariado, segundo a
teoria de Karl Marx e posta em prática por Lenine e Stalin, a ferro e fogo.
O Conde Alexandr Ilitch Rostov é um dos
sobreviventes dessa poderosa oligarquia, e, como ocorreu em massa por serem
considerado um estorvo à nova ordem, foram eliminados. Por uma circunstância do
destino, os mandatários do governo, sob o comando vigilante da poderosa NKVD, decidiram
manter o Conde vivo, mas, como castigo, preso no Metropol, um hotel de luxo dos
mais frequentados por estrangeiros em Moscou. Também o lugar predileto de
reuniões da elite da Revolução — os mandatários da Rússia, agora governada pelo
proletariado. O Camarada Stálin — o Querido Pai, Void, Koba,
Soso, como conhecido o homem que dominou a Rússia cerca de trinta anos. Os
ajudantes são Beria, minstro da segurança, Bulganin, das forças
armadas, Malenkov, vice do Conselho de Ministros, Mikoian, do Comércio
Exterior, Molotov, das Relações Exteriores, Kaganovitch e Vorochilov,
do Secretariado e o prefeito de Moscou Nikita Khruschov — todos
pertencentes
ao apparatchic (pag.350).
No dia 3.03.53, Stalin morria em sua residência em Kuntsevo por acidente
vascular cerebral, substituído, depois de intrigas intestinas desses camaradas
do Partido, pelo bruto e calvo Khruschov — aquele mesmo que de forma grotesca
bateu os sapatos no plenário da ONU em 1960 (fato contestável hoje!).
Preso no Metropol num minúsculo quarto
de 5m, suíte 317, o Conde passa a viver e para sobreviver é nomeado chefe dos
garçons, devido seus conhecimentos de vinhos, pratos de iguarias finas e fino
trato com os clientes hóspedes do hotel. Acaba fazendo uma entourage de amigos, devido a convivência e a habilidade do Conde
em lidar com as pessoas, desde os porteiros,
aos garçons, o Chefe da cozinha e seus ajudantes, até a costureira
Marina, de que se torna íntimo, por lhe fazer o favor de consertar suas roupas,
pregar botões e outros pequenos serviços de costura.
Mas porque mantêm o Conde preso? Seria
um homem perigoso? Talvez — parece que tudo decorre de inveja dos mandachuvas
bolcheviques e mantê-lo vivo e humilhado, seria um bom exemplo como inimigo do
regime proletário. O Presidente do Conselho Comissariado do Povo, V.A. Ignatov, no processo de julgamento
do Conde declara: “... se voltar a por os
pés fora do Metropol, será baleado.”
3.
Crítica
Do ponto de vista da técnica ou arte
literária, o livro de Amor Towles é praticamente perfeito, diálogos afiados,
personagens complexas, circunstâncias baseadas em locais reais, a trama bem
construída, um suspense quase à la Hitchcock, não propriamente horrífero, mas
de efeito suspensivo, o leitor no afã de saber afinal o que vai acontecer com
aquele homem inteligente, de gestos polidos, sociável e erudito, durante tanto
tempo — 36 anos — exprimido num quarto de hotel internacional no centro de
Moscou.
O atrativo na narrativa é que na trama
o autor enxerta, nos diálogos e no próprio curso dos fatos, citações de autores
eruditos ou escritores famosos, situações de livros — isso que na técnica
literária denomina-se intertextualidade, tipo de citação
ou alusão. Daí os diálogos serem ricos, inteligentes, não se tornam ociosos, o
que sói ocorrer nos best-sellers
devido à mediocridade de certos escritores. Apesar de suas 460 páginas.
Ao correr da ação, o que o leitor quer
saber é o que vai acontecer com o Conde. Já tentou suicidar-se uma vez, ato
suspenso pelo olhar de um gato no telhado e o
repentino chamado de um amigo. Tem uma amante, artista glamorosa, às
vezes decadente — Anna Urbanova. Um embaixador americano se torna seu amigo e,
mais tarde, cúmplice de seu ardil final — Richard Vanderwhile. Cria uma menina,
filha de uma moça que conheceu muito jovem — Sofia. Um ex-coronel do Exército
Vermelho e alto oficial do Partido gosta de seu convívio e ambos adoram
Humphrey Bogart no filme Casablanca —
Óssip Glebnikov. O poeta Mikhail Fiodorovitchkov é seu amigo de juventude e
morre esquecido pela cúpula da nova ordem proletária moscovita.
De repente, pelo final da estrepitosa
vida do Conde no Metropol, dá-se uma verdadeira volta no parafuso da trama, o tour-de-force
final. O Conde foge, na verdade ele trama a fuga, dele e da filha adotiva
Sofia, uma trama minuciosamente elaborada, feita por um verdadeiro artista.
Depois de um imbróglio com um espião do regime, foge do hotel, vai para Níjne Novgorod — importante centro
econômico e cultural da Rússia. Sofia, sua filha, na verdade filha de Nina
Kulikova, a amiga desaparecida, é instruída por ele, Conde, depois do concerto
que vai fazer em Paris, em vez de retornar à trupe russa do conservatório, a
pedir asilo à Embaixada Americana, através do embaixador Richard Vanderwhile.
O autor construiu uma história
realmente fascinante. É um dos livros mais interessantes, dos mais de cem que
já li no Clube, pelo nível de interesse que nos desperta e a maneira escorreita
de sua escritura, sem, em nehnum momento, mediocrizar o texto e aborrecer o
leitor. Sem falar na crítica sub-reptícia que corre ao longo de toda a leitura
pelo uso inteligente da interxtualidade literária.
CDL/Bsb, 13.06,21
TORTO ARADO – ALEGORIA
DOS AFRODESCENDENTES
Murilo Moreira Veras
O livro hoje a ser discutido
no Clube do Livro é TORTO ARADO do
escritor Itamar Vieira Jr.,
baiano, geólogo e doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA.
O autor dá à sua
narrativa espécie de alumbramento, ou seja, impinge ao leitor apologia à
negritude, um hino à bravura e ao sofrimento da raça negra, transportada ao
Brasil num determinado momento de nossa história.
O que seria, como se
dá essa apologia no ideário do autor, eis o objetivo de nosso comentário. Ao
sofrimento, ao sangue derramado, aos desmandos praticados contra os negros escravizados
— é o que sugere o autor, ele próprio, negro. afrodescendente.
Com essa narrativa o
autor pretende defender o afrodescendente brasileiro, usando o vezo literário,
isto é, dentro do espaço ficcional, para o que utiliza os artifícios da arte a
seu alcance. Em razão disso, torna-se senhor da situação, maneja com certa
facilidade os meandros de sua ficção e constrói, assim, o enredo de seu Torto Arado. Usa e abusa do monólogo,
autor/personagem, troca um personagem por outro, para quebrar a monotonia da
leitura. Ora é o personagem Bibiana que fala, ora é sua irmã Belonísia, esta
desprovida da fala, devido antigo acidente de uma faca escondida de sua avó
Donana. Há também capítulos de monólogos de outra personagem, invisível, por
sinal, um encantado, um dos espíritos
que dominam o terreiro da macumba, as
brincadeiras de Jarê, que ocorrem sempre na casa de Zeca Chapéu Grande, o
filho de Donana, uma mulher sofrida, portadora de muitas ocorrências em sua
vida. Observe-se que, em São Luis-Ma, esse tipo de festejos sincréticos, são
chamados de Tambores de Mina. Nas
noites de sábado costumam soar em toda a
cidade o batuque desses tambores, a zoeira dos atabaques, varando a noite. Quem
o desvenda é o escritor maranhense Josué
Montello em seu Os Tambores de São
Luis.
Estudioso da etnia
africana, o autor parece dominar a matéria e faz uso astucioso e ficcional
desses elementos étnicos, os etos da
raça negra, seus rituais, religiosidade e exotismos com que se caracterizam os
diferentes povos habitantes da África. Vale dizer que esses elementos ainda
surpreendem a arte literária, razão talvez de o autor ter sido galardoado em
dois prêmios Oceanos e Jabuti — o último o mais importante nas
letras brasileiras.
À primeira vista, o
livro de Itamar parece ter enredo simples, a história de um suposto quilombo
chamado Águas Negras, no interior da Bahia. Seria mais uma dessas narrativas
oficiais de assentamento como muitas ocorridas nesse verdadeiro continente
chamado Terra Brasilis. No caso, trata-se de uma horda de negros, ditos afrodesecendentes,
deslocados de suas origens e dos locais onde sediados, que agora, à conta da
Lei do Ventre Livre de 1871, emigram
para outras paragens, Águas Negras, onde se fixam, posseiros de tratos de
terra, submetidos a seus respectivos proprietários. O enredo se desenrola a
partir de um personagem, Zeca Chapéu
Grande, e sua família, a mulher Salustiana
e as filhas Bibiana e Belonísia. Ele é analfabeto, mas
trabalhador rural, curador, Pai de santo e orientador espiritual daquele bando
de ex-escravos, sem eira-nem-beira por
causa da Lei do Ventre Livre, a qual falsamente os livraria do jugo da
escravidão.
Torto Arado, pelas mãos e imaginativa do autor, vai desfiando o pavio dessa
história (estória), lenta e progressivamente, pequeno retrato trágico de um
povo, definido na nossa nomenclatura oficial de afrodescendente.
Passemos, em largos
passos, a desvendar os ardis dramáticos dessa história. O autor os cria para
surpreender o leitor. São dois segredos,
originários do misticismo, utilizados como técnicas literárias: uma faca misteriosa, objeto raro,
afiadíssima, escondida por Donana, a mãe de Zeca Chapéu Grande: e um velho e
desconjuntado arado, que não se sabe
como aparece às mãos de Zeca, tornando-se seu objeto de trabalho na lavoura.
O arado dá título ao
livro e ambos, o arado e a faca constituem o mistério que rondará todo o
desfiar dos capítulos, envolvendo os personagens.
Tentaremos explicar
os dois segredos, o moto próprio do livro. Seriam ambos o tour de force do lavor
dramático do autor. Dá força própria ao romance. A explicação dos segredos é
totalmente minha, necessariamente não devem coincidir com outras
interpretações. A FACA significa a
altivez e dignidade do negro, herdadas de suas linhagens anteriores, suas etnias trazidas da África. Donana, mãe
de Zeca, a mantém consigo, atravessando o tempo. Essa altivez é quebrada quando
as duas irmãs Bibiana e Belonísia a descobrem e sofrem influência negativa:
Bibiana torna-se moça vulnerável ao amor (o beijo escondido dado em seu primo
Severo, com quem depois se casa) e Belonísia, devido descuido fatal, tem sua
língua cortada, fica muda, mas adquire com o tempo força e coragem
insuperáveis, a ponto de, mais tarde, abandonar o marido machão Tobias, também
quando enfrenta com audácia o marido de Maria Cabocla, que covardemente a
ataca. Já o ARADO, desconjuntado,
torto, é à força de trabalho do negro, entortado devido a separação de seu
berço original, a mãe África — representa a escravidão no Brasil, na figura
intrépida de Zeca Chapéu Grande, sua dignidade e tirocínio, naquele momento
responsável pelos trabalhos agrícolas daquela comunidade, seu condutor, mestre,
curador, parteiro e Pai-de-santo, ajudado pelos encantados, figuras místicas, espíritos, que, em certas ocasiões,
nele se incorporam. Singularidade: é analfabeto e recuperado de uma loucura na
mocidade.
CONCLUSÃO
TORTO ARADO é a representação etnográfica dos afrodescendentes no Brasil, que
aqui sofreram, deram seu sangue e aqui implantaram novo berço civilizatório — a
etnia afrobrasileira, significativa parcela da população da Terra Brasilis.
CDL/Bsb, 15.04.21
EMMA — A CASAMENTEIRA
Murilo Moreira Veras
Moça de família abastada, bonita e inteligente de 23 anos,
solteira — eis as características da personagem criada por Jane Austen no romance EMMA.
Sua atividade predileta: arranjar casamento das amigas. É o livro em pauta no
Clube hoje.
1.
Prelúdio
Jane Austen — escritora que viveu no século XVIII e XIX —
celebrizou-se por ser considerada a melhor cronista social da época. Por
incrível que pareça sua fama cresceu mais na modernidade, em nossos dias, com
tiragens sucessivas de seus livros e vendagem de absoluto sucesso, com público
leitor cativo. Dir-se-á idêntico ao sucesso que nosso Machado de Assis obtém,
ainda hoje. O segredo como caiu no gosto do público, talvez seja a maneira de
escrever da autora, espécie de psicóloga da sociedade, que desnuda eventos,
descreve as atividades da vida de personagens no passado, os relacionamentos
sociais e familiares, gostos e costumes. São 368 páginas, lidas, acompanhando
os passos de uma pequena multidão de personagens, que lutam por se darem bem na
sociedade.
2.
A guisa de Enredo
Emma, filha do Sr. Woodhouse,
é uma moça vivaz cuja principal atividade é fazer o encontro de seus amigos e
amigas, para fins matrimoniais, como se não tivesse mais nada a fazer, numa
época em que as pessoas, as famílias, em vez de voltarem-se para o trabalho, se
esforçarem para alcançar um lugar na sociedade, valiam-se de futilidades, comedorias, festas,
o que vestir e o que dizer e comer em encontros familiares e sociais. Tudo
desde que os fatos se passassem intramuros de uma sociedade feita de castas
sociais, como aponta a autora no seu relato social sobre a época na Inglaterra.
Emma perdeu sua genitora
muito cedo, cresceu sob os cuidados de uma governanta, Srta. Taylor, que,
depois, se casa com o Sr. Westorn, o casamento inclusive arranjado pela própria
Emma. Seu pai, Sr. Woodhouse, por sinal hipocondríaco, odiou a saída da governanta
que fazia tudo na casa, comandando um séquito de empregados, costume à época,
os proprietários não faziam nada, dependiam dos criados, até para se vestirem! Ela torna-se amiga íntima de Harriet Smith,
filha natural, não pertencente à grei superior da sociedade, criada num
albergue de meninas solteiras e pobres, aos cuidados da Sra. Goddard, praticamente
sem amigos. Emma resolve proteger a coitadinha e mais, arranjar-lhe
imediatamente um bom partido. Entre sua
roda de amigos, todos abastados. Os candidatos logo aparecem: Sr. Elton, o
pároco, Jonh Knightley e Frank Churchill, este filho do Sr. Weston de seu
primeiro casamento, criado por outra família. Começa logo os desacertos, Emma
pensa que o pároco se interessa por sua pupila, na realidade este pretende
conquistar é a própria Emma. Também erra quanto ao Sr. Knightley, seu amigo
mais íntimo, que tem grande simpatia por ela e ela não suspeita. Os fatos vão
se desenrolando, com encontros, festas, muita futilidade, quando outros
personagens surgem. Jane Fairfax é outra personagem, seu pai é Tenente falecido
em serviço, a mãe Jane Bates, já falecida. Não tem grandes recursos. Emma surge
como feiticeira e não percebe que o Sr. Churchill é muito interesseiro e acaba
se desencantando com a pobre Harriet, trocando-a por Jane Fairfax, embora
também pobre.
Mais uma vez o tino de
Emma se engana, quando a amiga Harriet é pedida em casamento nada menos por um
agricultor rude, Robert Martin, de família de segunda categoria. Emma logo o rejeita,
pois ela acha que Harriet merece marido melhor, pertencente a casta social.
Ocorre que o candidato certo mesmo para Harriet era o agricultor Robert Martin.
O pároco, Sr. Elton, é rejeitado definitivamente por Emma, personagem no livro
interessante e muito culto, mas, no filme — há um filme sobre Emma — chato,
interesseiro e boboca.
Depois de muitas páginas
de encontros e desencontros, banquetes, conversas e convescotes de madames e
cavalheiros, bem vestidos, danças e mais danças de salão, sem falar no mau
humor do hipocondríaco Sr. Woodhouse, que sempre acha que a filha não vem
acertando nos casamentos, mas aceita sua vontade. Enquanto isso, tem como hóspede sempre presente o Sr.
Knightley, o qual na realidade acaba se declarando a Emma, que só depois de
muito tempo percebe ser ele a quem ela ama. Aliás, de toda essa chusma de
candidatáveis nessa sociedade fútil, formada por homens e mulheres, mais ou
menos inúteis, interesseiros e inconsúteis aos grandes problemas sociais e
filosóficos, é o Sr. Knightley o único conselheiro e crítico sincero de todas
as ações casamenteiras de Emma. No
final, os casais acabam se acertando, dentro dos padrões recomendáveis com nada
de novo no front da sociedade inglesa.
3. Nosso Comentário
A autora retrata a
cultura, os usos e costumes da sociedade inglesa nos séculos 18 e 19. Em tom
satírico, usando crítica sutil, recria em seus romances a Inglaterra à época.
Sobre sua própria escritura e criação, declara: “Emma é o tipo de heroína que ninguém, além de mim, vai gostar.” Há
certa verdade, à medida que o leitor vai conhecendo as veleidades casamenteiras
de Emma, acertos e desacertos, como se as pessoas fossem simples brinquedos e
não tivessem sentimentos e desejos próprios. Esquece o que sabiamente disse
Pascal: “O coração tem razão que a
própria razão desconhece.” Nesse aspecto, a autora critica as
casamenteiras, mas não deixa de se deleitar com essa atividade, vê-la tão
importante quanto à das parteiras. Emma seria espécie de o que hoje se poderia
designar couching matrimonial, dava
aquele empurrãozinho aos matrimoniáveis. Embora muitas vezes, as coisas dessem
errado, caso de Emma querer conduzir Harriet para os braços de candidatos que
nada tinham a ver com ela, contrariando o que o coração lhe havia apontado.
Estranhável em todos esses
imbróglios de casamento, é que Jane Austen precise escrever 368 páginas para
desenvolver esse enredo. Coitado do leitor, saber dos ataques iracundos do hipocondríaco
pai de Emma. Ver o Sr. Knightley criticar as manobras matrimoniais desastrosas
de Emma, no seu jogo de pretendentes, embora a amasse em silêncio. Aturar as
veleidades e bazófias do Sr. Elton, o
pároco, querendo conquistar Emma e ela pensar que ele se dirigia a Harriet, uma
ingênua criatura. Frank Churchill é o candidato vip, que primeiro ataca Emma,
mas volúvel em suas atitudes acaba se passando para a pobre da Harriet, depois
a talentosa Jane Fairfax, também desprovida de riqueza. O Sr. Robert Martin é o
candidato certo para Harriet, são da mesma casta, não integram a clã dos ricos,
aliás, rabugentos ricaços, preguiçosos, preconceituosos, volúveis,
interesseiros e, porque não dizer, preguiçosos. Emma é uma cabeça dura, acha
que sua pupila vale mais que um simples agricultor, o Sr. Martin. Acaba caindo
na real, Harriet e Martin foram feitos um para o outro. Agora é só fechar a
cortina e surgir em letras bem visíveis: FIM.
Que tal, nós leitores do
Clube que lemos já tanta coisa, descobrir, com certa argúcia e inteligência,
que essa história/estória é uma imitação da peça “Comédia dos Erros”, de Shakespeare?
Bsb, 18.02.21
O ALBATROZ AZUL — UM DELÍRIO BAIANO
Murilo Moreira Veras
Em pauta hoje no
Clube do Livro, O ALBATROZ AZUL do escritor baiano João Ulbado Ribeiro, publicado sob o selo Nova Fronteira. Autor
consagrado pela crítica literária, jornalista dos mais conhecidos, já falecido.
1.
Prólogo
A orelha do livro
faz uma apologia à obra do autor. Sabe-se que foi discípulo de Jorge Amado.
Sempre que possível ele mantém alguma semelhança com a obra do mestre. Entre os
dois, discípulo e mestre, há uma singularidade, que os separa a ambos — a
criação literária. Ubaldo integra a convencionada linha do realismo mágico, seguida pelos autores sul-americanos, Garcia
Marques, Miguel Astúrias, Carlos Fuentes, Juan Ruflo, Adolfo Bloy Casares,
Júlio Cortazar e os brasileiros Murilo Rubião, José J. Veiga, Dias Gomes e até
nosso singularíssimo Guimarães Rosa. Observe-se
também outro viez que diferencia os dois, Ubaldo e Jorge Amado — a
erudição. Ubaldo tem sua escritura trabalhada, respira erudição, enquanto Amado
parece ligado às tradições dos rituais africanos, ao afoxé baiano, candomblé e
outras pendengas e mandingas. É o que se observa, por exemplo, no romance de
Amado Dona Flor e seus dois Maridos .
2. Enredo
O
enredo é simplório, embora à medida que se desenvolve torna-se uma história
fantástica. Tudo se passa (assim como nas obras de Jorge Amado), no tal
Recôncavo Baiano, onde o impossível adrede acontecer. Tertuliano Jaburu — o
personagem principal — cujo pai chama-se Juvenal Peixoto do Amaral Viana
Botelho Gomes, por sua vez filho do rico negociante português Nuno Miguel
Botelho Gomes, vive e mantém seus negócios herdados na Ilha, o Recôncavo. Sua
mãe de criação e madrinha é Iaiá Cencinha, espécie de matrona que administra
seus bens, também herdados, mulher forte, muito religiosa, mas rigorosa não só
quanto a seus bens, mas na formação e criação de seu afilhado e considerado seu
filho predileto, Tertuliano. O pai deste é Juvenal, que teve duas famílias,
numa espécie de concubinato consentido, uma das mulheres, a Albina, era sua
mãe. Sua filha Belinha, casada com Saturnino, agora vai ter um filho, o rebento
será neto de Tertuliano. Por isso, ele está muito feliz pela nascença do
rebento, inclusive porque é menino.
É quando ocorre o
inacreditável: o menino nasce “de bumbum
pra lua”, fato considerado de sucesso, grande felicidade para o rebento. O
objetivo de Tertuliano é fazer seu neto sempre feliz, garantir seu sucesso na
vida. Para isso vai dar-lhe o nome de santo — Raymundo Penaforte. Outra ideia lhe ocorre: escolher como seu
padrinho Zé Honório, homem rico, de
conduta ilibadíssima. Para isto faz-lhe uma visita, solicita seu aceite, a que
Zé Honório acede de bom grado, comprometendo-se a educar seu afilhado como se filho
fosse. A essa altura dos acontecimentos, Tertuliano, já com certa idade, tem a
presunção de estar prestes a morrer. É atacado de delírios, num deles
encontra-se numa lagoa, nela entra, quando se vê à frente de uma pedra que
começa a falar, diz-se ser a pessoa de um soldado holandês por nome Hendrick
Beekman. Algo a ver com Manuel Beckman, insurreto da Revolução em 1685, em São
Luis-Ma contra a burguesia portuguesa, considerado protomártir da Independência
do Brasil? A tal pedra falante diz ser a pessoa de Beekman, morto e
transformado em pedra. Então, alucinado vê-se transformado num grandioso
albatroz azul, agora se dirigindo em direção ao sol.
3. Nosso
Comentário
Refletindo de mim
para mim, devo confessar que o autor é uma espécie de dublê de Jorge Amado,
apenas com uma diferença fundamental: é sua contraparte erudita. Amado sempre
foi displicente nas letras, escrevia em jorros e vangloriava-se de seu viés
populista, fabulatório representante da cultura baiana, com raízes africanas,
decantando os ritos, rituais e lendas do
afoxé, candomblé e quejandos. Ubaldo neste romance, como noutros publicados,
segue os passos de seu mestre, embora de forma erudita. Não há negar que ele
honra as letras do escritor baiano. Inobstante, em certos momentos, como soe
ocorrer neste livro ele abusa de exagerado beletrismo, palavreado gongórico,
certo preciosismo de termos e linguagem, como o disposto às páginas 156/7 — uropégio,
desgravidado, pousadeiro, avoengo, nímias, ancilar, pluricopada ... —
praticamente dispensáveis em obra de peculiaridade supostamente popular, igual
a utilizada nos romances de Jorge Amado. Confesso que o livro não deixa de ser
interessante, embora de leitura difícil devido a estilística arrastada do
autor.
Bsb, 15.01.21
MEMÓRIAS
DE UM SARGENTO
DE MILÍCIAS - RELATO REALISTA
Murilo Moreira Veras
O livro em pauta no Clube do Livro é do autor Manuel Antônio de Almeida, “Memórias de um Sargento de Milícias.” Trata-se de uma narrativa realista que, aliás, contraria a vigente à época, a literatura romântica.
1. Prólogo
Alguns estudiosos
acreditam que Manuel Antônio de Almeida, com esse relato, publicado em 1853,
tenha iniciado o realismo no Brasil. O realismo que já vigia em Portugal, com
os romances inovadores de Eça de Queiroz, Primo Basílio, Crime do Padre
Amaro e outros do mesmo jaez publicados pelo autor. Embora a historiografia
literária aponte como iniciador do realismo Machado de Assis, com seu
revolucionário Memórias Póstumas de Brás Cuba, o fato de maneira alguma desautoriza o caráter
realista da obra de Manuel Antônio de Almeida, nem tanto à altura de um
Machado, mas tão realista quanto os romances de Aluízio de Azevedo, como O
Cortiço, Casa de Pensão etc.
2. A
Trama
Na realidade, o autor
escreveu um folhetim, à época muito utilizado pelos escritores, inclusive o
próprio Machado. Gênero de largo uso na Europa e copiado no Brasil — hoje
reutilizado pela TV. Assim, o enredo de seu folhetim acompanhava o ritmo da
continuidade, ou seja, dos episódios sempre terminarem num suspense para serem
resolvidos no seguinte. Isto fazia com que o leitor ansiasse pelo resultado e
procurasse ler o capítulo seguinte. Explique-se: o cinema utiliza muito essa
estratégia, colhida dos famosos seriados de faroeste do passado. É certo que em
1853 o cinema não havia ainda nascido, tampouco a TV. O gênero folhetim foi a
fonte de todas essas técnicas posteriores.
O personagem central chama-se
Leonardo-Pataca, que acaba passando a segundo plano no correr do relato, à
medida que surgem outros nomes, outros cenários e ao tempo em que se dão os
imbróglios cooptando a atenção do
leitor. Leonardo é filho do Pataca, que o abandou muito criança. O menino é
criado por seu padrinho, que por todos os meios procura protegê-lo, dar-lhe
educação e ter uma profissão rentável — por exemplo, cursar advocacia em
Lisboa, seu sonho. Ocorre o contrário: o menino vai a cada dia se tornando
igual ao pai, malandro, astucioso e, quando rapaz, mulherengo. Mesmo assim, é
protegido e até mimado, pelo padrinho e pela madrinha. Suas estrepolias começam
desde cedo, em casa, na escola, na igreja. Já homem feito, envolve-se em atrapalhadas,
até que cai na mão de ferro do inspetor de polícia, Vidigal, o terror dos
flibusteiros, arruaceiros, gatunos e que tais. É preso por vagabundagem, o
padrinho o salva. Mas o padrinho-protetor falece e Leonardo vai morar com a
madrinha, que vai agora livrá-lo das enrascadas em que se mete. Até que Leonardo acaba desfeiteando o
poderoso Vidigal que o trancafia de vez. Mas logo a Comadre, sua madrinha vem
socorrê-lo. Vidigal não a atende. Então, ela procura pessoas conhecidas
importantes, como D. Maria, rica senhora, viciada em demandas judiciais, que
diz vencê-las todas. A essa altura, Leonardo já está apaixonado por Luizinha,
sobrinha de D. Maria, sua protetora. Mas eis que surge José Manuel, velho
conhecido, que quer se casar com Luizinha, pretexto para abocanhar seu belo
dote, junto à rica matrona. Sem meios, agregado em casa de uma também namorada,
Vidinha, e sem emprego, Leonardo perde Luizinha, que acaba se casando com o
vigarista. A essa altura, Leonardo está preso e Vidigal não quer soltá-lo de
jeito nenhum. E aí vai surgir uma outra personagem a Maria Regalada, de quem
Vidigal fora apaixonado no passado, a quem a Comadre recorre, junto com D.
Maria. Vão à casa de Vidigal e ousam quebrar a teimosia dele: Maria Regalada
pede a soltura de Leonardo em troca de sua pessoa — o que seu antigo fã não
resiste. Assim, Leonardo é solto e recebe até uma recompensa, graças à
astuciosa Regalada: é nomeado Sargento de Milícias, posto muito cobiçado
à época. José Manuel com quem Luizinha é infeliz falece e Leonardo agora
oficial casa-se com ela, além de receber toda a herança deixada por seu
padrinho. São estas as Memórias deixadas por um Sargento de Milícias.
3. À
Guisa de Crítica
Ora, não é de crer-se
que essas peripécias narradas em episódios constituam uma obra-prima. Mas o
livro tem seu valor: trata-se de relato vigoroso e ao mesmo irônico, de como
eram os fatos e as ocorrências no século XIX, no Rio de Janeiro, o
comportamento das pessoas, os costumes e até o tipo de culinária e
divertimentos adotados. Como folhetim, atos e fatos correm soltos, muitos são
engraçados, sem implicações aterrorizantes, uma espécie de passatempo em
linguagem chã. E o curioso: o autor usa, às vezes, vocabulário arrevesado,
quiçá erudito, talvez para compensar que trata da vida de pessoas da classe
média e baixa, valorizando-a portanto. Daí talvez seu mérito, enquanto autores
mais esnobes cascavilhavam feitos grandiloquentes, para agradar a sociedade alta.
4. Conclusão
Achei interessante o livro, quase uma
brincadeira de esconde-esconde literário. Reúne fatos comportamentais, retratos
da vida da camada menos rica da então capital federal, numa grande e, às vezes,
saborosa reportagem feita de intrigas, pensamentos e ações, todas recorrentes dos
seres humanos.
Vocabulário escorreito em Memórias de um
Sargento de Milícias
Olhadas
= espiada
Estralada =
?
Escrupulizar = ser rigoroso
Mareta =
?
Atalbafar
= ?
Aguar
= molhar, aguar
Serrazinas
= ?
Farrancho
= ?
Cambeta
= pernas cortas
Lambeta
= ?
Surdir =
?
Embarafustar
= entrar de modo impetuoso
Machacaz
= ?
Súcia =
corja, malta
Mocetona
= moça forte
Salvatério = ?
Bsb,
9.11.20
A
HORA DA ESTRELA — QUEDA EM ASCENÇÃO?
Murilo Moreira Veras
Continuamos no Clube do Livro
a prestigiar, com a leitura, nossos autores. Hoje — 21.10.20 — discutimos A
Hora da Estrela, de Clarice Lispector. O livro foi editada em 1977, mesmo
ano que a autora veio a falecer, portanto sua última obra.
1. Prólogo
A autora já é nossa
conhecida e, embora tenha vivido pouco, foi prolífica na escritura. Até hoje
seus livros continuam explodindo nas livrarias, agora sob o selo da Rocco. Interessante
que as edições de seus livros tenham sido oportunizadas por seus filhos Pedro e
Paulo Lispector, os únicos herdeiros. Foi sua última obra, em 1977. Sabe-se que
Clarice Lispector, nascida na Ucrânia e nacionalizada com meses de idade,
sempre se disse brasileira, embora tenha fala de estrangeira, que ela atribuía
a defeito (língua presa). Formou-se em Direito e foi amiga de Lygia Fagundes
Telles, assim como de Érico Veríssimo, nas suas andanças pelo
exterior, com o marido, cônsul ou embaixador. Nélida Pignon, da ABL em
suas memórias fala muito da escritora, a quem muito auxiliou nos seus
contratempos, inclusive até na hora de seu falecimento no Rio. No princípio, a
crítica oficial não lhe fez loas, ao contrário, deu-lhe pouco fôlego, inclusive
sem esperança de ir longe por sua maneira de escrever, difícil, intimista e
fora da realidade. Dá-se justamente o contrário: a obra literária da escritora
teve aceitação inédita e prospera até
hoje, aqui e no exterior, a par de outros best-sellers como os livros de Virginia
Wolf, Mary Allcot e Jane Austen.
2. Do
Enredo
O desenrolar de A
Hora da Estrela parece simples, à primeira vista. Narra ou pretende narrar um
pedaço da vida de uma migrante nordestina no Rio de Janeiro, moça sem nenhum
encanto pessoal, magra, de poucas letras, mas acima de tudo, virgem e boa de
intenções. Uma estrela apagada — dir-se-á. É simples datilógrafa de um firma,
vive agregada numa pensão com outras companheiras, inclusive uma chamada Glória,
que se diz carioca da gema. O primeiro imbróglio no livro é que é escrito por
um autor onisciente, que se transforma inclusive em personagem — o leitor assim
tem de atentar para a Macabeia e seu criador, também feito titular na
narrativa, ambos confundindo-se com o próprio autor, Clarice. É um truque da
autora. A medida que se desenrola a estória, o falso autor se trumbica, quer
parar a narração, ama e odeia seu personagem ao mesmo tempo. Observe-se que
esse truque também foi usado, por exemplo, por Érico Veríssimo, no formidável O
Tempo e o Vento. Alexandre Dumas, prodigioso escritor francês do século
passado, a propósito de sua obra maior O Conde de Monte Cristo, afirmava
que seu verdadeiro autor lhe teria deixado os originais na porta para que ele a
publicasse. Pois bem. Macabeia, o nome da personagem, de vida simples e sem
qualquer interesse, vive por viver, acaba arranjando um namorado que se chama
Olímpico e os dois parecem irmãos, porque nada ocorre entre eles. Com o tempo,
ela acaba perdendo-o para sua colega de trabalho, a Glória, que se dizia
carioca da gema com quem o tal Olímpico quer se realizar, inclusive quanto a
seus anseios, de ficar rico e ser político na Paraíba. Por fim, Glória
aconselha Macabeia a melhorar sua vida, consultando uma cartomante. A pobre
criatura vai à dita-cuja, que lhe enche de sonhos mirabolantes, a compensar sua
vida medíocre, até lhe dá um namorado que irá fazê-la rica, um alemão imaginário
chamado Franz. A moça sai da casa da cartomante encantada. De repente, na rua é
pega repentinamente por um automóvel Mercedes. Ela cai no calçamento, ainda com
vida, tem visões, enfim morre. Ali perto um violinista mambembe toca uma música,
enquanto Macabeia expira. Eis o roteiro, às vezes extraordinário, depois,
abrupto, espécie de ascensão ao paraíso. Queda em ascensão — dir-se-á.
3. Nosso
Comentário
Nesta que foi sua
última obra literária, Clarice Lispector parece manifestar seu estado de
levitação, entre a mística e o realismo. Certo escritor português — Lobo
Antunes — afirmou que a escritora nascida ucraniana, mas naturalizada brasileira
de Maceió, plagiara escritos da inglesa Virgínia Wolf, embora não tenha
apresentado prova concreta — quem sabe por inveja. Os literatos oficiais, às
vezes agem assim, fazem-se donos da verdade.
Espantou-me essa
lavratura inorgânica de Clarice. Ter-se-á ela própria previsto sua passagem
para o Paraíso? A autora sempre se mostrou esquiva, também a esquivaram, de
início, das letras. Depois, eis que reconhecem sua virtuose literária. Era
nortista, de Alagoas, de família imigrante, os pais pobres, estudou em colégio
público, quem sabe até sofrendo bullying.
A
Hora da Estrela é uma obra de leitura difícil, por seu
caráter intimista. Talvez seja uma obra-prima, ou simplesmente uma prima-obra — depende do olho clínico do
leitor, ao identificar-se com a história. O livro reflete uma visão telepática
e esquizofrênica da própria autora, da vida e do mundo. Disto o sei, mas não me
vanglorio, porque não a condeno por algum plágio seu como lhe acoimou, sem
prova, o escritor de além-mar. O fato é que Clarice pratica, neste e em quase
todos os livros, o misterioso streams of consciousness, o fluxo da
consciência, ou o monólogo interior, o solilóquio, como o fizeram muitos outros
escritores famosos, verdadeiros ícones, Gertrud Stein, Marcel Proust, Samuel
Beckett, Jonh dos Passos, William Falkner e até nosso imaginoso Guimarães
Rosa. Trata-se de uma escritura fluídica que deriva da consciência ou do
inconsciente, que jorra espasmódica do estro do autor, livre dos ditames
ditatoriais da razão e da moral.
Clarice não escreve
para nos agradar, parece nos abastecer de ideias negativas, conquanto nos
renove a alma com rasgões de claridade, mesmo na escuridão. Prefere nos falar
da essência humana, acena-nos para a glória, ao mesmo tempo que nos enfurece,
por nos apresentar a lucidez da transcendência, enquanto o mundo se veste de
vergonha.
Macabeia — o feminino
do Macbeth shakespeariano ou o lado
angelical do Macabeus bíblico? — será ela, a própria Clarice, espécie de Anjo
Caído? O ser humano neste mundo, não
passamos todos de Anjos Caídos, invertidos, como a Macabeia, das funções
de brilhar? A Hora da Estrela é a hora de nos mostrarmos cintilantes numa
existência que se nos mostra controversa? Ora, se na vida não passamos de
estrelas apagadas — como a inútil Macabeia — morrendo, nosso estro se reveste
de estrela brilhante, a buscar o paraíso transcendental?
De mim para mim, penso
que o livro de Clarice nos apresenta a verdadeira face do mundo — uma explosão
de lutas, ilusões, mas que, redimensionados por efeitos positivos, faz com que
nossa alma, à hora suprema, se torne uma estrela brilhante, que aspira ao
Paraíso.
Bsb,
6.10.20
MATURIDADE — UMA EXPERIÊNCIA INTERIOR
Murilo Moreira Veras
O livro em pauta é Com a Maturidade Fica-se mais Jovem,
o autor o escritor laureado com o Nobel de 1946 – Hermann Hesse. Alemão
nacionalizado suiço, prolífico inundou o mundo com romances, como Peter
Camenzind (1904), Gertrud (1910), mas ficou mais conhecido pelos
livros Sidarta (1922), Lobo da Estepe (1930) e Damian. Foi
leitura como que obrigatória dos iniciantes na contracultura, depois por suas
obras de cunho budista.
Comentarei o livro algo diferente, seguindo a leitura que
fiz com algumas observações, às vezes aleatórias, mas pertinentes ao espírito
do livro do sr. Hesse.
Pag. 41 – Sobre o tema Velhice:
...Superar o sofrimento e a morte é tarefa da velhice,
enquanto o entusiasmo, o arrojo e a agitação constituem partes do temperamento
da juventude. Ambas podem ser amigas, mas falam idiomas diferentes.
Comento: Nem sempre temos condições de superar o
sofrimento. É uma arte o fazê-lo. Idiomas diferentes? O sofrimento se apresenta
no mesmo idioma, o idioma da dor, compreendê-lo e superá-lo, depende do estado
espiritual do suposto sofredor.
Pag. 45 – Esboço (poema):
...Com a maturidade, nos tornamos cada m
ais jovens. Isso também acontece comigo, embora não queira dizer muito,
uma vez que no fundo, sempre tive a mesma disposição da mocidade, encarando a
idade adulta e a velhice como uma espécie de comédia.
Comento: Não há negar — envelhecer é uma arte. Penso que
hoje, no meu caso, tenho mais vigor intelectual e até artístico do que quando
fui mais jovem. O jovem é sempre afoito, às vezes não entende muito o que seja
o sentido da vida. Já os supostos velhos, encanecidos pela idade e os cabelos
brancos — adquiriram mais maturidade intelectual, veem as coisas depuradas,
filtradas pela razão.
Pag. 49 — Harmonia entre movimento e repouso:
...A interminável e pantomímica dança da copa na
tempestade foi apenas uma imagem, uma revelação dos mistérios do mundo além da
força e da fraqueza, do bem e do mal, dos atos e dos sofrimentos.
Comento: Neste capítulo Hesse se refere aos mistérios
naturais e espirituais que envolvem a vida e o mundo. Compara-os a uma árvore
açoitada pela fúria dos ventos. Nós, humanos, às vezes somos açoitados pelas
desventuras, os sofrimentos imprevistos e sofremos sem termos adquirido a sabedoria necessária para
compreender tais mistérios.
Pag. 57 — Sobre a velhice:
... Ser velho é uma tarefa tão bela e sagrada quanto ser
jovem, da mesma forma que aprender a morrer e saber morrer são atributos tão
valiosos quanto quaisquer outros, desde que o encaremos com o devido
respeito pelo significado e pela
santidade da vida. O velho que odeia e teme a velhice, os cabelos e a
proximidade da morte é tão indigno de representar sua categoria quanto o ser
jovem e vigoroso que a própria profissão e sua atividade diária, delas tentando
esquivar-se.
Comento: Hesse nos faz
um relato do que acha que seja a vida dos anciãos. Assegura-nos a experiência
que os protótipos dos jovens e dos velhos, às vezes, têm conceitos diferentes.
Há jovens que se acham velhos porque desfiguraram sua juventude. A recíproca
também é verdadeira: há anciãos que não reconhecem sua própria condição e se
passam por novos, ou querem fazê-lo, o que os tornam ridículos no convívio
societário.
Pag.65 — Dia Cinzento de Inverno (poema):
... À entrada de um novo espaço vital, o átrio da
velhice, um velho vos deseja os dons que a vida tem a nos oferece nessa etapa:
maior independência da opinião alheira, maior tranquilidade, insensibilidade às
paixões e imortal devoção ao eterno.
Comento: O átrio da velhice, às vezes, é dispare, ao
qualificar os avançados na idade. Uns se deixam enrodilhar em paixões, o que os
tornam ridículos. O famoso caso do Crime da Mala, ocorrido no século
passado em São Luís, Ma, é típico. O vetusto Desembargador Vergueiro cai de
paixão por uma “rapariga”, com ela se relaciona, mas é por ela atraiçoado.
Louco de ciúme, maquina o crime: tira-lhe a vida e em pedaços, coloca-a numa
mala previamente preparada. O crime abalou a cidade e integra a lista de
assassinatos mais sinistros ocorridos
nos arquivos criminais.
Pag. 103 — Um chamado do Outro Lado das Convenções:
... É inegável que meus textos contêm, aqui e ali, uma
fagulha, um esboço das nuvens e filigranas de um tradicional retábulo, detrás
do qual se imagina uma ameaça apocalíptica; (Pag.105). ... A vida tem um
sentido? Não seria melhor dar um tiro na cabeça?
Comento: Parece ser este um dos principais motivos que
levam as pessoas ao suicídio — a falta
de um sentido da vida. Nosso Hesse parece-me algo tergiversativo quando lhe cai
no colo essa indagação do “rapaz desconhecido”. Suas elucubrações são ambíguas,
fogem do sentido, até nos embaralham a mente. Ora, o sentido da vida é a vida
ter sentido, é a pessoa crer na existência e fazer dela uma direção. O ateu ou
o agnóstico certamente não tem sentido da vida. Ele vive simplesmente por viver
— é a sartriana filosofia de vida de o
autor de “O inferno são os Outros.”
Pag. 113 — Experiências Outonais:
Comento: As ditas experiências outonais do autor
estão eivadas de tristeza, espécie de consolo e exemplo, como ele refere. Não
afinam com meu gosto.
Pag. 149 — Epílogo (comentário final de Volker Michels
sobre o autor e seu livro):
... “O objetivo de todo esforço poético seria a
semelhança, no ocaso da vida, com Hermann Hesse. Sem embargo, a intimidade com
a sua vida e as suas realizações nos dispensa da leitura de sua obra, bastando
apenas um olhar, pois a identidade da pessoa escrita se confunde com seu
próprio semblante. Se não o lêssemos, no entanto, na realidade não o veríamos.”
NOSSO COMENTÁRIO FINAL
O livro do sr. Hermann Hesse serve-nos como espécie
de laudatório epifânico da velhice, enquanto desfia, também, as mazelas da
decadência física do ser humano. Como não bastasse, em estilo edênico, o Nobel
alemão naturalizado suíço compara a decadência física do homo sapiens,
sapiens ao desfibramento outonal da natureza.
Ora, essa espécie de cogitur ergo sum descartiano
do envelhecer humano, a despeito do agir perfunctório da existência, não nos
reacende a sede de viver, ao contrário, nos abate devido a transmissão linear
de todos os nossos achaque. Na realidade, não somos musgo, arbusto, árvore ou
instrumento da natureza que se abate no seu definhamento. A comparação pode
configurar certa estilística primorosa
do autor — mas dela pensamos que só nos destila nostalgia à vida, todo o vezo
negativo da velhice. Ou seja: nos oprime.
A essa altura dos eventos, o de que precisamos é de
ânimo, solfejos de esperança, ânsias de criatividade e imaginação sobre a vida
e o amor — não de lamúrias existenciais, louvação ao passadismo do qual somos,
agora, meros peregrinos.
Bsb, 18.09.20
OS DEMÔNIOS DE GARCÍA MARQUEZ
Murilo
Moreira Veras
Examinamos
hoje o livro de Gabriel Garcia Marquez Dos Amores e Outros Demônios.
Mais um espécime das diabruras literárias do autor de Cem Anos de Solidão. O
autor foi prêmio Nobel de 1982 e é badalado pela crítica literária esquerdista
como um dos criadores do chamado realismo
fantástico, na América Latina, ao lado de Mario Vargas Llosa e outros.
1. Prólogo
Depois do sonolento Cem
Anos de Solidão, que ninguém consegue ler, o autor retira de sua cartola
mágica essa história cabulosa Dos Amores e Outros Demônios, proveniente de fatos ocorridos
nos fins do século XVIII, em pleno vice-reinado da Colômbia — terra natal do
autor. Narra-se acontecimento inaudito de uma marquesinha menina, cujo
cabelereira mede 22m e 15 cm em virtude de promessa, enamora-se de um vigário
ligado à Inquisição, ela de nome Sérvia Maria de Todos los Angeles, ele Cayetano
Delaura. A moçoila é filha de Dom Ygnacio de Alfaro y Duefias , Marquês
de Casalduera e sua primeira mulher Dona Otalla de Mendoza. Um dia a
menina é mordida por um cachorro raivoso e a partir desse fato, aparentemente
desimportante, se desencadeia uma série
de outros horripilantes, para toda aquela comunidade. O autor cria uma situação
de suspense, mais ou menos tenebrosa, envolvendo inclusive a Inquisição, seu
representante máximo local, o bispo da diocese Dom Toríbio de Carceres y
Virtudes. A menina foi criada e cresceu no convívio de escravos e orixás,
por negligência materna, até falando a língua dos negros cativos, tinha modo de
ser tão misterioso que “... parecia uma criatura invisível.” Os
personagens criados pelo autor realista fantástico têm nomes esquisitos e agem
fantasmagoricamente. Dominga de Adviento
é uma índia feiticeira com fama de ser “remendadeira de cabaços e aborteira” —
dizia ter a receita de Sto. Huberto. Abrenúncio de Sã Pereira Cão —
médico mais notável da cidade, é judeu e agnóstico, por isso odiado pela
Inquisição, mais já ressuscitou morto. Judas Iscariote — escravo
comprado por Bernarda Cabrera, com
quem desafoga sua sexualidade, apesar de ser casada em segundas núpcias com o Marquês
de Casalduera. Encarregado pela Inquisição de exorcizar o demônio que dizem
ter possuído a menina, o vigário Cayetano Delaura acaba loucamente
apaixonado por ela. Descoberto o suposto vilipêndio, praticado pelo padre e
todas as ocorrências objeto de cenário pavoroso criado pela Inquisição, a
marquesinha Sérvia Maria acaba mesmo nas garras da Santa Inquisição, isto é,
queimada viva e o padre que prevaricou, enviado para lugar desconhecido para
cumprir pena.
2. À
Guisa de Crítica.
Com essa história — ou
estória, segundo nosso Guimarães Rosa, este, criador do realismo
fantástico na literatura brasileira — García Marquez na realidade quer imputar,
ao lado de outros detratores literários, os perigos que o mito da religião
impinge ao povo, ou seja, reverbera o dito de Marx de que a religião é,
sim, o ópio do povo. Aproveita então
tudo que há de pavoroso e sinistro no
período de vigência da Inquisição da Igreja Católica. Mistura mitos e crenças
de feitiçarias, problemas psicopatológicos de pessoas, ignorância, fantasias,
pobreza material e espiritual e faz de tudo isso um verdadeiro caldeirão de
perversidades, de certo modo incriminando, ao final, a própria religiosidade, a
transcendência que pode superar o exercício abusivo da imanência, com foco apenas na matéria bruta. Devido essa
atmosfera opressiva criada pelo autor, seu romance não nos oferece uma leitura
agradável, regeneradora, senão o contrário, sugere ódio, prevaricação, cenas
brutais como as de demonização da menina mordida pelo demônio. Veja-se, por
exemplo, como Shakespeare, na peça Romeu e Julieta trata o
romance de amor entre os protagonistas, que, apesar de trágico, o final
transcende a própria realidade. Ou o Amor de Perdição de Camilo
Castelo Branco e, ainda a obra-prima de Honoré Balzac, Eugênia
Grandet.
3. Conclusão
Depois do belo e
edificante A Catedral do Mar, lê-se essa estória nauseabunda que nos narra o genioso García Marquez não deixa de ser um desperdício, quando
podemos nos deliciar com melhor e mais edificante literatura, até mesmo que nos
alivie e inspire o bem, o amor e a verdade, fontes que nos animam o corpo e a
alma por esse período de vandalismo pandêmico gerado por um simples vírus de
origem gripal.
Bsb, 13.08.20
O LIVRO DOS ABRAÇOS
A JANGADA DE PEDRA SURREALISTA
Teodósio foi processado pelo trucidamento de 7 mil pessoas sem justificativa — a cominação passou a constar das Constituições;
O REALISMO DE FLAUBERT
O FIO DE ARIÁDNE MODIANO

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