OS LÍRIOS DO CAMPO E A FÉ
Murilo Moreira Veras
O ano é de 2.074. O
mundo é governado pela Inteligência Artificial – IA. A Nova Ordem Mundial (NOM)
substitui a antiga, a Organização das Nações Unidas (ONU). Todas as nações se
subordinam a NOM. As pessoas vivem sob
total controle da NOM, sua filosofia de vida aquela adotada pelo seu
regime autoritário. São todas, ou quase, agnósticas, desconhecem o que seja
religião e fé. Só acreditam no que lhes impõe a ciência proclamada pela NOM.
Longe da capital, na
sua periferia, um homem orienta um grupo de pessoas e funda uma ordem de cunho
religioso. Seu objetivo é restaurar a fé agora esquecida pelo novo sistema
político. Chama-se Elias, o Profeta.
Diz Elias aos seus
seguidores: “Eu sou o caminho, ensino a verdade e oriento meus companheiros
para uma vida melhor.”
E muitos acreditam
nele que se veem abandonados pelo regime ditatorial.
Dr. Venceslau
Penaforte é um alto magistrado do Governo. Casado só tem um filho, por sinal
uma menina que nasceu paraplégica. O pai a submeteu a toda espécie de
tratamento, gastou fortuna, inclusive fora do País, com os mais importantes
lentes da medicina. Tudo em vão. Sua esposa o avisa
Ouvi dizer que nos
arredores tem um homem que dizem ser santo que vem fazendo milagres...
Apesar de descrente, o
Dr.Penaforte resolve consultar esse tal dito homem de Deus. Quem o leva é outro
tipo de profeta ambulante de nome João Conselheiro.
O doutor precisa não
parecer tão rico para o Profeta atender o senhor, diz ele.
O Magistrado aceita o
conselho e se apresenta ao homem de Deus de forma simples.
O Dr. Penaforte com
sua filha consegue falar com o Profeta.
O homem de Deus o
recebe com um sorriso e fala com simplicidade.
O sr. sabe quem foi
Salomão, aquele sábio da antiguidade.?
Nunca ouvi falar, diz
o Magistrado
Pois Salomão com toda
sua glória nunca se vestiu com os lírios do campo.
Mas os lírios do campo
não foram criados pela natureza, diz o Magistrado.
E quem criou essa
natureza, Dr. Magistrado?
...
Elias, o Rabi
responde, com simplicidade:
Foi Deus, o Criador de
todas as coisas...
A filha do Magistrado
não é curada, mas pai e filha aderem a fé cristã e muitos o veem agora como
discípulos do Profeta nos arredores da cidade.
Bsb, 7.10.24
INTENSIDADE
Murilo Moreira Veras *
Alto, forte, feições rígidas, o olhar de
lucidez instantânea, ele era assim. Por isso ou pelo emblema que trazia no
peito de Delegado, o certo é que todos o
respeitavam. Respeitoso, também o era. Quem iria dizer que tinha um
outro lado da personalidade?
Naquele
dia estava ansioso. Alguém havia descoberto algo a seu respeito. Ora, isso ele,
Ariosto Magno, não iria permitir. Soube dos rumores na própria delegacia.
Deixou a ordenança respondendo por ele e partiu na sua velha e resfolegante caminhonete.
Sabia mais ou menos de onde partira o zunzunzum, um fazendeiro com uma carrada
de filhos e filhas. O município ficava a 50 quilômetros.
Mas
a suspeita já tinha chegado a Leila Dantas, reconhecida jornalista
investigativa, que tinha pesquisado a vida do delegado havia algum tempo.
Alguma coisa errada com o austero delegado de Morrinhos.
Naquele
mesmo dia, ela também se dirigia no seu fusca de 60 em direção do lugarejo de
Santa Cruz. Seu sexto sentido a avisara que algo muito grave ia acontecer e se
referia nada menos ao grandalhão do Delegado. Ele iria prestar contas a alguém
— justo o pequeno fazendeiro e seus filhos, que residiam em Santa Cruz.
A
repórter Leila, por instinto, chegara antes do delegado troglodita. Era uma
pequena fazenda, onde seu Chico Justo e família moravam, cuidando da lavoura e
pequena criação de gado. A porta estava fechada e a repórter, acostumada, pulou
um pequena cerca lateral e conseguiu entrar por detrás da casa, a porta sem
segurança. Não havia vivalma. Então percebeu que todos tinham saído para outro
lugar, talvez uma emergência, o que às vezes ocorrem nesses interiores.
Ela
estava examinando tudo, vendo se havia alguém, quando a caminhonete
resfolegante do Delegado aportou em frente. A repórter teve de raciocinar
rápido. Se fosse pega, não teria nenhuma chance. Correu depressa para um dos
quartos, o coração aos pulos, e, ofegante,
não teve outra saída senão enfiar-se debaixo da cama de casal — e ali
ficou, a respiração presa, sem se mexer, apenas rezando para não ser
descoberta.
O
brutamontes do Delegado socou logo a porta de entrada, arrombando-a, a pistola
em punho, iria acabar de vez com a raça de Chico Justo, ensinar a não se meter
na sua vida. Correu todos os aposentos, fungando, as grossas e trovejantes
botas que usava fazendo o chão rugir, praguejava:
—
Ah, cadê esses miseráveis...
De
repente, retorna ao quarto. Leila estremece de baixo da cama cuja coberta
também a protege — sua frio, imóvel, totalmente apavorada.
Com
ódio, expelindo cuspe, os olhos esbugalhados de raiva incontida, ele mete bala
nas paredes do quarto. Os minutos passam, como eternos para a moça escondida. O
que vê são as botas do Delegado, batendo, fulas, como duas ferramentas surrando
o chão.
Alguns
minutos de terror e eis que o furibundo Delegado resolve ir embora, chutando
tudo o que tem na frente.
No
seu esconderijo, ainda trêmula, Leila espera apenas ouvir o carro do Delegado
partir roncando.
Estava
salva...
Alguns
meses depois, graças a ação decisiva da repórter, inclusive arriscando muitas
vezes sua própria vida — eis que tudo é descoberto. Ariosto Magno, Delegado em
Morrinhos é processado e preso. Ele, na realidade era um monstro que
sequestrava sobretudo crianças, aprisionava-as em lugar oculto, para satisfazer
seus instintos bestiais. Tudo descoberto pela repórter investigativa Leila
Dantas.
· Conto inspirado no Intensity,
livro de suspense do autor best-seller americano Dean Koontz
·
Bsb, 29.11.23
O ANJO QUE FUGIU DO CÉU
Era um anjo. Ele fugiu
do céu. Fugitivo dentre os domínios do Universo, ele preferiu fugir para a
Terra. Teria se dado bem nesse mundo apesar de tão estranho para ele, cujos
habitantes desconheciam a verdadeira Moral, a Ética e a Estética dos Anjos. Nos
primeiros dias foi difícil para nosso Anjo se adaptar ao sistema, para ele
confuso, reinante no Mundo dos Humanos...
Ora,
pensou, esses humanos são seres muito loucos, inconfiáveis, porque eles agem
segundo seus próprios sentidos, eles até pretendem eliminar Deus de suas vidas.
O Anjo acha isso um absurdo.
Fugitivo
do Céu, ele vai acumulando afazeres negativos para conseguir conviver com os
humanos, os quais acreditam viver no melhor dos mundos. Os humanos — pensa
nosso Anjo fugitivo — acham poder prescindir de Deus em tudo que fazem, o que
ele, Anjo, acha impossível, pois Deus foi quem criou tudo o que existe, segundo
consta de Sua Palavra nas Escrituras.
Por
outro lado — pensa ainda o Anjo — por que eles se acham capazes de saberem tudo
e quererem ser os Donos do Universo?
Vejam
o que os humanos fazem em termos de avanços tecnológicos, o que eles chamam de
maiores descobertas científicas — buracos negros, universos paralelos, buracos
de minhoca. Ora, tudo que os humanos fazem ou se propõe fazer é ousar desvendar os segredos do Universo,
saberem sobre tudo o que existe, como nasceu o Universo, pois na verdade eles,
os humanos, querem ser os Donos do Universo.
Nosso
Anjo na terra tem pensado muito sobre isso. É claro — adverte o Anjo fugitivo
do Céu — que os humanos realizaram feitos extraordinários na terra, com suas
fantásticas descobertas. Exemplo importante é o Computador — assim como
os avanços estupendos da robótica e toda essa tecnologia estupefaciente mundo
afora, como sabemos efetivada depois da invenção da roda.
Sem
querer, o Ano fugitivo parece vir numa função especial. Talvez até enviado pelo
próprio Deus. Tudo é possível, pois ignoramos os PLANOS DO CRIADOR. O próprio fugitivo ignora os
planos do Criador, imagina os humanos.
Enquanto
isso, nosso Anjo sabe tudo o que corre no mundo, nesse mundo dos humanos. Por
exemplo, ele sabe que Einstein, aquele cientista autor da Relatividade Geral e
Parcial, tendo afirmado que Deus não joga dados, mas que seu sonho era
descobrir uma teoria para explicar tudo — resolver todas nossas necessidades
materiais, a tão badalada Teoria do
Tudo. Nunca até hoje ninguém conseguiu formular tal teoria — assinalou
Stephen Hawking e outros físicos teóricos.
Ora,
nosso Anjo sabe que Deus é perfeito, não age com trapaças como os humanos. Ele,
o Anjo, segue que tudo isto consta do Velho e Novo Testamento. Deus sempre
assessorou os humanos, ofereceu-lhes as coordenadas e administrou a vida na
Terra, dando-lhe sabedoria como um dom para realizar sua peregrinação exitosa e
fundar a civilização terrestre, sob a égide do Bem, da Justiça e do Amor,
evitando que degenerasse. Isto antes de Adão e Eva perderem o Paraíso por
desobediência. Mas a influência do Criador pesou nos passos e na inteligência
humana, tornou-se insuportável. Então Deus resolveu se afastar dos humanos e
deixá-los livres.
O
homem acabou perdendo o tino e a civilização começa a degringolar. Deus, a
Suprema Justiça e a fonte da espiritualidade, precisou agir e reestabelecer o
equilíbrio perdido do mundo. Assim, enviou seu próprio filho Unigênito para
realizar a Redenção da Humanidade. O Mestre Jesus veio à terra por
intermédio do seio de Maria para redimir os humanos. Sofreu e morreu na Cruz,
criando, segundo a Justiça Divina, a fonte reguladora do mundo, o Cristianismo
— Maria nossa Protetora-Mor, a quem os humanos recorrem como Mediadora.
Nosso
Anjo vai nos lembrando de tudo isso. Será que nós, humanos temos consciência da
presença do Anjo Fugitivo em nossas vidas?
Quod
ad demonstrandum.
Bsb,
10.08.23
PRIMEIRO BEIJO
Conhecerem-se
os dois no Ateneu Teixeira Mendes, em São Luís, a quarta centenária capital
maranhense. Os idos eram antigos alunos.
Ela
tinha 15 anos e ele 16, ela na terceira série do ginásio, ele na quarta e
última. Eram vistos sempre juntos, até moravam ali perto do colégio —a Rua dos
Afogados.
Fim
de ano, vinham as provas finais de ano, tempo de estudo, matemática complicada,
o professor era o Diretor do Colégio, Solano Lopes, conhecido por exigente.
Devido
a matéria ser complicada e ela dizia não ter grande afinidade com a dita cuja,
a matemática, Eunice pediu auxílio ao amigo, que já cursara aquele programa,
para que a ajudasse, ela havia tirado nota baixa na matéria, receava não passar
de ano, o pai era rigoroso quanto ao estudo dos filhos.
Às
vésperas da prova, Ivo compareceu à casa de Eunice, para dar-lhe auxílio nos
problemas constantes do programa.
Dona
Alzira logo arranjou um lugar onde os dois ficassem em sossego, longe da récua
de irmãos, alguns pequenos, no quintal, debaixo de uma frondosa mangueira, um pouco distante da casa.
—
Aqui é melhor, vocês ficam mais sossegados — disse.
Arrumou
a mesa, com as cadeiras e preparou o suco para livrá-los da tarde quente.
Passaram
às equações, fizeram alguns exercícios, Eunice já conseguindo compreender as
regras, o xis das questões.
A
tarde caiu mansamente entre os tais xis de dificuldade. Lá para as tantas, pararam
para tomar fôlego. Os dois ficaram bem juntos, a brisa a correr pelas folhas da
generosa mangueira. Os olhos de Eunice piscaram, espécie de languidez tomou-lhe
conta, os lábios sem-abertos, frêmito a tomar-lhe o corpo, Eunice estendeu a
cabeça na direção do outro, abrochou-lhe de repente um beijo, as duas bocas se
uniram, grudados os lábios, as línguas a se roscarem húmidas em rápido deleite.
O
rapaz restou lívido, aquela sensação de doçura na boca.
Depois
daquela tarde — que se vai distante — nunca mais Ivo esqueceu a sensação de seu
primeiro beijo, os olhos trânsfugas de Eunice, o arfar lento e lúbrico dos seus
seios estremecendo.
Bsb. 14.02.23
INCOMPLETUDE (CONTO)
Murilo Moreira Veras
Dois amigos — um escritor e o
outro filósofo — se encontram numa choparia em Brasília e trocam ideias.
— Sabe, Afonso, estou lendo um livro sobre o
grande matemático e filósofo Kurt Gödel.
— Ah, sei, o criador do conhecido Teorema
da Incompletude — o outro responde, enquanto pede ao garçon que sirva chope
para os dois.
— Você sabe que não sou filósofo, como você,
tão pouco matemático...
— Sei, sei, você é apenas escritor — diz o
outro experimentando o chope que o garçon lhes serve — como disse Érico
Veríssimo certa feita.
— Estive dando tratos a bola sobre esse
imbróglio matemático de Gödel e de repente me dou conta de que posso explicar essa
sua complicada teoria da incompletude...
?...
— Veja bem — continua o escritor — o tudo não
passa do nada reconstruído e o nada seria a anulação do tudo...
— E o que isso tem a ver com a teoria de
Gödel?
O outro fica tamborilando na mesa, o copo de chope
à sua frente ainda incólume.
— ... ora, se o tudo não passa do nada
reconstruído e o nada por sua vez é a anulação do tudo, então...
— Então?
O outro sorri:
— É que tudo e nada não passam de ilusões, de
medidas incertas, um por construção e outro por negação.
— ?...
O outro de novo:
— Onde está a incerteza entre o tudo e o nada?
E Afonso, o filósofo, sorvendo uma vez mais um
gole.
— Sabe, não entendo nada do que está dizendo,
parece não dizer coisa com coisa...
— ... e tem mais — assegura o que é escritor —
você sabe que isto da incerteza tem a ver a suposta Teoria do Tudo
daquele cientista de uma cadeira de rodas, Stephen Hawking?
— ... a Teoria do Tudo é uma suposição
científica até hoje nunca provada.
— Esta ai outro problema, quem sabe, que prova
a incerteza da ciência.
E Afonso, o filósofo, com seu copo já vazio:
— Agora você me pegou, meu caro. Antes que me
diga que também a filosofia é incerta, vou pedir auxílio ao autor de Tractatus Philosophcus,
Wittgenstein...
— Como assim?
— Todo equacionamento científico ou filosófico
gera uma faculdade linguística, daí o eufemismo contido no tudo e no nada. Em
outras palavras, diz Wittgenstein: “... sobre aquilo que não se pode falar,
devemos calar.”
Bsb, 18.03.22
O HOMEM, O VELEIRO E O MAR (*)
Murilo Moreira Veras
O sonho de Hermógenes é velejar. Nascido em
cidade praiana, o mar sempre fez parte de sua vida. Lê tudo que diga respeito
ao oceano.
O ser
humano precisa sonhar, que quer dizer ter esperança. O sonho alimenta a vida,
nada a negar. E meu amigo Hermógenes sabe mais do que ninguém isso, da precisão
do mar.
Quando
se aposentou como funcionário público, ainda forte e de sua saúda ainda plena,
não mais do que cinquenta anos de vida, partiu para realizar seu sonho.
Casado,
um filho adolescente, faz todos os preparativos necessários ao sonhado
empreendimento. Convence a mulher a tomar conta de tudo, inclusive as finanças
da casa, reúne algumas economias, contanto que não prejudiquem as necessidades
da família e parte para realizar seu sonho. Compra um barco de segunda mão, o
mais em conta, dito no idioma náutico catboat — um mastro próximo à popa
e uma vela. Um pequeno veleiro, simples, fácil de manejar.
A
mulher de bom grado aceita o sonho do marido, como fosse o dela própria. Antes,
por precaução, é sonhador, mas não louco, ele faz um curso de navegação e,
depois de algum treino e estudo, considerado qualificado, obtém junto ao órgão
da Marinha Mercante, a devida carta de navegação.
E
parte para velejar, primeiro pequenos trechos, no curso dos quais pratica a
técnica e também a arte, dura mais
aventureira, que é a de navegar.
Batiza
o pequeno veleiro com o nome da mulher — Guaracy — e leva consigo, também apaixonado pelo mar,
seu filho, para uma viagem experimental à ilha de Fernando Noronha.
Eu
mesmo, seu amigo de muitos anos, compareço, com os familiares, ao dia em que Hermógenes e o filho Lucas
zarpam, orgulhosos, do cais do Capanga Iate Clube, em Recife.
Ele
parece um Heminguay redivivo, de barba ruiva, o filho de pé junto da vela
grande, acenam os dois para o pequeno grupo aglomerado no cais, a espera da
largada, também dando adeus.
E lá
se vai o Guaracy, Hermógenes, no
leme, de quepe de capitão, o filho segurando o painter do pequeno
veleiro, enquanto a vela de estai impulsiona sua quilha, desafiando os
primeiros afluxos de marola, em direção do oceano.
É o Homem,
o Veleiro e o Mar — eles buscam o antigo sonho humano de aventura, o
navegar. Navegar é preciso, viver talvez nem tão preciso
·
Conto escrito com a mão esquerda dedicado
ao mano Raimundo Nonato, nos seus noventa e um ano de vida – Em 5.07.19
A L M A
Murilo Moreira Veras
Basta! O seu estado de espírito chegou a tal ordem que
sentiu que ia explodir. Sem querer, havia decretado guerra contra si e contra o
mundo. Logo ele que sempre fora uma pessoa pacata.
Nervos à flor da pele,
qualquer coisa o tirava do sério, tornava-o
irritadiço, desviando-o do que fazia e pensava.
Diretor do
Departamento Comercial de uma empresa jornalística, suas funções o obrigavam a
lidar com pessoas, discutir assuntos áridos, como preços, transações
financeiras, contratos financeiros, contas, borderôs e outros que tais da vida
econômica. Tudo isso exigia muita paciência. E ele simplesmente havia perdido
essa tal de paciência.
Logo o eco desse seu
comportamento espraiou-se pelos
corredores do trabalho, infiltrou-se entre os subordinados, colegas e companheiros
de diretoria, tema e objeto dos mais estranhos comentários.
— O Fontana está uma
pilha! — aventou o Diretor de Material a outro colega, depois de tratar de um
assunto de sua alçada com ele.
— È, eu também venho notando isso. O cara está
intragável. Será que está doente?
Dentro de pouco tempo,
ele se constituía um problema dentro da organização, com seus estrilos, seus
gestos impulsivos, a coisa num crescendo a ponto de chegar aos ouvidos do
chefão, o Diretor Presidente, por sinal, seu cunhado.
Em casa, o cenário não
ficava por menos. Respondia mal à mulher, brigava com os filhos por qualquer
coisa, implicava com as empregadas, o porteiro do edifício, os condôminos, o
jornaleiro.
Não havia dúvida:
Emílio Fortuna estava de mal com a vida.
Pensou que realmente
fora atacado de uma doença. E, a conselho da mulher e dos parentes, se submeteu
a toda sorte de exames. Foram tantos — exames e médicos experimentados e
consultados — que perdeu a conta e, diante da tempestade de sintomas e
diagnósticos, deu-se por vencido.
Nesse momento —
certamente um dos seus mais motivados instantes de apoplexia — rasgou todas as
receitas que os médicos haviam-lhe prescrito, amassou as provas dos exames,
radiografias e resultados, fez um bolo só, junto com os vidros e mais vidros de
medicamentos, sacudiu tudo no lixo.
E saiu, destemperado,
porta afora, sem dizer para onde ia, tampouco o que iria fazer.
Noutro lado da cidade,
entrou num obscuro bar que viu, pediu uma cerveja e passou a bebericar, como se
nada houvesse a fazer.
Caia a noite e as
sombras do crepúsculo cobriam o ambiente, àquela hora com escassos fregueses.
Quando estava na
segunda garrafa, uma pessoa esgueirou-se até onde ele se instalara — uma mesa
distante da entrada, praticamente escondida — e estancou à sua frente. E com
uma voz mansa, quase um sussurro, falou:
— Permite uma
companhia?
Ele deu de ombro, como
se nada lhe importasse.
Num gesto automático,
sem qualquer conotação, convidou:
— Aceita um copo? — e
pediu ao garçom um copo extra.
O homem sentou-se
defronte, apoiou os cotovelos na mesa como se preparando para conversar. Foi
então que, num relance, percebeu que as feições do recém-chegado não lhe eram
estranhas, apesar de a roupa ser
diferente, era como à sua frente estivesse postado sua própria pessoa, os
mesmos olhos, o nariz meio adunco, a boca rasgada, a meia calvície dos cabelos, a barba por fazer. Só que com uma
diferença: parecia muito mais velho e bastante alquebrado.
Será que estou ficando
maluco? Ele agora está bebendo do mesmo jeito meu, tem no dedo o mesmo anel que
eu uso...
Antes que fizesse
qualquer gesto, sabe lá o que pudesse ser, o outro falou com a voz dele, mas o
tom de uma mansidão infinita:
— Por favor, tenha
calma. Há uma explicação para isso.
Então, a partir dos minutos seguintes, tudo
ficou paralisado, para ele, o tempo, as
sombras do crepúsculo avançando, o cenário preso na expectativa como num
retrato. Quedou-se, entre eles, um silêncio que se construía, não de vazio, mas
de situações fragmentadas, a realidade erguendo-se para ambos, refazendo-se
como uma linha enrolando-se numa longa, estranha bobina.
As palavras já não
mais eram faladas, mas pensadas e elas dançavam diante de seus olhos embaçados.
Ele as ouvia como se ditadas por um telefone, tinham o som e a ondulação de um
sino vibrando.
— Eu sou você mesmo,
explicou o outro, não sua imagem
externa, o físico, mas seu íntimo, o que está prisioneiro dentro de seu
corpo, esse que você vê, toca e com ele vive. Sim, isso mesmo que você está pensando, em outras
palavras, a alma, eu sou sua alma, seu espírito, ou outro nome que queira
designar.
Depois de uma pausa —
em que o silêncio parecia estilhaçar o cenário com um jato de serenidade e
transparência — o outro continuou:
— Veja — e foi então
que ele pôde ver as marcas que sulcavam seu próprio rosto no do outro, os olhos
com imensas hematomas, as mãos
descarnadas e envelhecidas — é assim que você está me deixando a cada dia que
passa. Sabe o que isso significa?
Ele agora se via
naquela figura que na verdade era a dele mesmo, devastada pelos anos,
maltratada pelas intempéries da vida, espécie de pobre diabo, ali a relatar,
para si próprio, um rosário de lamúrias... Era uma visão aterradora.
O garçom que naquele
instante trafegava por ali para atender um cliente observou que um homem apenas
ocupava aquela mesa e que o copo extra, que pedira há pouco, permanecia
solitário, embora pela metade, como se alguém houvesse se servido.
Quando Emílio Fontana
retornou a casa naquele dia, já era noite alta. Entrou sem fazer ruído,
recolheu-se aos aposentos e logo caiu em sono profundo.
No dia seguinte, estava no serviço, como se
nada houvesse acontecido, sorrindo, as feições suaves de um homem bom e justo,
consigo mesmo e com o mundo.
Havia feito outra vez
as pazes com a vida.
A TREGUA
DE DEUS
O Paraíso está em alvoroço. Toda a realeza celeste encontra-se em estado de
pânico. Fazia tempo que o Paraíso não se abalara por tal situação. Seria
mudança da parte da Providência Divina? As três hierarquias dos Anjos temiam o
pior — um terremoto em suas fileiras.
Os
mensageiros cruzavam incontinente os muros da Celestial Morada, à busca de
notícias. Recorrem à trilogia dos Guardiões, os Anjos Miguel, Gabriel e Rafael.
Estes, também, estão aturdidos. O que está acontecendo nas hostes celestiais, qual
o motivo da súbita desordem?
Então,
o contemplativo Gabriel decide recorrer à Santa Senhora, se por acaso tinha
alguma notícia.
—
Santíssima Mãe, podes nos dizer que se passa para explicar o que acontece
intramuros da Cidade de Deus?
—
Também estou estupefata, Gabriel. Algo de muito grave vai acontecer.
Sempre
ciosa de seus deveres, mesmo nos bastidores do Paraíso, Nossa Senhora pede
então a presença imediata do Filho, na qualidade de Mãe amorosa.
—
Filho, o que se passa, por que tanto alarido entre as hostes celestes?
Jesus,
o Unigênito, tem as feições opressas, o olhar a vislumbrar profunda tristeza,
semelhante a que teve quando, no passado, esteve crucificado na cruz,
abandonado do mundo.
—
Mãe — balbucia Ele — é terrível o que vou Lhe confessar. Peço que contenha sua amargura, mas
é a pura verdade...
E
desabafa o Filho do Homem, aquele que um dia resgatou na Cruz os pecados da
humanidade.
—
... meu Pai, o Criador dos Mundos, está decidido a exterminar uma vez por toda
com a Terra, o planeta habitado pelos humanos.
—
!?
—
... suprimir totalmente a raça da humanidade do Universo.
—
Pela Santa Cruz da Redenção! — exclama a Santa Senhora. Que estás a me dizer,
Filho?
—
É a verdade, Mãe, Deus quer acabar para sempre com a humanidade.
—
Por que, me diga, Filho?
—
O Criador está decepcionadíssimo com os
seres humanos, basta de tanta ignomínia, tanto desamor, tanta desobediência, os
humanos perderam de vez a tramontana, não há mais razão para existirem. Serão
todos sem piedade exterminados.
Maria,
também Mãe dos Homens, cai em pranto, como a receber uma punhalada no Seu
sempre benemérito coração.
Apoiada
pela mão extremada do Filho, Ela vai à presença do Senhor do Universo.
Sentado
em seu trono celeste, ladeado pelos
Serafins, Querubins e Tronos — a primeira hierarquia dos Anjos — Ele
recebe a Santa Senhora. Tem as faces circunspectas, expressão dura, o olhar
terrível de indignação.
Ao
vê-La, ergue-se do trono e vem atendê-La, enquanto a Mãe se ajoelha, trêmula,
banhada em lágrimas.
—
Magnânimo Senhor, tende piedade dos humanos, eles não sabem o que fazem!
Vendo-A
assim, caída a Seus pés, debulhada em lágrimas, mais do que nunca reconhece a
suprema influência que Maria exerce sobre a humanidade. O coração de Deus se
oprime, a dor do Coração de Maria é a Sua Dor, a compaixão que tem pelos seres
humanos — tudo em Maria leva-O a condoer-se daqueles seres que há pouco
considerava uma “raça de víboras”.
E
Deus, fonte inesgotável do Amor, berço e fundamento da Justiça, apieda-se da
humanidade e decide não exterminar com o planeta Terra, não castigar a raça dos
seres humanos por Ele criada.
Abraça
com ternura aquela que um dia deu à luz a Jesus, Seu Filho Unigênito e profere
sua decisão:
—
Mais uma vez Tu salvas os humanos. Que Tua graça se estenda a esses filhos
rebeldes.
E
finaliza com o anátema:
—
Pelo menos por enquanto.
E
todo o Paraíso, com seus habitantes iluminados, suspira aliviado. É uma espécie
de pequena trégua que o Criador, na sua suprema magnanimidade, concede à raça
dos homens.
Muitos
e muitos quilômetros abaixo, os humanos continuam a enodoar a magnífica espécie
criada por Deus. Desconhecem que suas vidas estão sob o fio da indulgência
superior.
Bsb,
25.08.18
DUPLA PERSONALIDADE

Era o
maior jogador de futebol da Cidade — o Tuca. Já convidado para integrar a
Seleção do País. Com seus vinte e cinco anos bem vividos dedicados ao futebol,
assim era Artur da Costa Leite — o Tuca. Verdadeiro atleta, 1,80 de altura,
musculatura dionisiacamente distribuído pelo corpo e coragem de vencedor.
Um
ídolo na Cidade, o Tuca e quando havia jogo, todos o aplaudiam e ele não
deixava por menos, sempre marcava um gol no time adversário.
Acontece
que, como jogador o Tuca era o máximo, não tinha defeito. Mas como cidadão,
Artur da Costa Leite, fora de casa e do contexto futebolístico era mulherengo
inveterado, ambicioso e desaforado — uma péssima pessoa.
Às
vezes, a Cidade toda se espantava com suas atitudes como cidadão. Artur da
Costa Leite metia-se em balbúrdia, bebedeiras, confusão, acabava na Delegacia,
mas sempre conseguia se livrar, sem dúvida pela fama de grande jogador no
gramado.
Outro
defeito de Artur da Costa Leite: conquistador. Certa feita em torneio
interestadual, ele defendendo as cores de seu times, envolveu-se com uma moça,
esta de origem mais pobre. O fato teve grande repercussão, pois a engravidou, a
moça teve a criança e a família, mesmo sem grandes posses, recorreu à justiça.
O jogador se defendeu, contratou advogado famoso, de fora, espécie de
chicaneiro regiamente pago. Perseguido os trâmites legais, no processo
prevalecendo certas manobras subreptícias da parte do espertíssimo advogado — o
certo é que Artur da Costa Leite não reconheceu o filho.
E
outras trampolinadas fez nosso Artur, atos desonestos. Tudo isto chegou ao
conhecimento da mídia local e até a nível nacional. Ora, o Tuca já participante
da Seleção do País, um dos campeões da Copa do Mundo, ele mesmo a estrela do
time.
Mas
sabe como são esses repórteres mexeriqueiros, a chamada mídia marrom.
Então,
numa daquelas entrevistas, após o Brasil ter ganhado a Copa daquele ano, no
auge da popularidade, de volta, um desses repórteres, fez-lhe de chofre a
pergunta indiscreta:
—
Tuca, o que você tem a dizer sobre a moça de sua cidade com quem se envolveu e
teve um filho seu?
E
Tuca, com a maior cara de pau, saiu-se com esta:
—
Olha, meu chapa, aqui quem tá falando é o campeão Tuca, esse cara não tem
defeito, agora outra pessoa é o Artur da Costa Leite, esse o cidadão que não
deve satisfação ao público, faz o que quiser e ninguém tem nada com isso, tá
bom?
E
assim, dessa forma e arte, Tuca, o já conceituado campeão, criou para si uma
dupla personalidade — uma era o jogador Tuca,
pessoa impoluta, indefensável, espécie de rei intocável e outra o cidadão Artur da Costa Leite, deletério,
desonesto, capaz de fazer o que bem entendesse, sem que um não tivesse absolutamente
nada com o outro.
Bsb,
24.06.18
O
SILÊNCIO DO MUNDO
Murilo Moreira Veras
Ali não
há voz. Só o silêncio. Um silêncio que emana do chão, das árvores, das pedras,
dos caminhos, das montanhas. O céu se abre em cores fortuitas, as nuvens
parecem deslizar num firmamento nutrido de esperança. O céu também refém do
silêncio.
Poucos
vivem ali, escondidos, cumprem a grave sentença de se nutrirem sem ouvir vozes,
sem falar, sem ouvir. Isolam-se, foragidos do espaço e do tempo. Forasteiros de
um mesmo ideal, as pessoas enfrentam os seus próprios problemas, resolvem-nos
sem o uso da fala, os segredos encapuçados no silêncio sepulcral. Ou
intencional?
Todos
se entendem mediante sinais. Precisa falar, se os olhos desvelam o silêncio, abrem
caminhos, em sinais elipsoidais as mãos narram todos os segredos, revelam a
verdadeira novela da vida?
As
pessoas se encantam com as palavras não faladas, apenas reveladas em ritos,
sinais programáticos.
O
estrangeiro com sua família acaba de aportar à singular comunidade, estranham
esse comportamento, são alertados que não devem falar em hipótese nenhuma. Ao
contrário, que guardem silêncio absoluto
em tudo, na rua, em sua casa. Quem diz
isso é o Guardião da comunidade
Ele
é um dos moradores mais antigos do lugar e explica em sinais que não sabe dizer
a razão do silêncio, mas se essa regra for quebrada, eles sofrerão grande
punição. O estrangeiro exige que lhe explique que punição seria. Depois de
muita insistência do outro, o morador revela:
—
Na verdade, senhor estrangeiro, a comunidade cumpre uma penitência, a de ficar
em silêncio.
O
estrangeiro não quer se convencer, então diz que pretende quebrar essa penitência. Resolve
fazer encontros com os moradores, adverti-los sobre a desvantagem que levam perante
os demais habitantes da Cidade — isto é, a Cidade
dos Falantes, o Império da Tecnologia. No entanto, os moradores não ficam
convencidos, acham que o forasteiro e sua família perdem seu tempo, deviam era
retornar de onde vieram, essa tal Cidade dos Falantes.
Eis
que acontece o previsível. Ou imprevisível como todo o comportamento humano. O
estrangeiro — o sr. O e sua família — encontra grandes atrativos
naquele lugar, distante de sua civilização de origem. O ar que emana daquela
terra primitiva, os recantos encantadores, a cachoeira que desliza ressoando na
linguagem das águas. Os arbustos que robustecem as trilhas de raízes e folhas. O
farfalhar do vento, encetando sua cantata eólica. Os musgos esses se entrelaçam
nos troncos de árvores, enquanto num céu rasgado, vazio de nuvens flutuantes, a
passarada cicia em coro, numa cascata de ruídos e harmônicos solfejos.
Então,
depois de algum tempo durante o qual o sr. O
e sua família aprendem a linguagem do silêncio, eles decidem plantar raízes
ali, naquele lugarejo, onde impera o Silêncio.
É
que eles, citadinos, envenenados pelos mais absurdos ruídos da chamada
civilização supermoderna, a parafernália tecnológica dos artefatos de última
geração — computadores, telefones celulares, aparelhos de TV, rádios, buzina
insana de automóveis, ônibus, trens e outros quejandos, inclusive o formidável
barulho proveniente do vozerio de uma multidão, porfiando com o vômito
turbulento dos chaminés das fábricas — agora concluem que é muito melhor viver
e conviver com o silêncio. Sim, o silêncio do mundo, no mundo do silêncio.
Bsb,
24.04.18
O SHAKESPEARE DE OXFORD
Murilo Moreira Veras
Londres, 1580. Edward de Vere está de
volta à sua terra natal, depois de alguns anos vividos na Itália – Roma,
Florença, Veneza. Fluente em italiano, a viagem só lhe trouxe benefícios.
Conheceu in locum as culturas
daqueles rincões. Preparou-se para isso. Estudou nas universidades de Cambridge
e Oxford. Era versado em grego e Latim, graças a seus tutores, o diplomata Sir
Thomas Smith e o erudito Laurence Nowell. Vive e integra a Corte de Elizabeth, que continua mais forte do que
nunca, a Rainha Virgem. Ele é que se considera mais maduro. Sabe que ainda
recebe os favores da Rainha, a despeito de tudo, principalmente das intrigas da
corte. Intrigas de interesses, invejas e outros quejandos, inerentes à Coroa
Britânica.
Ele pertence à nobreza,
como defensor da Rainha, o 17º Conde de Oxford, desde a morte de seu
progenitor, John de Vere, em 1562, quando tinha apenas 12 anos.
Londres tem
progredido muito e, usufrui – ele reconhece – do mérito de ser o maior centro
cultural da Europa. Tem vida artística e comercial agitada, embora boa parte de
sua população viva em condições mínimas de higiene e progresso material. Alegam
que o Reino vive sua era de ouro, a celebrada Era Elizabetana, o que, para ele,
de Vere é algo exagerado. Afinal ele acaba de vir de cidades maravilhosas, como
Florença e Veneza, onde as manifestações artísticas, de beleza e estética, são
incomparáveis.
Naquela manhã,
Edward de Vere, Conde de Oxford, com seus já maduros 30 anos, idade já avançada
para a época, se prepara para enfrentar na corte o processo de separação de seu
casamento com Anne. Ele sabe que parece
ser espécie de persona non grata
na referida corte. Sabe também que tem se envolvido em alguns escândalos,
inclusive aquela que ficou conhecida como “briga
da quadra de tênis” com Phillip Sidney, aquele que foi o primeiro
pretendente da mão de Anne, filha de Lord Burghley. Sem falar nos problemas
causados pela briga de suas duas famílias, que Lorde Burghley comenta como
sendo “brabbles e frays”.
Como de costume,
De Vere adentra na Corte com suas vestes
mais sofisticadas do que nunca, o corpete talhado com riscas de ouro em
camadas, mangas fofas, seu corpo já esbelto enfiado em espatilho, calças altas
e soltas com braguilhas, sobre cujas vestes ele se cobre com um gibão, o
inseparável rufo e o chapéu em forma de cone com plumas decorativas. Calça
sapatos de couro, que valorizam seu elegante caminhar. Na lateral, o famoso
corte conhecido como Landskneeth, deixando à mostra o tecido fino e luxuoso da roupa de baixo, o que os
francêses chamavam “crevé”. Quem o
recebe nas dependências da Abadia de Westminster é seu antigo tutor Sir Thomas
Smith, seu amigo e defensor no litígio.
Apesar do
snobismo, De Vere, o Conde de Oxford, reconhece que passa por momentos
difíceis. A Rainha já vem lhe torcendo a cara há algum tempo, devido o tempo
que passou fora. Enquanto isso, nos
corredores correm não menos escabrosos rumores, inclusive o de ser amante da Rainha,
o que absolutamente ninguém acredita, ou, pelo menos faz vista grossa. Ora, ele
sabe que tem se metido em vários escândalos. Melhor, tem sido vítima. Refere a
seu “affair” com Anne Vavasour, uma das damas de honra da Rainha. O receio é
que descubram que Anne Vavasour está esperando um filho e dele!
– Então? –
pergunta assim que abraça seu tutor e amigo Sir Thomas.
–
Tranquilize-se, as coisas vão indo a contendo, logo tudo será resolvido –
assegura o outro, tomando-o pelo braço.
Sir Thomas Smith
é pessoa que desfruta de muito bom conceito na Corte, sobretudo entre os
Juízes.
Ora, Sir Thomas
é um dos que sabem que os problemas de seu pupilo Edward de Vere vão muito mais
além do que essas escaramuças. Na realidade, são graves e piores, constituem segredos
que não podem ser revelados, sob pena de o Conde sofrer terríveis penalidades,
da parte inclusive de seus inimigos e quem sabe da própria Rainha, sua
protetora. Por exemplo, Sir Thomas sabe que o Conde escreve poemas, sonetos e
peças teatrais e as publica, ou são encenadas, sob pseudônimo de William Shakespeare. Nestas obras, de
Vere exercita seu extraordinário talento pela arte cênica. O problema é que
nelas ele critica, embora com verve e sutileza, a vida na corte, as mazelas dos
reis e as intrigas dos nobres palacianos. E pior: peças que já foram encenadas
no famoso teatro-de-arena “The Globe”.
Como a que obteve grande sucesso – Hamlet.
Depois, Romeu e Julieta. Sem falar nos sonetos dirigidos a uma possível
amante, sobretudo o intitulado Dark Lady – a senhora oculta, na realidade é Anne Vavasour.
À entrada veem o
Prior da Abadia, Joseph Prior Smuggler, um homenzinho baixo e gordo, de lábios
finos, sorriso cínico, como sempre disposto a destilar veneno.
– Vamos falar
com o Prior – apressa-se a dizer Sir Thomas. Ele já nos avistou.
Mesmo a contragosto,
de Vere acompanha seu protetor. Sabe que é imprescindível obter o beneplácito
do Prior, homem ferino, que tem passe-livre na Corte, até, quem sabe, pelos
aposentos da própria Rainha, espécie de “eminência parda”.
Ao vê-los se
aproximar, o Prior se abre num sorriso, que ambos sabem, falso quanto sua
própria personalidade.
– Meus nobres
amigos, faz tempo que não o vejo, meu caro Conde e Sir Thomas, que prazer em
rever ambos...
Cumprimentam-se,
como se fossem bons amigos.
Libações feitas,
os dois enveredam pelos corredores e alamedas da magnífica Abadia. A única
finalidade, como sussurra Sir Thomas a seu ex-pupilo, é fazer presença na Corte.
De Vere precisa ser visto, congratular-se com os demais nobres, manter o
sorriso sempre aberto, auspicioso, àquelas pessoas afetadas e preconceituosas,
alguns deles, seu inimigo, ou, quem sabe até desafeto.
E o motivo de
toda essa precaução da parte de Sir Thomas é proteger, a todo custo possível, a
honorabilidade de seu protegido, Edward de Vere, o 17º Conde de Oxford. É que
ele, Sir Thomas, sabe que se a identidade
do teatrólogo, conhecido pelas peças sarcásticas e ofensivas à classe da
nobreza atual, representadas no Teatro Globo, de nome William Shakespeare, são
escritas por Edward de Vere e que o homem a quem se atribui o autor das
referidas peças, certo senhor de nome conhecido por William Shakspere ou
Shaxpere ou Shakspeyr ou Shaspere ou ainda Shaxbere, não passa de uma espécie
de laranja do Conde – certamente o Conde acabaria na Torre de Londres,
torturado e morto.
____________
Passam-se os
anos. Edward de Vere anula seu casamento com Anne Burghley. Contrai novas
núpcias. Em 1581, sua amante Anne Vavasour dá a luz a um bebê e por isso, ambos
são levados para Torre de Londres, para cumprir punição. Finalmente, em 1604,
aos 54 anos, ele vem a falecer na sua propriedade de King’s Palace, enterrado na igreja paroquial de São João, em túmulo
desconhecido. E mais anos são decorridos, cavando-se silêncio profundo sobre
aquele que, na Era Elizabetana foi um cultor das letras e protetor das artes.
Até que, quatro séculos, depois, em 1920, o pesquisador J.Thomas Looney reivindicou para o Conde de Oxford a verdadeira
identidade do célebre teatrólogo William
Shakes–Peare, na verdade pseudônimo que usou para satirizar a Corte inglesa
à época. Quanto ao outro, o chamado “homem de Stratford-upon-Avon”, não passava
de mero negociante, que viveu em Londres e tomava conta de cavalos em frente ao
Teatro Globo, sem nenhum registro na sua cidade natal de ter cursado escola,
semianalfabeto, que se assinava ora como Shaxpere, ora Shakspeyr, ora Shaspere
ou ainda Shaxbere. um cidadão comum, cujas mulher e filhas eram analfabetas,
portanto incapaz de escrever uma linha, quanto mais 36 peças teatrais, inclusive
obras-primas como Hamlet e Romeu e Julieta, sem falar em 154
sonetos construídos com absoluta maestria.
Post
Scriptum: Humberto de Campos,
escritor maranhense renomado da Academia Brasileira de Letras, em seu livro Memórias, narra um fato interessante.
Sendo também Veras (por razões pessoas, preferiu ficar com o nome da mãe,
Campos), resolveu fazer a genealogia dos Veras e descobriu o seguinte:
tratava-se na verdade de linhagem ítalo-teutônica, designando-se DE VERE, cuja corruptela
deu Veras. Cinco irmãos desses de
Vere/Veras eram cristãos novos judeus que viviam em Portugal, onde foram
perseguidos e migraram para o Brasil, aqui se dispersando pelos estados do
Maranhão, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Até hoje vemos Veras
espalhados por esses estados.
Vem-nos à baila,
a propósito, a deixa do personagem Hamlet na peça do mesmo nome de Shakespeare,
Ato I, Cena III, onde se lê: “There are more things in heaven and Earth,
Horatio, Than are dreamt of in your philosophy.”
Bíb, 30.03.17
O
FUTURO DO MUNDO
Murilo Moreira Veras
O movimento no aeroexoporto em Trappist 1.b é imenso com o
aporte de naves espaciais a cada minuto. Os controladores de voos a todos
instantes se posicionando, graças à potência de seus supercomputadores
galácticos.
No seu posto de
comando, onde supervisiona toda essa azáfama, Dr.Ykejdoiop troca ideias com seu
comandado, o Professor Jônius, que o auxilia no imaginoso trabalho de
monitoramento, a cargo dos computadores.
– Está algo
inusitado, não acha Dr.Ykejdoiop – indaga o ajudante escrutinando a ampla tela do
computador central, diante do formigueiro de espaço naves em trânsito.
– Sem dúvida,
sem dúvida – responde o Supervisor-Geral, com sua vestimenta de trabalho, um
uniforme padronizado azul celeste, de material infravermelho, à prova de
qualquer intempérie, como exigia o Código de Ética Profissional Galáctico.
– A propósito –
continua o Dr. Ykejdoiop – há poucos dias tivemos uma comunicação fantástica
vinda do Dr. Martin Soleil, que se encontra em visita estratégica a nosso
planeta, de que o Sol, a principal estrela do vetusto Sistema Solar,
encontra-se já nos seus últimos estertores, depois de bilhões de anos de
atividade...
– É verdade, já
soube desse fato, aliás, esperado pela
Conselho de Gerenciamento Galáctico, o CGG, há tempo. Temos ai então uma
tragédia que se consuma, não Dr.
Ykejdoiop?
O outro esboça
um sorriso amarelo.
– ... Uma
tragédia monumental, meu caro. A espécie “homo
sapiens, sapiens”, de bilhões de anos de existência, está a ponto de
desaparecer...
– ... Será que
não tem alguma coisa a ver com esse trânsito fantástico que estamos assistindo?
O Dr. Ykejdoiop
encolhe os ombros.
– ... É
possível, é possível, pois esse movimento não parece normal.
Professor Jônius
– ele mesmo descendente de um dos últimos “homo sapiens, sapiens” do velhíssimo
planeta Terra, que orbitava o ainda mais velho Sol – sente dentro de si um
arrepio, como se alguma coisa lhe fosse
extraída.
Está na hora de
deixar seu turno e ele se despede do Supervisor-Geral. Ele quase sempre não tem
hora para deixar o posto, ainda mais com todo aquele movimento.
Jonius Asylik,
Professor do Instituto de Astrofisica Galáctica, em Iaya, a capital do
exoplaneta Trappist1 b, Iayaglobus, tem outras ocupações. Não naquele momento
que ele dedica ao repouso e distração. Vai se encontrar com sua companheira
Vilovina que trabalha no Centro de Reflexão Artística da capital, para onde se
dirige. Lá fazem refeições juntos e depois se dedicam ao lazer – regra de ouro
do conviver intergaláctico.
Já na sessão de
repouso, com música suave no recinto e salão de recreio próximo, os dois
conversam num gabinete privativo.
– Como foi seu
dia, amor? – ela indaga, ao consorte, enquanto saboreia uma chávena de chá
repousante.
– Ah, nem me fale. Tivemos um movimento incomum
no exoaeroporto, naves chegando de todos os confins, muitas de antiquíssimas
civilizações...
– Hum, estranho,
não? Você tem alguma explicação?
– ... acho que
sim. Tudo leva a crer e o Dr. Ykejdoiop concorda, que algo fantástico acaba de ocorrer no
Universo...
– ???
– ... Eu lhe
falei sobre isso e não se trata de grandes subterfúgios. Claro que se trata de
uma fatalidade, mas totalmente prevista, inclusive dentro dos anais da ciência
galáctica, isto é, o desaparecimento de uma civilização em decorrência de um fenômeno,
a morte de uma estrela... O problema é que não é uma estrela comum que se
extingue...
–... então?
– ... trata-se
do antiquíssimo Sol, uma estrela de quarta grandeza, na Via-Láctea, que, depois de bilhões de anos em atividade,
extingue seu fabuloso arsenal de hidrogênio e repentinamente se apaga,
arrastando consigo, para o vácuo inevitável de um buraco negro em que se
transformou, todo um sistema planetário também vetusto e todas as civilizações
ali construídas há tempos remotos...
Vilovina
arregala os olhos, ela também já ouvira falar disso, embora não seja essa sua
especialidade, artista que é vinculada à estética e beleza.
– Por Zeus do
Universo! Isso é uma catástrofe... Não é de lá daquele pequenino planeta chamado
Terra, que orbita esse Sol, que pertence sua linhagem, meu querido? Você já me
falou sobre isso...
Jônius Asylik se
limita a segurar a mão da mulher e os dois caem num significativo silêncio, quase piedoso, em que ambos não
encontram palavras para exprimir o que sentem – em especial o Professor.
Então das
profundezas da alma como ser humano que representa, Jônius Asylik exala um suspiro
extraordinariamente simbólico: é que o espécime “homo sapiens, sapiens” acabava de desaparecer no buraco-negro do
mistério da infinitude univérsica.
E uma lágrima de
compaixão misturada com esperança, cai dos olhos do talvez último representante
ainda recorrente da linhagem humana dos terráqueos.
Bsb, 25.02.17
CANTANDO NAS
ESTRELAS
Murilo Moreira Veras
Ali está ele sozinho. A rua singrando o asfalto como a
querer atingir o horizonte. O sol já mergulha seu disco ofuscante nas primeiras
sombras da noite. Nas mãos, que as mantem em gestos leves, traz o simbolismo
das estrelas próximas a surgirem.
Na rua solitária, ela então emerge, os olhos grandes e astutos, como dois
faróis cintilantes. Sorri encantada com a possível miríade de estrelas que irá
habitar a abóboda celeste.
Os olhos dela fundem-se com os olhos
dele, ao encontrarem-se e logo se enlaçam, saltitando na semiescuridão da rua.
Bailado a dois a vida, os olhos
inspirando ternura, enquanto vai caindo silenciosamente a noite. Sapateiam,
rodopiam. Lá adiante as luzes da Cidade Grande piscam no lusco-fusco da tarde.
O disco solar se avermelha, sombreando o cume da montanha cobrindo o horizonte.
Um casal dançante – amigos,
namorados, marido e mulher, amantes por acaso? Ou apenas dois desconhecidos?
No escurecer do crepúsculo, as
sombras singrando o veludo do horizonte, o furor do cotidiano emudece o furor noturno
da Metrópole. Pontos de luz pululam aqui e ali, enfileirando-se num rosário cintilante.
É a Cidade das Estrelas que se
prepara para viver o turbilhão noturno. Veste-se de sonho, horror e esperança.
Plano acima, embriagado de música,
cujos acordes se projetam na agora vastidão noturna, o casal rodopia, fascínio
conspícuo, ignorando a vida, o mundo.
Acima de nosso vergonhoso terral,
lucilam pingos de luz, pequenas lágrimas lucíferas que começam a povoar o
panteão do noturno celeste.
Crepúsculo de sonho?
O que se dá depois é o ocorrer do
encantamento. Por que temos de sofrer a crueldade da imanência?
O casal une-o o amor, o fascínio, a
vibração da oportunidade do encontro. Os dois se amam. A paixão os enleva.
Leo e Lisa sapateando no palco
natural da vida.
Leo é um músico ainda não descoberto.
— O que você quer ser? – pergunta
Lisa, os olhos cheios de inquietante ternura.
— Pretendo montar uma casa de show só
minha, ter uma banda de jazz...
— ... de jazz?
— ... jazz original, revitalizar o
espírito jazzístico, hoje tão esquecido do público.
Leo está eufórico. Também é
compositor, está compondo uma melodia.
— E você, minha parceira linda, qual
o seu sonho? — ele indaga, o coração em festa.
A moça pousa nele os grandes olhos
luminosos:
— Quero ser atriz, representar papéis
como figurante desse grande teatro que é a vida. Também escrevo peças
teatrais...
— Uau! estou dançando com uma moça genial...
— E eu estou nos braços de um músico
talentoso, uma pessoa ainda sonhadora...
Dois jovens dançarinos trocando
ideias sobre seus sonhos.
É proibido por acaso sonhar, deslizando
assim no asfalto, antes que o ruído notívago da Grande Cidade aumente?
Oxalá jamais proíbam o amar, que não chegue a esse ponto o pragmatismo tecnológico,
a supermodernidade de hoje em dia.
— Essa sua canção já existe, tem
nome, como se chama o sonho de seu coração? — Lisa quer saber.
— “O Meu Coração Canta” – e começa a
assoviar os primeiros acordes de sua canção.
— Oh! Que linda, amei — ela responde, doce, a gentileza revelada nos
trêmulos lábios, a sorrir de emoção.
— Dedico a você.
— A mim, mas você mal me conhece,
parecemos tão desiguais, não sei se gosto de jazz, só gosto de música
clássica...
— Mas o verdadeiro jazz é um
clássico, como Chopin, Bach, Beethoven...
— Você é um amor, eu me chamo Lisa.
— E você uma estrela, minha
estrela-guia, meu nome é Leo.
Assim, enlaçados, ao enlevo daquele
instante amoroso e singular, os sopros dos elísios os impelindo e impulsionando,
ao som dos acordes de uma belíssima melodia — os dois, Leo e Lisa se elevam
acima dos rés-do-chão do mundo.
E dançam voejando através da abóboda
celeste, a saltitar entre as estrelas, cada uma delas exalando luz —
verdadeiras pétalas cantantes...
ILUSÃO
Murilo Moreira Veras
Para
mim a luz apagou, uma luz que não se via
precipitou-se em meu olhar, parecia envolta em sombras. Palavras soltas,
involuntárias entremeiam-se. Parece que a tudo falta fôlego, esse impulso que nos leva adiante,
sem amarras. Não são as amarras que costumam interceptar os caminhos do
coração?
O
que sabia sobre a ilusão? Meu amigo cicerone me faz esta pergunta e de pronto
não me proponho responder. E a realidade: pode a realidade representar uma
ilusão? Sim – penso com meus botões. Há cinco séculos antes de Cristo, Zenão de
Eléia, filósofo pré-socrático, já tentava provar, mediante artifício de
raciocínio, não existir o movimento. Ora, não existindo o movimento, também não
existiria a realidade, posto que esta não passa de um seguimento da mesma
realidade.
–
Você acha que vive uma ilusão? O outro pergunta, como me testando.
–
O que sei é que o mundo atual está cheio de ilusões, inclusive as chamadas
“ilusões perdidas”.
–
Isto é verdade, todos nós já sofremos de uma “ilusão perdida”...
Falamos
e alcançamos novos entrechos de nossa caminhada, penetramos numa espécie de
bosque entrecortado de alamedas, exemplares de herbários, caules com folhas
entrelaçadas, flores silvestres cujos botões coloridos denunciam pequenos
sorrisos, encontradiços em pomares naturais,
jornadas interioranas.
–
Veja este lugar – meu amigo desfila sua cantilena, acompanhante improvisado.
Quer me chamar atenção, enquanto me perco ouvindo o ruído dos pés calcando a
trilha de cascalho, o som rítmico de nossos passos.
–
Parece um pedaço do Paraíso!
(Ele
não se dá conta de estar me prestando um serviço, não me dando aula sobre a
beleza do local, descrevendo a paisagem com detalhes, dando o nome científico das flores, coisa que
absolutamente desconheço, deve ter decorado um dicionário de floricultura).
Por
que ele compara o lugar como um pedaço do Paraíso? A mim me parece um local
como outro qualquer, talvez um sítio na periferia de uma grande cidade. Ou se
tratava de um jardim, um parque? O Hide
Park no centro de Londres ou o Central Park em Nova York? Quem sabe o Jardim
Botânico do Rio de Janeiro? Ora, também pode ser o Jardim Botânico, não do Rio,
mas de Meise em Bruxelas, Bélgica.
Não
é uma ilusão se àquela hora da tarde de um dia movimentado, estivermos
passeando, eu e meu cicerone em quaisquer desses maravilhosos parques, todos
cravados em centros metropolitanos. Penso: onde, pois, a ilusão? Mas, se é
realidade, então eu e meu cicerone estamos perdidos.
A
última hipótese me ocorre com mais certeza. Mas, então estamos perdidos em
algum lugar no espaço tempo. Dou voz alta a este pensamento.
–
Você realmente acredita nessas coisas de transmigração da matéria?
–
Você quer dizer o “teletransporte” do filme Star Trek? Sei lá, tenho visto
tanta coisa estapafúrdia neste nosso novo velho mundo. Outro dia soube de
pesquisas telepáticas incríveis, pessoas se comunicando com outras a
quilômetros de distância, pessoas que dizem ter sido abduzidas por criaturas
extraterrestres, sem falar nos casos de assombração e possessão demoníaca,
explorados pelos filmes de terror...
Falamos
dessas coisas, ali, em meio a espaços floridos, plantas exóticas. Ele me
designava as espécies pelos seus nomes científicos. Esta é uma avena, Adrantaum spp; agora é uma bromélia, Aechmea fulgens; ali uma malva rósea, Alcea rósea; adiante temos uma barbana, Arctrum lappa; essa é uma
cânfora-de-jardim, Artemisa vidali;
agora temos uma begônia, Bellis perenis; agora
vemos uma calêndula, Calendula
officinallis; e esta aqui é uma camélia, Carmellia japônica; dália se chama esta, Dahlia pinnata; eis um fícus, Ficus
benjamina; agora uma gardênia, Gardenia
Jasminoides; e eis a verônica, Hebe
speciosa; veja agora uma magnólia, Magnolia
liliflora; e este é um lótus, Nelumbo
nucífera; este outro um gerânio, Pelargonu
hortorum; esta é a famosa rosa, Rosa
grandiflora; agora temos uma framboesa, Rubus
idaeus; eis agora uma sempre viva,
Xerochrysum bracteatum, e agora um jacinto, Hyacinthus orientalis; e esta a margarida, Leucanthemum vulgare; depois vem esta que é um lírio, Lilium sp; e esta última que é nada
menos que é o nosso belíssimo girassol, Helianthus
annus.
Fico
embevecido um momento com aquele florilégio, os títulos em latim desfilando-me
à mente, os estereótipos da língua morta em que se fundou nossa flor de Lácio
inculta e bela. Quando retorno agora à verdadeira realidade, meu cicerone
latinista havia sumido. E eu fico só naquele estático, quiçá inverídico
herbário.
Bsb,21.09.16
SANTO, MAS HUMANO
*
Elisário Moreno
Naquela manhã todos os
jornais e fontes midiáticas, imprensa, rádio e televisão, destacam a notícia
bomba:
“ ENCONTRADAS CARTAS
AMOROSAS ENTRE
O PAPA E UMA MULHER
CASADA”
Ora, o Papa é nada menos que João Estêvam, falecido há algum
tempo, até já canonizado pela Igreja Católica.
A mulher casada é ela, Maria Dolores d’ Avelar,
historiadora, escritora de renome, professora da Universidade Complutense de Madrid – só para esclarecer, entidade
fundada em 1499 pelo cardeal Francisco Jiménez de Cisneiros.
A notícia absolutamente não a surpreende. Acabou de
ministrar uma aula sobre História
Antiga, matéria em que se especializou. Vê a bombástica manchete na sala dos
professores, onde se encontra, num
intervalo de aula, enquanto espera a sineta de ingresso noutro turno de sua
fauna diária, como catedrática. A servente lhe serve o cafezinho, que ela sorve
em pequenos goles, saboreando o gosto amargo tanto de seu agrado.
Lá adiante, o professor de Matemática Superior, Astor di Sálvia a cumprimenta,
enquanto gesticulava em conversa com sua colega Florenza de Lucca, mestra em Física.
Não nota qualquer vestígio, entre os lentes, de que tenham
tomado ciência da desassombrada notícia. Compulsando a folha do jornal,
onde consta a reportagem, observa que seu nome não é citado. Aliás, foi a
condição imposta, quando negociou o fabuloso legado das cartas à Biblioteca Nacional de Madrid, depois descobertas pelo repórter do periódico
madrileno EL Mundo. Ali só consta
mesmo o nome de João Esêvam, o Papa.
Sorri com certa malícia. Termina seu cafezinho, sem açúcar,
o amargo do acepipe parece lhe penetrar a alma. Acomoda-se melhor na poltrona e
respira fundo. Tem ainda uns bons trinta minutos até a próxima aula cuja tema
agora é a civilização egípcia. Veja só, vai falar sobre o reinado do faraó
Amenófis IV, que depois passou a se chamar Akenaton.
De onde se encontra pode descortinar, através do janela, que
se abre para fora, uma réstia do cmpus universitário, a rotina dos estudantes, em bandos, a conversarem,
gesticulando, sobraçando livros, cadernos, as moxilas pesando-lhes às costas.
Moiçolas saracuteiam com suas saias revoltas, ou se apertam em jeans,
igualando-as a bonecas esguias nos seus espartilhos de enfeites.
Como tudo começou entre ela e o Papa João Estêvam?
Sente um ligeiro pulsar, um frisson, o coração lateja, os olhos brilham.
Ele era apenas um sacerdote, recém-egresso do Seminário Conciliar de Madrid. Servia na
Parroguia de Nuestra Señora del Sagrado
Corazón. Ela matriculara-se na paróquia para fazer o Curso Por Um Mundo Melhor,
em que o noviço Padre Ayala era coordenador.
Impressionou-a à primeira vista sua postura, meia estatura,
elegância atlética, voz vibrante e bem postada, mas sobretudo os olhos de um
azul profundo, que marcava suas faces amplas e rosadas. Logo descobriu que não
se tratava de um simples religioso. Tinha presença e, mais, arrebatava a
plateia.
Travaram amizade desde então, ela frequentadora da bela Igreja de São Francisco Borja, situada
na Calle Serrano – templo onde o Pe.
Ayala encarregava-se, aos domingos, de oficiar as missas da tarde. Ela tomava o
Metrô Ruben Dario, Linha 5 e não
perdia aqueles momentos em que o Pe. Ayala, à missa, fazia a homilia
domingueira. Concorridíssima a missa. Por causa do padre noviço de bonita
preleção?
Passaram-se os anos. O mundo mudou muito. Maria Dolores
mudou-se para o México com a família, onde terminou seus estudos. Bacharelou-se
na Universidade Pontifícia do México,
em História, especialidade: civilizações antigas, também as que floresceram no
México.
Desperta com o sinal da aula. Desvaem-se os eflúvios de uma
bela recordação – ela, Maria Dolores e o Pe. José Maria Ayala, por quem
nutria carinho especial. Ah, já lá se
vão trinta ou quarenta anos!
Dra. Maria Dolores d’Assunción vai ministrar sua aula sobre
o brevíssimo reinado do faraó considerado o “precursor do cristianismo na
civilização antiga”. Dizem que ele inventou o monoteísmo, na religião
politeísta do Egito Antigo, de ritos e rituais herméticos.
A mestra especializada em cultura antiga apenas se recordara
do romance proibido vivido com o Pe.
José Ayala. Trocaram mais de trezentas cartas, mesmo depois de ela se casar com
empresário madrileno do ramo de navegação.
De si, o Pe. José Maria Ayala progredia vertiginosamente em
sua carreira eclesiástica, de simples sacerdote, logo tornou-se cônego, pelos
méritos prestados e sucessivamente bispo e cardeal. Era tão elevada sua
proficiência que, aos 45 anos e 25 de
vida eclesiástica, já detinha o grau de Cardeal. E Maria Dolores, sua assídua
correspondente e regular cooperadora em alguns escritos do clérigo em ascensão,
não se surpreendeu quando soube que seu amigo, já membro do cardinalato
conciliar, foi inesperadamente eleito Papa.
Título escolhido – João Estêvam.
E, em Roma, ela esteve presente na cerimônia de
sua entronização como Vigário de Cristo.
Mesmo casada, com dois filhos, o marido empresário bem
sucedido, ela manteve com o Papa João Estêvam relacionamento epistolar “de forma intensa” como insinuou
maliciosamente a imprensa mundial.
Passou-se o tempo, inexorável, nem sempre favorável ao
platônico casal de amigos. Depos de um longo e profícuo exercício como Pontífice – João Estêvam sofre
violento atentado em plena Praça de São Pedro, no Vaticano. Sobrevive
milagrosamente, mas as sequelas são violentas e irreversíveis, levando-o a
morte poucos anos depois.
Um dia antes do desenlace, Maria Dolores esteve lá, à beira
de seu leito, antes de seu afetuoso amigo partir para a eternidade.
Dois anos depois – não se sabe por quais motivos, quiçá amargurada espiritualmente – o certo é que Maria Dolores, através de um desses
profissionais do metier – negociou as cartas recebidas do Papa com a Biblioteca Nacional de Madrid.
Condicionou que não venderia as que
enviou ao Papa, aquelas que ele a presenteou no último dia em que o vira vivo
no Vaticano.
Por ironia do destino – essas que escapam à compreensão
humana – o Papa João Estêvam foi beatificado e logo canonizado. No seu
currículo mais de uma centena de milagres ocorridos ao redor do mundo. Pouco
tempo depois, Maria Dolores também falecia.
O Sumo Pontífice, ora elevado à categoria de Santo na
Hagiografia Católica, teve ou não envolvimento mais significativo com sua
admiradora – não sabemos.
O que sabemos é que a figura ecumênica de João Estêvam
cresce cada vez mais. É que, agora, ele não é somente santo, é também humano.
* Contista nordestino nosso colaborador eventual.
Bsb,
19.02.16
O DOMINÓ
*
Telêmaco de Sá
Curiosa a maneira como ela trajava naquele domingo
de Carnaval: toda
vestida de preto,
luvas nas mãos
e o rosto sob
uma mascar inviolável.
Esse tipo
de fantasia naquele tempo
tinha um
nome: Dominó. Preferido de empregadas
domésticas, moças velhas e suburbanas. Mas
as más línguas diziam que muito senhor e moça da sociedade se fantasiavam de domínó para
não serem reconhecidos e poder
freqüentar as três
noites desses bailes
independentes, de má fama,
por sinal.
Esgueirou-se da casa às onze horas
da noite, sem
ser vista e logo se enturmou com
um grupo
de outros dominós
que se achavam na rua.
Deu-se a conhecer evasivamente,
para não levantar suspeitas.
Uma delas quis sabe seu nome, só para se conhecerem no ofício:
– Tetê – respondeu com voz em falsete.
– Que bonitinho. O meu
é Juju.
E lá se foram as duas, Tetê e Juju de braços dados,
saracoteando com o bando
de sirigaitas, todas trajadas de dominós.
Nas esquinas, paravam, abordavam os passantes,
davam adeusinho, sempre a voz de falsete,
atrevidas, brincalhonas:
– Alô, benzinho, quer vir comigo?
Mas quando o sujeito queria seguir, elas se
afastavam ligeiras, lépidas, enturmadas.
Um camarada falou: “São
impossíveis esses
dominós de uma figa.”
E completou: “ O diabo é que
ninguém sabe o que
está por debaixo
dessa bata preta.
Pode ser até
uma velha ou
um macho.”
Seguiram pela rua Grande – a principal artéria da cidade,
naquele dia bastante movimentada – pois, ali perto,
ficava desses clubes, nos quais
ocorria o que era
chamado de “festa
de segunda”. Primeira
eram os bailes nos
clubes granfinos, o Lítero ou o Cassino.
Chegaram à porta do sobrado,
onde já
se aglomerava uma pequena multidão, a maioria
curiosos – o público
que formava o chamado “clube do sereno”,
as pessoas que
só iam ali
para assistir a festa de fora,
apurarem os escândalos, se deliciarem com o barulho
da música e as confusões
geralmente armadas
nessas ocasiões.
Uma espécie de “leão-de-chácara”
controlava o acesso, geralmente para os marmanjos que
chegavam desacompanhadas com cara de briga e assim evitar os primeiros fusuês. Sim,
porque as mulheres,
ou sejam, os dominós,essas
tinham a entrada garantida, sem qualquer restrição. Pode-se dizer que a festa era delas, as folionas da vez.
Subiram as escadas em magote, fazendo aquela algazarra
louco. O salão
estava repleto: dezenas
de outros dominós,
mulheres fantasiadas e homens de todo jeito, sentados, de pés,
a maioria “butucando”, isto é, na paquera.
E o barulho infernal da música quase a fazer explodir os tímpanos das pessoas.No
ar, um
odor que
recendia a cerveja com
cachaça e guaraná,
tudo isso
misturado com um
vago bodum de suor e perfume.
Depois de alguns instantes,
Tetê notou que um
senhor de bigode,
cabelos ligeiramente
grisalhos e com
uma impecável camisa
social branca
a olhava insistente. Ela fez um sorriso que ele logo notou,
sinalizando em seguida.
Daí a pouco, estavam juntos,
dançando no meio daquela confusão.
– Como é teu nome? – quis saber o homem, no seu ouvido.
– Tetê.
– Tetê, você é um doce.
– Mesmo?
Ele puxou-a para si, até sentir que a bata do dominó colava no seu
corpo, ela
deixando se esfregar, dengosa.
O homem prosseguiu sussurrando, já
ofegante:
– Deixa eu prova desse doce,
belezoca.
– Ah, isso depende – ela
falou em falsete.
- De que? Diz logo? Dinheiro?
Por detrás da máscara, ela ciciou: “muito
amor”.
O homem aproveitou a confusão,
o empurra-empurra doido
e quis apalpar-lhe os seios, ela negaceou com
esperteza, enquanto
lhe sorria e lhe
acariciava os cabelos.
– Não, não.
– Só quero provar um pouco.
De repente, ela
disse estar com
sede e o homem
compreendeu que ela
queria era beber.
Carregou-a para o bar,
pediu para si
wiskey, mas ela
só quis guaraná
misturado na cerveja. Ficaram
bebericando, enquanto olhava o salão, a música
alta, os casais
fungando, atracados, numa dança que mais
parecia uma fornicação dançante. Vez em quando ele
enfiava a mão e sentia o que seris o durinho de seus
seios. E sua
excitação foi aumentando a cada
gole de wiskey, enquanto
ela ria
e só de leve
se esfregava nele.
Lá para
as tantas, o homem viu o salão rodopiar um, pouco, quis
arrancar-lhe a bata. Puxou a carteira do bolso,
polpuda, enfiou-lhe na mão um monte de notas. “Vem, vamos ali.”
Desceram as escadas aos trambolhões.
Entraram no primeiro táxi.
O taxista orientou o casal para um “lugar tranqüilo e bom que conhecia”. Entraram num quarto
às escuras, na periferia da cidade. O homem
estava tão bêbado
que arriou-se na cama.
Puxou-a para cima,
arrancando de um safanão
as roupas dela, a máscara,
montou em cima
daquelas carnes que
pareciam estar em
chama, sem
muita visão,
refestelou-se como pôde, às cegas.
E totalmente embriagado,
ali mesmo
apagou, em sono
letárgico, como
só álcool
costuma fazer.
Foi então que a mulher acendeu a luz
de cabeceira para
tornar a vestir sua fantasia, o
amarrotado dominó. A claridade
iluminou-a toda: Tetê na verdade
não passava de uma velha,
enrugada e feia.
Uma velha que
resolvera se divertir no carnaval,
fantasiada de dominó.
* Contista, nosso colaborador eventual
A COMPETIÇÃO
Murilo Moreira Veras
Estamos em Mirabolândia, país que fica
noutro planeta, pertencente a uma
longínqua Galáxia, distante pelo menos um milhão de ano-luz de nossa Terra,
mas, estranhamente, tudo ali se parece
muito conosco, em gênero, número e grau. O planeta se chama Aegidus Planetarius
– assim chamado por ser o celeiro
estelar do perigoso Aegidus Egipcius.
Governa-o atualmente o Presidente
Oãmolas, o Justiceiro. Seu governo não tem sido tão miraculoso quanto os de
seus antecessores Ivad e Luas, anos atrás. Os analistas mais escrupulosos têm
reclamado de desorganização e sua gestão diagnosticada como pródiga em desacertos. Reclamam
inclusive que, para governar o Presidente Oãmolas não precisaria mais do que 20 Ministérios. Mas o Presidente, com seu
poder de persuasão e apoiado por uma facção política extremamente forte, tem
nada menos que 39 Ministérios. E mais:
vai criar mais um para perfazer 40 – o Ministério da Esperteza – espécie de
Ministério curinga dentro da administração. O Presidente alega perante seus
governados que as críticas que lhe fazem são inócuas, o de que o seu domínio
precisa urgente é de um bureau de trabalho que vise a realização de ESPERTEZAS,
isto é, que incentive a criatividade, propostas e feitos cada vez mais
mirabolantes – até mesmo para justificar o nome da grande nação que governa,
com pulso forte, mas com habilidade, sem se preocupar com contensão de gastos.
É assim que naquele dia quente do
verão em Mirabolândia, que fica no hemisfério sul do planeta Aegidus
Planetarius, Oãmolas, seu Presidente até certo ponto perpétuo, chama seu
Primeiro Ministro Leumas e ordena:
– Ministro, encarregue-se de fundar
imediatamente mais um Ministério no meu Governo. Será o Ministério da
Esperteza.
– Excelência, mas já temos 39 e dizem
a boca miúda que é ministério demais.
–
Não interessa – retruca o Rei, áspero, quando sente-se desobedecido nas
suas ordens – esse novo Ministério irá calar a boca dessa plebe ignara.
O Ministro faz a mesura costumeira de
obediência e quando vai retirar-se para cumprir suas ordens, o Presidente o
interrompe:
– Espere. Tem umas condições a
serem observadas...
– ?
– ... a remuneração do novo Ministro
será de $50.000 voadoras mensais (moeda oficial do País) e para ocupar esse
importante cargo faça diversas competições que resultem em dois candidatos:
serão um Mancebo de muito bom aspecto
e uma Senhorita, bela de imagem e
amorosa de coração. Na última competição, cada um provará ser o mais esperto
e vencerá o que for melhor em invencionices.
Imediatamente o 1º Ministro baixa uma
ordem a seus comandados – uma imensa secretaria com inúmeros funcionários –
para que executem as Competições.
Depois de um rebuliço geral em todo o
Pais entre os candidatáveis ao fabuloso cargo, onde campeiam troca de farpas e
insultos nas competições internas, entre “mortos e feridos” na ingênita
batalha, quase de vida e morte – por
fim, restam apenas dois: um rapaz de grande porte, louro e complexão atlética e
uma moça, esbelta e linda, os olhos de uma doçura oceânica.
É hora da última competição. O local é um
anfiteatro, as arquibancadas lotadas de
participantes de ambos os competidores. Corre um frisson no ar, o que vai
acontecer é do interesse de todos os presentes.
Há certo bulício na assistência e
logo se formam duas correntes, uma a favor do rapaz, outra da moça – é difícil
adivinhar quem irá ganhar competição tão
acirrada e, ao mesmo tempo, tão díspar.
Então, abrem-se as cortinas e um
senhor bem apessoado, de casaca e gravata borboleta, se apresenta ao público, o
burburinho decresce, faz-se absoluto silêncio. Todo mundo quer saber o que o
apresentador vai dizer, saber mais sobre
tão importante competição, haja vista a
celeuma, antes, criada na plateia.
– Senhoras e Senhores, presentes a
esta Assembleia. Chegamos à final de nossas competições. Daqui a instantes
saberemos, segundo o escrutínio de nossa Egrégia Corte, quem ocupará o cargo de
Ministro da Esperteza, no Governo de nosso honorável Presidente. Esclareço que
a Egrégia Corte encontra-se ali, em tablado especial e é composta de 15
membros, 14 juízes e 15 com o próprio Presidente Oãmolas que terá o voto de
minerva, cabendo-lhe a decisão final.
Em seguida o apresentador expõe como
se realizará a competição, falarão os Defensores de ambos os contendores, o
tempo que lhes será reservado, em seguida os dois candidatos falarão de si e de
seus projetos à frente do novo Ministério.
Não precisa dizer que a sessão entrou
pela noite a dentro, as alocuções intermináveis, cada qual puxando brasa para
sua sardinha, a assistência já inquieta de tanto blá-blá-blá, não havia ar
condicionado que contivesse o calor.
O certo é que os dois ministeriáveis
apresentaram tantas invenções, tantos tipos de espertezas que iriam incrementar
na disputada Pasta que ficou muito difícil qual dos dois, se o mancebo ou a
moça, teriam direito a abocanhar o disputado cargo e quem, dos dois, apresentou
realmente as maiores estrambóticas espertezas a serem implantadas. O rapaz
disse que iria escamotear todas as contas públicas para promover mais ações
sociais e distribuir voadoras à população pobre. A moça ataca dizendo que os
colégios abrirão suas portas para todo mundo, do ensino fundamental até a
faculdade, tudo de graça e assim não faltariam mais professores, médicos,
economistas, advogados, pois todos se formariam não importa quão ignorantes
forem, a população de Mirabolândia será toda de doutores no futuro próximo.
São tão grandes as espertezas
propostas pelos dois candidatos que, ao final, depois de ouvir os eternos
sofismas jurídicos dos juízes da Egrégia Corte querendo apoiar um ou outro,
nosso honorável Presidente, fazendo jus a seu epítome de Justiceiro, decidiu
que a moça e o rapaz dividissem o mesmo Ministério e foi além: que os dois
inclusive se casassem – pois ambos eram na verdade farinha do mesmo saco.
Bsb,
13.12.15
O PARALÍTICO E O HOMEM DE NAZARÉ
Faz tempo que ele ouve falar. É um
homem que cura, diz o vizinho viandante, outro dia mesmo vindo de lá daquelas
bandas, onde se falava que nascera. Ele quer saber mais. Mas quem é esse homem,
descende de quem, é nosso irmão? Em nome de quem fala, como ele cura?
Oziel, o
andarilho, mascate de muitas idas e vindas àquelas distâncias, sorri e mostra
os dentes falhos, carentes de cuidado, os olhos postos nas montanhas
longínquas. Fala gesticulando:
– Dizem que ele
nasceu na Galiléia, num chamado Belém, em Nazaré. Carpinteiro por profissão,
como o pai.
Aquim está
atento a todas as palavras do mascate, lábios trêmulos, olhos fitos em cada
ge3sto do outro, como se ali estivesse a res posta do que procura, onde
encontra esse homem milagroso.
E logo se
atrapalha, ao mesmo tempo que ri, felicidade, alegria interior, chama o filho,
Jônatas, correi, ele sabe quem é o homem dos milagres e quando o filho chega,
às lágrimas escorrem pelo rijo rosto de dores e lutas. Diz, meu amigo Oziel,
diz pra meu filho quem é ele!
Jônatas, moço
ainda, ralo de barba, nos seus vinte anos, procura acalmar a afoiteza do pai.
Mas o relato também o impressiona. Ele sabe o que representa tudo aquilo para
seu velho, trôpego pai, na verdade um homem completamente deformado pela
impiedosa doença: é paralítico e está condenado a viver para sempre preso a um
catre.
Nem sempre fora
assim, lembra-se o filho, ainda na infância quando o pai tinha negócios
prósperos, mantinha uma pequena, mas frutífera caravana e viajava, Síria,
Galiléia, Trácia, Capadócia. E as lágrimas também de lhe saltam dos olhos.
Posso ser
curado, pensa o inválido homem, imobilizado no catre. O filho Jônatas é o
primogênito e atrás dele um pequeno séquito de crianças precisadas, que ele não
pode dar conta sozinho junto com a mãe, quase desesperados todos.
A quem recorre,
ao rei, aos sacerdotes, aos saduceus, aos fariseus, ele mesmo não passando de
um samaritano, apátrida naquela pátria dos judeus?
Mas ele, Aquim,
tinha os amigos, a família, os filhos, parentes em Samaria.
O mascate Oziel
o encoraja, mesmo com seus falhos dentes, o rosto curtido de sol, magro e rijo
como um cepo:
– Amigo Aquim,
nem tudo está perdido. O Homem de Nazaré pode te curar!
– Mas como, se
estou aqui preso num catre, sem poder me mover? Como chegarei até ele?
O outro coça a
cabeça de ralos cabelos, a barba rebelde sem tosa no pontudo queixo:
– È, assim é
ruim...
De repente ele
arregala os olhos, vem-lhe à telha uma ideia, quem sabe a solução, pensa o ágil
mercador:
– E se a gente
te levasse até ele?
Pai e filho se
entreolham, atônitos, como se a solução caísse do céu, vindo da boca do
viajante.
É a única
solução: Aquim tem de chegar até o Nazareno, falar com ele, pedir que lhe cure
pelo amor de Des, o livre daquela prisão eterna, daquele horror que é sua vida,
para que ele possa voltar a sustentar os seus, olhar pelos filhos, seguir de
novo em frente.
Mas, como Aquim
se deslocará até onde se acha esse miraculoso rabi?
Então, outra
ideia nasce no imaginoso cérebro do ambulante do deserto. E logo explica aos dois, Aquim e Jônatas, seu filho e também
à sua mulher e a toda a família.
É uma solução
completamente maluca, mas ninguém tem ânimo nem o direito de contestar, porque
está em jogo a vida, a cura de Aqui, o indigitado paralítico.
Imediatamente
eles passam a executar a famigerada ideia de Oziel, a quem se juntam mais dois
companheiros, Aron e Samec, aprendizes de mascate. Os quatro, Oziel, Aron,
Samec e Jônatas vão às vias da obra: ele transformam o pobre catre de Quim num
improvisado carro, toscas rodas de madeiras atadas às laterais, a estrovenga toda
puxada por um e surrado jumento de carga, último bem da família do paralítico.
E, sem mais
delongas, parte a trupe dos quatro para Galiléia, o pobre Aquim deitado imóvel
no improvisado leito-carruagem, que avança rasgando o deserto da Palestina, aos
trancos e barrancos em busca de um milagre imaginário.
O predestinado galileu,
filho do carpinteiro José e Maria, o Homem de Nazaré, empreende sua desenvolta
missão de revelar ao mundo dos homens os segredos e as sutilezas do Reino. Ele
perambula pela Galiléia com seus doze discípulos e onde quer que permanece, à
beira do mar, ao pé da montanha, nas casas para onde é o conviva principal,
acompanha-o sempre uma multidão de pessoas de todas as classes, sacerdotes,
fariseus, saduceus, ricos e pobres, mulheres, crianças, enfermos, curiosos,
transeuntes.
Naquele momento
ele está em Caparnaum, adentra a casa de um morador que o recebe como
honrarias. Logo a multidão toma conta da moradia. Impossível alguém querer ali
entrar tal o tumulto à porta, o aglomerado de tanta gente.
É justo quando
o tosco veículo carregando nosso pobre paralítico aporta à gente da casa onde o
Rabi acaba de entrar.
O acesso parece
cerrado para o infeliz Aquim.
De novo o
artifício é de Oziel, o viandante do deserto. Com o apoio dos quatro homens,
usam uma escada e carregam o catre até à cumeeira da casa, destelham o lugar
onde o Galilei é visto, no meio da sala, depois, com uma corda amarrada ao
catre, descem-no até colocar o paralítico em frente a Jesus.
Nem tão
surpreso quanto parece, o Rabi olha fixamente para aquele mirrado homem em cima
de um catre, ainda suspenso no ar e diz: “... Meu filho, os teus pecados te são perdoados.”
A multidão,
espantada, lhe dá passagem: e Aquim, inteiramente curado, sai, ileso, caminhando
– o semblante iluminado de felicidade. (MMV).
Bsb, 14.10.15
NOSSO MUNDO POSSÍVEL OU VIAGEM EDUCATIVA À MARTE
Jean-François Martin-Soleil
Agora estou só. Nem os meus familiares
e amigos acreditam em mim. Fui afastado de minhas funções. Acreditam que estou
sofrendo das faculdades mentais. Até um médico, não sei se psiquiatra ou
neurologista, atestaram isso, que não estou bem e que tudo tem acontecido
comigo não passa de alucinações. Talvez sofra de uma doença até desconhecida.
É por isso que
estou nesta casa de repouso, faz alguns dias. Ou meses? Sinto falta de meu
trabalho, os meus pensamentos são perfeitos. Tenho boa saúde, o organismo
funciona perfeitamente. Então, o que estou fazendo aqui, sozinho, abandonado?
Por que as pessoas não acreditam na verdade? Por que desprezaram o que eu lhes
disse, as razões que ponderei? Não sou eu o louco, são os outros, vocês,
infelizmente, amigos, familiares, meus alunos, os terrestres, enfim, esse mundo
de doido em que se transformou nossa Terra.
Querem ver?
Então me escutem e me julguem, se puderem, pois as coisas andam tão às avessas
hoje em dia que ninguém acredita mais em ninguém, tal é a desorientação que nos
encontramos. Como é o caso dessas temerárias expedições planejadas pela NASA e
outras empreendedoras oficiais, para Marte, por estes dias.
Ouçam, pois, o
meu relato. Suplico-lhes.
Tenho cinquenta
anos, fui professor de Ciências Políticas na UNB, pós-graduado em Filosofia
Pura e Política Aplicada, na Sorbonne, tendo lecionado em Havard, Estados
Unidos e Oxford. Sou funcionário de
carreira do Itamarati e atualmente exerço a função de Consultor Para Assuntos
Especiais na ONU, representando nosso País naquela Corte. Sou considerado um
“scholar” na nomenclatura científica, tenho vários livros publicados versando
sobre economia política, geopolítica, filosofia e sociologia antropológica,
assim como grande número de artigos em jornais sobre esses assuntos e outros
inclusive astronomia amadora, posto que também sou rádio amador, com mais de
trinta anos de atividade, tendo recebido prêmio de qualidade e eficiência
internacionalmente reconhecido. Portanto, meu amigos, posso lhes afirmar: não
sou uma pessoa qualquer, sou um verdadeiro “homme de lettre”.
Pois,
exatamente no dia 13 de janeiro deste ano de 2053, um fato extraordinário me
aconteceu. Ao sair de meu escritório em Bruxelas, onde estava adido para
assumir agenda especial de trabalho, à tardinha, fui de repente abordado por um
casal à saída do prédio onde trabalho. O moço era bem parecido e sua
acompanhante uma moça belíssima, ambos com vestimentas mais ou menos insólitas,
em relação às nossas. Eles se aproximaram e o moço falou em português
puríssimo:
– Vós vos
chamais Estanislau Montenegro?
– Sim –
respondi meio desconfiado
– Fazei o favor
de nos acompanhar, Excelência.
Quando percebi
que alguma coisa de anormal acontecia, quis fugir, mas a moça belíssima me
segurou a mão e de imediato perdi os sentidos, pois tudo escureceu.
Quando dei por mim, estava dentro de uma nave, deitada numa espécie de cama
suspensa no ar. Acordei atordoado, a mente em turbilhão, mas a moça, a meu
lado, tomou-me a mão e voltei imediatamente ao meu estado normal, inclusive as
pulsações cardíacas que haviam como que disparadas.
Com um sorriso
brilhante, ela me disse:
– Acalmai,
Excelência, nada de mal irá vos acontecer. Somos de paz.
– Quem são
vocês? – ousei perguntar. O que querem de mim?
Então o moço se
aproximou e fez as apresentações:
– Eu sou Uriel
e esta é a Eridana. Pertencemos à Chancelaria de Visitantes do Planeta Marte...
– ?!
– temos a
missão importante de convidar Vossa Excelência a fazer uma visita à capital de
nosso Planeta Marte, Martânia, em vossa
língua.
– Quer dizer
que vocês, os senhores, me abduziram, assim contra a minha vontade – argui, sem
contudo mostrar qualquer espécie de rebeldia.
–
Absolutamente, Excelência – agora era a vez da moça, que se chamava Eridana
falar. Nossa moção tem o intuito inteiramente pacífico, sem nenhum sinal de
força, apenas queríamos que o convite fosse exclusivo à vossa pessoa e para
evitar envolvimentos desagradáveis.
Uriel
completou, com toda a amabilidade:
– Nós,
Excelência, nunca utilizamos a força, somos pacifistas por índole, apenas
cumprimos os protocolos da convivência galáctica. Nosso objetivo é, de certo
modo, nos prevenir quanto ao descumprimento das leis áureas predominante no
Universo Galáctico.
Dito isso, com
meu espírito totalmente pacificado e ouvindo uma harmonia que parecia fluir da
própria nave, o bólido, como assim classifiquei aquele transporte, partiu numa
velocidade incrível. Algo desacordado, envolto num redemoinho, quando dei por
mim a nave instalara-se numa espécie de extensa pradaria. Eridana tomou-me a
mão, tonto que ainda estava, a porta da nave se abriu automaticamente e saímos.
Noto que estou com um capacete em forma de bolha transparente. Eridana explica
que o ar lá fora é muito rarefeito, eu não poderia respirar.
À nossa frente
estende-se um imenso deserto, aqui e ali abrem-se grandes cavernas e penhascos, os raios solares
a pino castigam aquela vastidão, vez em quando varrida por estranhos ventos,
fazendo levantar uma espécie de fuligem quente e irritante para a pele. É por
isso que os meus anfitriões usam uma vestimenta colada ao corpo e infensa a
esse desconforto. Só então verifico que estou também usando a mesma coisa.
Então, Eridana
que está sempre me acompanhando, enquanto o companheiro avança três passos
adiante, me mostra ao longe, emergindo do mormaço, torres pontiagudas,
construções e grandes alças que se entrelaçam, anéis circundantes e auréolas,
tudo com reflexos brilhantes como se iluminadas. Fico espantado com a visão
inusitada e ao mesmo tempo desfrutando daquela florescência em plena insolação.
– Vede
Excelência, é lá Martania, nossa capital – Eridana aponta para aquela visão
iluminante.
No mesmo
instante surge um transporte, espécie de bolha transparente, na qual entramos e
somos transportados rapidamente para a cidade, cujos pórticos agora posso ver.
Fico realmente deslumbrado ao ver a cidade de perto, construções altíssimas,
elevados que se cruzam, nada que se pareça com qualquer coisa na terra.
Nosso guia que
maneja nossa bolha agora começa a percorrer, em voluteios estonteantes, o
interior da cidade, ultrapassando pontes, alças gigantescas ligando corredores e
espaços, um verdadeiro labirinto. É tudo muito fantástico e nem tenho palavras
para descrever.
Por fim, a
um sinal de Uriel, o condutor pára o
veículo-bolha e todos saímos por um túnel, mas que é transparente, que nos leva
a uma abóboda em cujo portal entramos. Para meu espanto, somos recebidos por
uma comitiva de marcianos, pessoas como nós, mas esbeltas, cabelos aloirados e
vestidos do mesmo jeito, apenas, para diferençar, trazem consigo pequenas
mantas, espécie de solilóquios, ricamente emoldurados. Uriel então explica:
– São nossos
representantes oficiais, administradores de Martânia.
Eles me fazem
cumprimentos respeitosos. Alguns de aparência muito idosa.
Em seguida,
sempre guiado por meus anfitriões, sou convidado a uma espécie de ágape, num
salão muito bonito, com desenhos e arabescos insólitos para mim, mas de extrema
harmonia e beleza. Somos servido com bebidas de aparência desconhecida, mas sofisticado paladar.
Um dos anciãos
– que Eridana me adianta ser o Presidente da Liga das Nações de Marte, órgão
máximo que governa todo o planeta – começa a fazer sua saudação. A língua é
diferente, mas tenho tradução simultânea para o português, graças a um
aparelhinho colocado na orelha. Ele apresenta suas boas vindas a Martânia, diz
que estão todos felizes com a presença de um terráqueo em seu planeta. Eis como
termina sua oração, cujo teor muito me impressionou:
“Preclaro
Visitante do Planeta Terra, nosso convidado de honra neste momento. Quero
dizer-vos que Vossa Excelência é muito bem vinda em Martânia e todo nosso
Planeta se curva perante vossa pessoa, primeiro representante terráqueo que
temos a honra de receber e conhecer. Mas, em nome de nossa Corte Suprema e
também em nome de todo o povo marciano, peço-vos que vos digneis a comunicar a
vossas autoridades que estamos cientes de que os terráqueos no momento se
aprestam em organizar expedições experimentais a nosso planeta. Adianto que
nós, marcianos, somos um povo extremamente pacíficos e que já abolimos a força
e a violência de nossos códigos de conduta e todas as nossas leis se predispõem
a estabelecer normas visando o bem comum e a felicidade de nosso povo. Temos
ciência, através de nossas inúmeras perscrutações, estudos e abordagens
invisíveis a vosso belíssimo planeta, quão belicosos e violentos são vossos
concidadãos, que, a despeito de já terem evoluído em termos de ciência e
tecnologia, ainda não alcançaram os níveis adequados de convivência pacífica em
sua evolução, cujas mentes se deixam impregnar de comportamentos violentos que conspiram contra
a paz e a harmonia entre os seres organizados. Portanto, peço que propugneis
por levar esta mensagem aos Dirigentes da Terra, para evitar que, a desgosto
supremo nosso, tenhamos que agir e colocar em alerta extrema nossos artefatos
secretos de defesa, inclusive forças superiores da justiça galáctica.”
É-me concedida
a palavra e eu digo algumas palavras primero, assinalando de minha admiração
causada com o belíssimo impacto da beleza da cidade, agradecendo a gentileza
com que sou tratado, depois afirmando que de minha parte faria todos os
esforços possíveis para levar esta advertência às autoridades suprema de nosso
planeta. Ao final, eles não aplaudem: fazem reverências.
Terminada a
cerimônia, meus anfitriões me convidam a retornar ao veículo-bolha. Então,
vamos conhecer vários lugares, fazer um “tour” turístico, novamente em voos
rasantes.
Sinto-me
completamente extasiado com os diferentes locais e ambientes a que sou levado a
conhecer. São praças imensas com lagos artificiais e repuxos de água de
variadas cores, de onde se elevam sons de verdadeiras sinfonias, eflúvio
magnificente de sons, incompreensíveis para mim, mas belíssimos. Jardins,
muitos de repente suspensos, com flores de diversas tonalidades e feitios, que
se deslocam e de onde ecoam vozes e
sussurros como quê paradisíacos para meus pobres ouvidos terrestres.
Numa de nossas
paradas turísticas, conheço uma construção lindíssima em forma de pássaro
gigantesco, cujas asas esvoaçam em movimentos sutis e onde frui-se perfume
agradabilíssimo nos deixando quase em estado de vertigem.
– É nosso
Templo Oracional – explica Edidana.
É qualquer
coisa de extasiante a beleza que envolve aquela espécie de templo-pássaro. Em
sua abóboda interior, incrustrado num altar artisticamente moldado, encontra-se
uma esfera e dentro dela, espargindo modulações sonoras, um olho brilhante a lançar intermitentes jatos de luz coloridas.
– É a figura do
Ser Criador que nos visualiza a todos, Excelência – explica minha anfitriã,
após fazer uma profunda reverência com a mão no coração, como ato de extrema
fé.
– É o Olho
Univérsico, que comanda tudo –
complementa Uriel, que também faz uma silenciosa reverência.
Ao nosso redor,
muitas pessoas, anciãos, mulheres, crianças e jovens, agrupam suas vozes em magníficos
corais.
Tudo é muito
emocionante e ao mesmo tempo intrigante, de ver pessoas de outro planeta que
não a terra, fazer demonstração tão grande de fé e devoção no Criador do Universo.
Minha anfitriã
como que me adivinhando o pensamento
assegura:
– Em Marte,
Excelência, como em todo o universo habitado, cultua-se o Criador do Universo,
embora não tenhamos uma religião específica, igual a professada no planeta
Terra.
É assim que sou
levado a visitar outros locais, cada qual o mais fascinante possível, como
escolas, fábricas, monumentos ou simplesmente me surpreender com a súbita
coloração que tinge do céu, como que a disfarçar a vermelhidão que cobre a
atmosfera.
Os meus
anfitriãos a tudo vão me informando, enquanto os meus olhos se extasiam de ver
tanta beleza, serenidade e harmonia em todas as coisas. A despeito de parecer
ser uma metrópole, intriga-me não observar qualquer movimentação de
transportes, como nas cidades da Terra.
É então que
percebo – e Eridana me aponta – seres voando pelas desvãos de elevados, pontes
e edifícios.
– Não temos
praticamente meios de transportes como tendes em vossa terra, Excelência –
argumenta. A rigor, nós marcianos já descobrimos a transposição da matéria,
assim nós nos transportamos mediante navegadores portáteis (e me mostra um
aparelho minúsculo que traz junto ao pulso), capaz de nos levar para onde
quisermos, inclusive através do espaço. Também, portamos asas que são implantadas
em nossos corpos, com as quais podemos voar a pequenas distâncias, como
Excelência acaba de ver alguns marcianos adejando pela cidade.
Outro fato que
me impressionou bastante é que em todos os lugares, até mesmo nas fábricas, que
são todas subterrâneas, ouvem-se músicas, melodias totalmente diferentes de
qualquer outra conhecida na Terra – belas, sincopadas, harmônicas e
extremamente relaxantes.
De novo minha
anfitriã explica que em Martânia e em todas as demais localidades habitadas de
Marte têm na música sua inspiração diária. E como eu insistisse no motivo dessa
inclinação pela música, Eridana, depois de sorri, como a medir minha ignorância
e insensibilidade terrestres, me instrui:
– Nós
marcianos, Excelência, fazemos da música nosso grande alimento da vida, em tudo
o que fazemos. Nossa música, contudo, tem inspiração muito mais profunda, nasce
conosco. Vossa Excelência de certo já ouviu falar na música das esferas, pois
é justamente esta em que somos instruídos desde o nascimento e se expande por
toda parte, até os confins do universo, a música das estrelas, a harmonia que
simboliza o infinito e a eternidade.
Eis que de
repente Uriel consulta uma espécie de interfone que mantém em sua cintura.
Troca olhares com a parceira Eridana. Intrigou-me aquele gesto, então pergunto
de que se trata:
– É que nossa
visita chegou ao fim, Excelência. Temos que devolvê-lo imediatamente à Terra.
E em questão de segundos, acomodado à bolha,
faço a viagem de volta à Terra, ao mesmo lugar de onde fui levado – à saída de
meu escritório em Bruxelas.
Consulto meu
relógio e verifico que, desde que fui transportado, a viagem não passou de três
horas, por incrível que pareça.
Não preciso
relatar o resultado dessa incrível aventura de que participei. Ao retornar,
procurei, de todos os meios de que
disponho e me possibilitam as funções, transmitir a mensagem da Suprema Autoridade do povo marciano, naquele
ocasião memorável. Fui ao plenário da ONU, depois aos jornais, às televisões,
tentei de todos meios, possíveis e impossíveis, para inteirar os nossos
poderosos dirigentes sobre o perigo que cometíamos autorizando expedições a
Marte, mesmo com supostos fins pacíficos. Fiz vê-los o quanto essas expedições
poderiam ser ameaçadoras. Preveni-os principalmente sobre as revanches, o
perigo da revolta dos marcianos e o temor de enfrentarmos, inclusive uma
interferência militar de forças desconhecidas e imprevisíveis.
Ninguém me
escutou, ao contrário fui considerado louco e toda minha experiência com essa
magnífica viagem à Marte, as admoestações e a magnífica lição de beleza, ética
e estética que presenciei – tudo ficou perdido.
Será que um dia
me escutarão?
* Astrônomo amador francês nosso colaborador
MEU AMIGO
CURRÍCULO
Murilo Moreira Veras
Precisava
urgente de um currículo. Então um amigo me indicou um especialista.
– Pode confiar, é o que há de
melhor no ramo.
Não perdi
tempo. Fui atendido em hora marcada. Não se tratava ter um currículo qualquer,
todos de certo modo foram meus amigos curriculares no passado.
– Pode me
chamar, Sr. C – disse-me ao me atender no seu escritório. Em que posso
ajudá-lo?
Expus o motivo
de minha consulta que era obter um currículo que me representasse, que levasse
amizade às pessoas e não coisas negativas.
– Ora é justamente
o que fazemos – me confirmou o Sr. C de forma gentil, todo seu ser inspirando
confiança. Perguntou se podíamos começar e com meu de acordo, Sr.C conduziu-me
a uma sala dotada de instrumentos tecnológicos. Destaca-se um painel em quarta
dimensão, no qual fatos e ações sobre minha pessoa desenrolam-se, em algum
momento de minha vida.
Revivo aqueles
fatos, instantaneamente.
Vi-me infante,
os brinquedos, os folguedos, as pequenas indignidades que pratiquei.
– Menino, não faça
isto senão vai apanhar! É meu pai, com sua voz de trovão, o cinto na mão pronto
para corrigir o mal feito. Mas, aparece minha mãe que logo me livra da surra.
Ela sempre passa a mão na cabeça dos filhos.
Aquele roubo
que fez de uma fruta no mercado, em que saio correndo para não ser pego pelo
vendedor. E empinando pipa com seu irmão mais novo. As pipas nós mesmos as
faziamos, diferentes das jamantas, que eram mais aprimoradas e muito maiores.
Fazer o cerol, uma mistura de vidro moído com goma arábica que era passado na
linha, para no alto, cortar as linhas das outras pipas, numa verdadeira batalha
aérea. Hoje é até proibido tal prática, pois pode transformar-se numa armadilha
perigosa, até matar uma pessoa desprevenida.
Mais novo o
irmão era quem fazia o trabalho inferior, ir comprar o papel de seda, para
cobrir a armação da pipa.
– Compra o
papel de seda na quitanda do seu Menzico – grito para o irmão.
– Cadê o dinheiro?
– Ora, manda botar na conta do papai!
E o mano
obedecendo-me, sai correndo dar conta do recado.
Entro na
história e vou construindo minha vida. Ou reconstruindo? O sr. C. explica que
currículo vem do latim “curriculum-vitae”, que significa “currículo de vida”.
Assim, eu escrevo e ao mesmo tempo vivo o meu currículo de vida.
Vejo-me na escola,
melhor, caminhando em sua direção e tenho que atravessar várias ruas, segurando
a mão do irmão mais novo, tomando conta dele ao atravessar avenida com trânsito.
Não esse trânsito pesado de veículos, àquela época podia-se andar tranquilo
pelas ruas, tão diferente de nossos dias.
Ginasiano, as
escaramuças decorrentes do período. Em certo intervalo de aula, eu e uma
corriola de quatro ou cinco companheiros, aproveitamos para dar uma volta na
praça. Eis que, à certa altura, lobrigamos lá adiante uma turma de moleques,
conhecidos como brigões de rua, violentos valentões, armados de paus e pedras.
O colega grita:
– São eles, o
bando do Esmagado!
Aterrorizados
por que tinham contas a ajustar com
esses famigerados moleques, deram no pé, escafedendo para todos os lados, até
entrando em casas particulares, pedindo socorro. Eu não, fico parado no mesmo
lugar, aliás atitude que se faz perante cães raivosos. O bando começa a jogar
pedras. Então, o Esmagado em pessoa passa por mim e diz “Olá”, a que respondo
“Olá, tudo bem”. Meus colegas ficam estarrecidos. Acontece que a mãe ou tia do
Esmagado era costureira de minha mãe, conhecidos de longas datas.
Estou na
Faculdade, onde curso Filosofia. Tenho uma colega de classe que se chama Flora.
Faz algum tempo que estamos de namoro. Minha família não aprova esse
relacionamento de jeito nenhum, porque a moça é escurinha.
– É uma moça de
cor, meu filho, ela não é para você – admoesta-me a mãe, sempre ciosa pelos
seus rebentos.
Assim mesmo o
namoro continua, cada vez mais forte. Meu pai toma conhecimento, não aceita,
diz que devo terminar meus estudos, antes de qualquer coisa. Eu me revolto. Não
tem jeito, meu pai acaba conseguindo minha transferência na Faculdade para o
Rio de Janeiro, onde temos parentes próximos.
Parto a
contragosto, já estava gostando da garota, afinal, uma boa moça, de quem, por
sinal, nem consigo me despedir. Flora recebe meu fora, através de um bilhete inesperadamente
curto e inexpressivo. Sinto-me um vilão, traidor.
Anos de passam.
Vejo-me casado, morando em Santa Tereza, um pitoresco bairro carioca. Sou
professor e dou aula de filosofia na UERJ. Leciono a matéria “Ética”. Tenho
filhos e até netos, já. Tenho a cabeça branca e penso em me aposentar.
Concluo que
Currículo é o meu melhor amigo A ele
devo certas fases de minha vida que ele soube muito bem registrar. Não que
Currículo seja fora de série, brilhante na seu ofício de contingência. A
verdade é que ele, Currículo, tem seus paradigmas de um lado e doutro defeitos,
sérios paradoxos, basta considerar alguns procedimentos negativos, que eu mesmo
diria não deixam de ter um lavor de insensatez nos seus passos.
Mas isto não
lhe tira o mérito de considerá-lo meu melhor Amigo.
Bsb, 7.07.15
O ALIENÍGENA OU NÃO ESTAMOS SÓS NO UNIVERSO
-Jean-François Martin-Soleil
Ao abrir um
matutino, encontro um anúncio de que um cientista erudito irá fazer uma
palestra cujo tema é “Estamos sós no Universo?”. O
assunto me interessa, porque é da minha área. Sou um dos que acho o tema
bastante interessante.
“O que será que
este Mr. Robert Dickens – esse é o nome do palestrante – irá dizer sobre tão
exótico quanto polêmico assunto?” – é o que fico me indagando ao comparecer a
referida palestra no auditório principal da UNB.
De antemão,
pelo noticiário e pelas informações que tenho, sabia-o tratar-se de professor americano
de astrofísica, conferencista, ateu confesso, autor de vários livros onde
expunha suas teorias sensacionalistas, desmistificando as religiões e pregando
a teoria do universo casual, portanto, adepto do darwinismo, ou seja, da
Evolução da Espécie e crítico acérrimo do criacionismo.
Quando lá
adentro, o auditório está repleto, muita daquela gente talvez tenha vindo por
mera curiosidade, que também não deixa de ser meu caso. Sento-me o mais
distante possível, pensando que na certa
o palestrante – Mr. Robert Dickens – iria arrasar com sua retórica, grande
poder de convencimento como transparecia em seus livros. Trata-se de um
autêntico “scholar”, expert na matéria, dificilmente vai encontrar quem dele
discorde.
Durante quase
duas horas Mr. Dickens discorreu sobre temas ligados ao assunto, tudo de modo a
demonstrar que nós, seres humanos “somos os únicos habitantes do universo”.
Segundo ele, é balela pensar de outra forma. Citou o “Paradoxo de Fermi” pelo
qual fica demonstrado que será impossível a existência humana fora da terra,
porque os “condicionamentos” não permitem, ou seja, problemas relacionados a “argumento de
escala” e “probabilidades”, fatores estes que geram conflitos de falta de
evidências na existência de vida inteligente além da nossa Terra. Como prova ou
evidência – o que certamente inviabilizaria qualquer nossa pretensão de termos
companhia inteligente no Cosmo – o todo poderoso Mr. Dickens citou ainda várias
outras teorias que desaprovam a proliferação de seres inteligentes fora da
Terra, teorias na realidade totalmente desconhecidas, senão pelas comunidades
científicas, como a “Equação de Drake” e a “Hipótese da Terra Rara”. Todas
essas teorias sustentam praticamente a mesmo ideia, seja pelo fracionamento civilizacional,
seja pelo fato de somente a Terra reunir as condições necessárias à existência
de vida humana inteligente.
De repente, um
ouvinte se ergue do assento e interrompe o palestrante. A plateia fica em
suspense, Mr. Dickens paralisado, como atingindo por um raio. O interpelante,
um senhor aparentando 40 a 45 anos, em inglês, língua do palestrante, expõe uma
série de razões contrárias à dissertação do até então incontroverso
conferencista.
A exposição
daquele senhor é de uma clareza meridiana, embora poucas pessoas ali no
auditório entendam realmente sobre o que ele tão brilhantemente discorre. De
minha parte, eu compartilho de todas aquelas ideias que o desconhecido alega em
seu oportuno aparte. Mas o resto da plateia, acredito, fica refém dessa notável
discussão. Para complicar, ainda há o fato de que toda a arguição do rebelado
ouvinte tem de ter tradução simultânea e o próprios tradutor por vezes se
atrapalha, quanto à palavra mais adequada. Em síntese, nosso ouvinte faz um
retrospecto sobre a matéria, citando desde Pitágoras, Demócrito, Platão,
Aristóteles e Sócrates, filósofos da antiguidade e os mais modernos, Francis
Bacon, Helder, Kepler, Giordano Bruno e
Isaac Newton, assim como no nosso tempo,
o próprio Einstein e Carl Sagan. E para fortalecer a ideia de que a vida
inteligente no universo é possível cita também o celebrado astrônomo francês
Camille Flamarion e o grande matemático húngaro Kurt Gödel – aquele autor do
livro “Pluralidade dos Mundos Habitados” e este do “Teorema da Completude” e do
argumento das “curvas fechadas” com relação a viagens no tempo e espaço.
Depois da fala
do ouvinte, Mr. Dickens procura responder suas ponderações, mas já não parece
tão senhor da situação, apresenta ressalvas e faz circunlóquios supostamente
apoiados na ciência, sem de todo convencer. Sua salvação é que a plateia não
parece ter entendido nada da discussão ali travada, certamente por
desconhecimento de causa.
Terminada a
palestra, minha intenção é ver se consigo falar com o senhor que se opôs com
vigor às ideias de Mr. Dickens. Na confusão da saída não consigo distinguí-lo,
porque ele saiu repentinamente. Finalmente vou encontrá-lo já na calçada à
espera de um taxi. Abordo-o e digo-lhe o quanto me encantou o seu aparte, que
considerei brilhante, os argumentos que usou com a propriedade de quem conhece
o assunto.
Convida-me para
tomar um drinque e vamos a um bar ali perto. Depois de tomarmos alguns chopes, lá
para tantas, quando já nos retiramos, a rua praticamente vazia, continuo a
elogiar seu aparte e pergunto então qual a sua profissão, se era professor,
onde adquirira tanto conhecimento como demonstrou.
Para meu
espanto, ele me responde num português puro, sem o menor sinal de que está
blefando, o rosto sério e os olhos brilhando à luz que coa da iluminação da
rua:
– Meu senhor,
você está a falar pessoalmente com um alienígena. Sou habitante do planeta
Vênus e estou na terra cumprindo uma missão.
Fico
completamente abismado como que fora do ar por uns segundos, e gaguejando,
pergunto-lhe;
– Que missão?
O senhor havia
misteriosamente desaparecido.
Bsb. 20.06.15
* Astrônomo francês, naturalizado brasileiro, nosso colaborador
OSMARINA
Telêmaco de Sá
Faz muito tempo, mas tenho-a vívida na memória. Cursávamos a mesma
classe, no mesmo colégio, Curso de Aplicação. Era alta para sua idade, de cor
preta e pelo que sabia, muito pobre. Mas uma coisa a distinguia de todos os
demais colegas, meninas e meninos: a caligrafia. Pois sua letra era impecável,
redonda, perfeita, a escrita uma espécie de modelo de sua própria
personalidade.
Nunca faltava a
aula e sua farda igual à letra, impecável. Tinha-se a impressão de que fora gomada
naquela hora, tal a brancura da camisa, sem dobra, os punhos limpíssimos.
Aliás, tudo nela era limpeza, organização, os lápis apontados, os cadernos, os
livros. Exemplar também era seu comportamento na classe e fora dela, no
recreio.
Onde Osmarina
teria aprendido aquilo tudo? Como seria sua família?
Era o que
costumava me perguntar por aqueles tempos, que hoje parece esfumaçarem-se, no
passado longínquo.
E pode-se dizer
que era um tempo onde o preconceito e a divisão social se arraigavam na
sociedade. Mas, parecia incrível, Osmarina não parecia sofrer nenhuma limitação
em relação à sua epiderme, pelo que podia aquilatar. Nunca vi ninguém
molestá-la, ao contrário, era tida como exemplo, na classe e em todo o colégio.
Um dia, lembro
que certa vez, em função de encargo escolar, fui visitá-la. Ela morava na
Camboa, nessa época um bairro dos mais pobres da cidade de São Luis. Não tinha
calçamento, as ruelas se enviesavam pelos
mangues, aqui e ali a deparar-se com o lamaçal gerado pela invasão
contínua da maré que, quando alta, alagava quase tudo. Daí porque muitos dos
casebres fincavam-se sobre palafitas.
Osmarina morava
num destes casebres, de chão batido invadido pela maré quando alta e na baixa,
o lamaçal à porta.
Foi então que
soube tudo ou quase tudo sobre ela, certamente ignorado por muitos de meus
colegas. Sua mãe era lavadeira e Osmarina a ajudava na labuta diária para sustentar
a casa, pois tinha irmãos menores, ela a primogênita da família. Ela mesma que
gomava sua farda para manter aquela aparência sempre limpa. Ajudava na cozinha
e cuidava dos irmãos menores.
Osmarina tinha
uma vida de sacrifício, pude perceber.
Passaram-se os
anos, o destino com seu périplo sempre repleto de surpresas e perplexidades,
nos separaram. A vida me transportou para fora do Maranhão, nunca mais em São
Luis retornei, a não ser a passeio, por alguns dias.
Onde estaria
Osmarina hoje?
Gostaria de saber. Será que por
esforço pessoal e vencendo todas as dificuldades possíveis, teria se formado e
hoje exerce
uma profissão? Professora, talvez?
Acredito que
seria uma boa professora. E vejo-a no quadro-negro escrevendo as lições a seus
alunos com aquela letra redonda, impecável, bonita, elegante.
Não quero
pensar coisa diferente, vida diferente, para aquela criatura de letra tão bonita,
letra e coração, cujas esperanças o destino, sempre inexorável na sua
contingência, tenha, por qualquer razão, deixado à margem do viver.
CDL/BSB, 9.06.15
- Nosso colaborador eventual
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