terça-feira, 5 de abril de 2022


 

HOMENAGEM A LYGIA FAGUNDES TELLES

 

 

 

 

Eu a vi pela primeira vez em São Paulo durante aqueles certames literários da Nestlé, creio pelos idos de 93. Do programa constavam palestras de Lygia e outras à época luminares das letras —  Clarice Lispector, Nélida Piñon, João Antônio, Carlos Heitor Cony, Luís Fenando Veríssimo, Ignácio de Loyola Brandão, Lya Luft, Ana Paula Machado e que tais.

Terminada a jornada, concluída o programa, dá-se a corrida dos repórteres e fãs, à busca da palavra dos escritores. E a mais assediada foi Lygia, ao redor de quem as pessoas acorriam, pressurosas para obter uma palavra a respeito do certame, inclusive eu mesmo que queria obsequiar-lhe com exemplar da revista Lavra, Ideias & Letras, que, à época, editava em Brasília. Ansiava por uma palavra da autora dos livros As Meninas e Ciranda de Pedra, então grandes sucessos livrescos.

De longe, eu aguardava que a aglomeração em torno dela arrefecesse e então pudesse trocar umas palavras com ela. Então vi que Lygia me olhou, ao ver-me afastado, adivinhando que eu quisesse falar-lhe. Respondi olhando-a, como que auscultando-lhe a angústia.

Enfim, pude falar-lhe, entregar-lhe exemplar da revista, a que ela me atendeu com quase doçura, sorridente, educadamente.

A lembrança do episódio ficou-me gravado até hoje, tantos anos são passados —- o seu olhar doce, o sorriso límpido, inteligente.

Agora nestes nossos velhos tempos pandêmicos, o mundo sob trâmites de violência, o Pais no aguardo de novas eleições — a notícia me açoita o espírito — Lygia Fagundes Telles faleceu no dia 3.4.22, domingo, aos 98 anos. Havia poucos dias, vi seu retrato nas redes sociais, uma senhora idosa, não desfeita ainda dos traços de candura e beleza.

Lygia Fagundes Telles foi uma das maiores escritoras do País. Obteve os mais importantes prêmios literários, inclusive o mais prestigiado galardão  de letras do mundo lusófono — o Camões, pelo conjunto de suas obras. Também foi a primeira escritora brasileira indicada para o Nobel de literatura.

Não há negar — nosso País acaba de perder uma das suas maiores representantes literárias, sem falar que o destino, sempre cruel, nos deixa órfãos de uma figura humana educada e culta, Lygia Fagundes Telles. Que sua alma, na medida de seus ideais intrínsecos que representam suas obras sirvam-lhe de escada em direção à morada celeste.

CDL/Bsb, 4.04.22

 

quarta-feira, 30 de março de 2022

 

A CIDADE DO SOL 

– UMA ESCRITA TERRORISTA

 

   

 


                                        Murilo Moreira Veras

 

O livro em nosso encontro hoje, 22.03.22, é A Cidade do Sol do escritor afegão Khaled Hosseini, autor também de O Caçador de Pipa, este best-seller de venda.

1.   Prólogo

 

Não li o livro anterior do autor, mas fui informado que era muito bom, embora a narrativa fosse triste. O presente não fica por menos. Não se trata de best-seller, estigma que, como apreciador de livros, acredito desvalorizar o mérito de uma obra, inobstante sua grande vendagem. Estranhável é seu título, inapropriado, substituído por A Cidade do Sol, acredito que modificado pelos editores, por ser mais palatável. Terá sido esse título dado para confundir com a obra medieva Cidade do Sol de Camponella? O título original em inglês é A Thousand Splendid Suns (Mil Esplêndidos Sois). De qualquer modo, fica o meu registro.

 

2.    Enredo

 

O autor escreve como historiador de seu País, o Afeganistão, tal a minudência de suas descrições, nomes de cidades, locais e nomes de pessoas. Como sabemos, esse País foi atravessado por inúmeras tragédias, a história de seu provo sofrendo grandes atrocidades. Foi lá que se escondeu Bin Laden o mentor da tragédia dos bombardeios que demoliram as Torres Gêmeas de Nova York, causando verdadeira hecatombe nos Estados Unidos.

Desenrola-se, assim, uma história muito triste — a vida de duas mulheres Mairam e Laila. A vida das duas se entrelaçam, o infortúnio de uma continuando no da outra, as duas cumprindo o mesmo destino, o de terem se casado obrigatoriamente com o mesmo homem — Rashid, indivíduo de caráter irascível, ligado ao tradicionalismo da cultura mulçumana. Sem falar que há uma diferença de idade muito grande entre as desafortunadas moças, Rashid com mais de 40 anos e elas ambas de 15 e 16 anos, praticamente adolescentes. Aliás, tais casamentos são permitidos na cultura oriental, desde priscas eras.

Preparem os lenços e segurem as lágrimas que a narrativa do autor é de cortar o coração. Parece que o sr. Husseini é uma espécie de Stephen King afegão. O autor usa a técnica do corte temporal, a passagem do tempo, como nos seriados, alternando a cronologia da história.

Primeiro é o drama de Mairam, filha de Nana e resultante de relação espúria com Jahl, que é casado com duas mulheres. Desprezada pela família principal, mãe e filha moram num subúrbio de Cabul, o pai homem de posses, inclusive dono de um cinema. Mairam adora o pai, mas ela não pode vê-lo todo dia. Ela quer estudar, mas não tem como, Jahl até que gosta da menina, apenas lhe traz alguns presentes. Mairam se desentende com a mãe, que diz que ela não tem futuro, que tem de se conformar. Por sua vez Nana, sua mãe, sofre de epilepsia, vive tomando remédios fortes, torna-se uma mulher desesperada. A filha, não suportando mais a situação, foge de casa, vai procurar a casa do pai, onde não é bem recebida, ele com filhos e filhas para educar. Ocorre o sinistro: Nana, a mãe, à falta da filha, se enforca. Enfim só há uma solução para a menina de 15 anos: se casar. E assim que, contra sua vontade, o pai a dá em casamento ao sapateiro Rashid, de mais de 40 anos, viúvo, mas com profissão e casa própria. No princípio, tudo parece bem, a menina sujeita ao sapateiro. Mas logo começam as brigas, Rashid insatisfeito com as tarefas dela, até quando começa a castigá-la com seu cinto, trancafiar a menina, principalmente quando grávida, em vez de menino, como ele queria, dá luz a uma menina, que morre ao nascer. É uma tragédia em cima da outra. E a este cenário familiar trágico se sobrepõe a guerra pela ocupação do Afeganistão, ora de comunistas, ora dos americanos e dos supostos nacionalistas — até a implantação no País do terrível regime dos talibãs.

Anos depois, outro drama. Desta vez é também de uma menina de 15 a 16 anos, Laila, bonita, saudável, inteligente. No meio de um conflito, no dia em ela e os pais iam se mudar da cidade, eis que uma bomba atinge sua casa e seus pais morrem estupidamente, apenas ela se salva. Mais uma vez os fios do destinam se deslindam e Laila é salva dentre os escombros nada menos que pelo sapateiro Rashid, que morava ali perto. Desamparada e com ferimentos leves, Rashid leva-a para sua casa, onde é tratada por Mairam, como se fosse sua filha. Passam-se algum tempo, Laila já recuperada ajuda Mairam nas tarefas de casa, às vezes chegam a se desentenderem. E vem mais tragédia. Rashid começa a se desgostar da situação, porque Laila está grávida de seu primeiro namorado, Tarik, que, por sinal, perdeu uma perna numa escaramuça anterior. Rashid se melindra com que os outros vão falar, ele não pode ficar sustentando mais uma mulher em casa, além disso grávida. Então ele sugere e põe em prática um plano: casar-se com Laila. Aliás boa solução, pois ele já vivia às turras com Mairam. Mesmo contra vontade, Laila aceita o nefando ato. Laila tem uma filha: Aziza. Rashid fica de novo irascível, sabe que não é dele, mas do antigo namorado de Laila, Tarik. Começa a maltratar também a segunda mulher. Vem outro filho: Zalmai, que ele passa a adorar, esquecendo a filha.

A história vai crescendo em ritmo alucinante, seja pelos horrores praticados pelos talibãs, seja na família de Rashid, suas duas esposas e filhos. Rashid cada vez mais intolerante, açoita as duas, só tem olhos para o menino. Agora sabe que Tarik, o primeiro namorado de Laila, está vivo, os dois estão se encontrando. Então, dá-se um gran finale — que não poderia ser senão o de um fim hediondo, lancinante, como o é toda esta história. Rashid num ataque de furor, quer esganar Laila, esta sem defesa, luta para sobreviver, então Mairam pega um ancinho e com toda a sua força o abate, duas vezes, matando o agressor. O resto é o imaginável como o fim dessa trágica história — Mairam é presa pelos talibãs e degolada em praça pública. Por fim, algumas páginas adiante para conter a tensão, o autor alivia o pobre leitor com alguns momentos de trêfega felicidade entre mortos e feridos.

 

3.    Alguma Crítica

 

A meu ver, o livro sr. Khaled não é um best-seller, porque sua escritura é realmente literária, escorreita, evidenciada na tradução primorosa de Maria Helena Rouanet. Vê-se-lhe bem urdida a trama, as descrições detalhistas, os personagens ao todo são redondos, plausíveis e bem estruturados na argamassa do romance. Poderíamos classificar a escritura do autor como enquadrada no veracismo, ou seja, espécie de ultrarrealismo, quase próximo ao terrorífico, digamos de Stephen King. É o estilo, por exemplo, do escritor brasileiro Rubem Fonseca e José Louzeiro, nos quais, torcendo-se as letras, elas respingam nada menos que sangue.

                                                         Bsb, 17.03.22

  

 

 

quinta-feira, 17 de março de 2022

 

HOMENAGEM Á MESTRA 

AMÉLIA NOGUEIRA

 

 

 

 


 

                                       Murilo Moreira Veras*

 

 

Quantos anos já se passaram — 76 anos talvez e ainda me recordo da imagem de minha mestra Amélia Nogueira. Era o exame de admissão, àquela época, rigorosíssimo para ingressar no Colégio Estadual do Maranhão, antigo Liceu Maranhense. Alta, modesta no vestir, cabelos longos e negros, olhar sempre doce, a combinar com seu sorriso franco. Às mãos pegadas aos livros e cadernos mantinha-os seguros, à guisa de bolsa. Todos nós nos levantávamos para cumprimentá-la, ela a mestra.

Não gostava de usar o quadro-negro, na sala engastado na parede, preferia escolher um aluno para escrever o que ditava, uma frase, um exercício. Tudo estava ali naqueles seus cadernos, impecavelmente encapados de papel pardo. As matérias principais eram português e matemática, esta sobretudo os problemas e respectivas soluções.

Durante dois meses, nós, os estudantes que desejavam ingressar no famoso educandário, frequentamos as aulas da Professora Amélia Nogueira — ouvimo-la discorrer sobre os pontos exigíveis no programa, a ensinar-nos a resolver problemas de matemática, tudo ali seguindo os seus fabulosos cadernos encapados, os quais eram seriados de acordo com a dificuldade dos problemas.

Se, ao fim desses dois meses os resultados do ministério da Professora Amélia Nogueira foram escassos e para muitos uma decepção, para mim serviu de exemplo de como vencer, ser aprovado em tão rigoroso exame — seja resultante dos luminosos cadernos da mestra ou da própria capacidade de como vencer uma dificuldade, com seus próprios recursos.

Nem por esse ou aquele motivo me deixaram de reconhecer o talento magnânimo da mestra, cujos ensinamentos se espelhavam magicamente através de seus elegantes cadernos — talvez a fonte de onde extraia sua elegância e o domínio de sua cátedra, reconhecida pelas levas e levas de estudantes desejosos de ingressarem no velho Liceu, tão decantado pelas hostes de alunos brilhantes que por ali passaram, em demanda do sucesso intelectual.

 

*Professor, escritor e editor.                         Bsb, 17.03.22