A
CIDADE DO SOL
– UMA ESCRITA TERRORISTA
Murilo
Moreira Veras
O
livro em nosso encontro hoje, 22.03.22, é A Cidade do Sol do escritor
afegão Khaled Hosseini, autor também de O Caçador de Pipa, este best-seller
de venda.
1. Prólogo
Não li o livro
anterior do autor, mas fui informado que era muito bom, embora a narrativa fosse
triste. O presente não fica por menos. Não se trata de best-seller, estigma
que, como apreciador de livros, acredito desvalorizar o mérito de uma obra,
inobstante sua grande vendagem. Estranhável é seu título, inapropriado,
substituído por A Cidade do Sol, acredito que modificado pelos editores, por
ser mais palatável. Terá sido esse título dado para confundir com a obra
medieva Cidade do Sol de Camponella? O título original em inglês é A
Thousand Splendid Suns (Mil Esplêndidos Sois). De qualquer modo, fica o meu
registro.
2. Enredo
O autor escreve como
historiador de seu País, o Afeganistão, tal a minudência de suas descrições,
nomes de cidades, locais e nomes de pessoas. Como sabemos, esse País foi
atravessado por inúmeras tragédias, a história de seu provo sofrendo grandes
atrocidades. Foi lá que se escondeu Bin Laden o mentor da tragédia dos
bombardeios que demoliram as Torres Gêmeas de Nova York, causando verdadeira
hecatombe nos Estados Unidos.
Desenrola-se, assim,
uma história muito triste — a vida de duas mulheres Mairam e Laila.
A vida das duas se entrelaçam, o infortúnio de uma continuando no da outra, as
duas cumprindo o mesmo destino, o de terem se casado obrigatoriamente com o
mesmo homem — Rashid, indivíduo de caráter irascível, ligado ao
tradicionalismo da cultura mulçumana. Sem falar que há uma diferença de idade
muito grande entre as desafortunadas moças, Rashid com mais de 40 anos e elas
ambas de 15 e 16 anos, praticamente adolescentes. Aliás, tais casamentos são
permitidos na cultura oriental, desde priscas eras.
Preparem os lenços e
segurem as lágrimas que a narrativa do autor é de cortar o coração. Parece que
o sr. Husseini é uma espécie de Stephen King afegão. O autor usa a técnica do
corte temporal, a passagem do tempo, como nos seriados, alternando a cronologia
da história.
Primeiro é o drama de
Mairam, filha de Nana e resultante de relação espúria com Jahl, que é casado
com duas mulheres. Desprezada pela família principal, mãe e filha moram num
subúrbio de Cabul, o pai homem de posses, inclusive dono de um cinema. Mairam
adora o pai, mas ela não pode vê-lo todo dia. Ela quer estudar, mas não tem
como, Jahl até que gosta da menina, apenas lhe traz alguns presentes. Mairam se
desentende com a mãe, que diz que ela não tem futuro, que tem de se conformar.
Por sua vez Nana, sua mãe, sofre de epilepsia, vive tomando remédios fortes,
torna-se uma mulher desesperada. A filha, não suportando mais a situação, foge
de casa, vai procurar a casa do pai, onde não é bem recebida, ele com filhos e
filhas para educar. Ocorre o sinistro: Nana, a mãe, à falta da filha, se
enforca. Enfim só há uma solução para a menina de 15 anos: se casar. E assim
que, contra sua vontade, o pai a dá em casamento ao sapateiro Rashid, de mais
de 40 anos, viúvo, mas com profissão e casa própria. No princípio, tudo parece
bem, a menina sujeita ao sapateiro. Mas logo começam as brigas, Rashid
insatisfeito com as tarefas dela, até quando começa a castigá-la com seu cinto,
trancafiar a menina, principalmente quando grávida, em vez de menino, como ele
queria, dá luz a uma menina, que morre ao nascer. É uma tragédia em cima da
outra. E a este cenário familiar trágico se sobrepõe a guerra pela ocupação do
Afeganistão, ora de comunistas, ora dos americanos e dos supostos nacionalistas
— até a implantação no País do terrível regime dos talibãs.
Anos depois, outro
drama. Desta vez é também de uma menina de 15 a 16 anos, Laila, bonita,
saudável, inteligente. No meio de um conflito, no dia em ela e os pais iam se
mudar da cidade, eis que uma bomba atinge sua casa e seus pais morrem
estupidamente, apenas ela se salva. Mais uma vez os fios do destinam se
deslindam e Laila é salva dentre os escombros nada menos que pelo sapateiro
Rashid, que morava ali perto. Desamparada e com ferimentos leves, Rashid leva-a
para sua casa, onde é tratada por Mairam, como se fosse sua filha. Passam-se
algum tempo, Laila já recuperada ajuda Mairam nas tarefas de casa, às vezes chegam
a se desentenderem. E vem mais tragédia. Rashid começa a se desgostar da
situação, porque Laila está grávida de seu primeiro namorado, Tarik, que, por
sinal, perdeu uma perna numa escaramuça anterior. Rashid se melindra com que os
outros vão falar, ele não pode ficar sustentando mais uma mulher em casa, além
disso grávida. Então ele sugere e põe em prática um plano: casar-se com Laila.
Aliás boa solução, pois ele já vivia às turras com Mairam. Mesmo contra
vontade, Laila aceita o nefando ato. Laila tem uma filha: Aziza. Rashid fica de
novo irascível, sabe que não é dele, mas do antigo namorado de Laila, Tarik.
Começa a maltratar também a segunda mulher. Vem outro filho: Zalmai, que ele
passa a adorar, esquecendo a filha.
A história vai
crescendo em ritmo alucinante, seja pelos horrores praticados pelos talibãs,
seja na família de Rashid, suas duas esposas e filhos. Rashid cada vez mais
intolerante, açoita as duas, só tem olhos para o menino. Agora sabe que Tarik,
o primeiro namorado de Laila, está vivo, os dois estão se encontrando. Então,
dá-se um gran finale — que não poderia ser senão o de um fim hediondo,
lancinante, como o é toda esta história. Rashid num ataque de furor, quer
esganar Laila, esta sem defesa, luta para sobreviver, então Mairam pega um
ancinho e com toda a sua força o abate, duas vezes, matando o agressor. O resto
é o imaginável como o fim dessa trágica história — Mairam é presa pelos talibãs
e degolada em praça pública. Por fim, algumas páginas adiante para conter a
tensão, o autor alivia o pobre leitor com alguns momentos de trêfega felicidade
entre mortos e feridos.
3. Alguma
Crítica
A meu ver, o livro sr.
Khaled não é um best-seller, porque sua escritura é realmente literária,
escorreita, evidenciada na tradução primorosa de Maria Helena Rouanet.
Vê-se-lhe bem urdida a trama, as descrições detalhistas, os personagens ao todo
são redondos, plausíveis e bem estruturados na argamassa do romance. Poderíamos
classificar a escritura do autor como enquadrada no veracismo, ou seja,
espécie de ultrarrealismo, quase próximo ao terrorífico, digamos de Stephen
King. É o estilo, por exemplo, do escritor brasileiro Rubem Fonseca e José
Louzeiro, nos quais, torcendo-se as letras, elas respingam nada menos que
sangue.
Bsb, 17.03.22