ORA, DIREIS, FALAR
DE POETAS E POESIA...
Murilo Moreira Veras
A poesia tem-nos propiciado muita euforia. A poesia nos adverte sobre a beleza das coisas, traduzindo os fatos pelo seu lado inédito de realismo.
A poesia nos encanta, ela traduz as veredas da alma pelo encantamento das palavras, muitas vezes oculto no enrubescer dos sentimentos.
A beleza por assim dizer rejuvenesce a alma, o que é intimidade vem à flor da pele devido sua técnica própria inspiradora.
Falar de poesia é poematizar a alma, fazendo transpirar a inspiração do espírito.
Como voz da intimidade, corresponde ao outro lado do ser-em-si, imantizando-se como ser-de-si — é o ser do verbo, o verbo que tramita entre o ser-do-ente para o ente-do-ser.
A poesia mantém-se sempre impoluta, mesmo quando transgride a veracidade do ser, sua vigência permeia a eternidade do próprio ser no seu casulo existencial.
A poesia é fronteiriça da verdade ou da epifania, tem condutividade própria transcendente. Pode tornar-se o sal do ethos humano, porque transcende a mediocridade do efêmero, para transformar-se no espaço onde vige a transcendência.
Nunca poderá ser apócrifa, pois prende-se à florescência do edênico.
Ser poeta é decifrar a esfinge do tempo, frutificar as virtudes de uma natureza que espelha a pureza da existência.
O fluir da poesia é como desvendar a existência da palavra, fazendo-a haurir a imanência do existir — não que a alocução poética se desvincule do mundo como instrumento do próprio mundo poetizado.
Pois a poesia erotiza as belezas do mundo, ela própria dom que se problematiza pelas verdades declamatórias do mundo existencial. Sim, porque expõe as singularidades dos espinhos da vida, coisas e fatos, em si, tornam-se complicados e nos impedem que visualizemos seu lado belo, apodieticamente esplendoroso — o lado melífluo dos fatos e das coisas.
A linguagem poética transcende o paladar do cotidiano, é transgressiva devido suas imbricações de deleite e variações vernaculares diferentes do manuseio comum da vulgaridade.
A poesia não faz os poetas, os poetas é que fazem a poesia, cada qual faz a sua poesia — a poesia de cada qual. Sim, o poeta constrói o que deve contaminar sua alma — a alma do poeta, a alma de seu mundo.
Shakespeare poetizou sobre os fatos dos homens e sua corte. Não é igual a Dante Alighieri que se inspirou na vida e conduta de seus compatriotas, julgando-os, no entanto, à luz da vendeta da história.
Carlos Drummond de Andrade encontrou uma pedra no seu caminho poético e satirizou pecados e virtudes com sua mão esquerda de anjo.
Enquanto sob o furor das caravelas nas quais os navegantes singravam os oceanos, Luiz de Camões profetiza a descoberta de mundos desconhecidos, ao evocar suas aventuras em versos imortais.
Em versos íntimos, Rilke se envolve na alcova de seus sonhos, sublimando a vida interior.
Já Jorge Luís Borges, cego, constrói um universo próprio de livros nos quais descobre tesouros escondidos.
Lord Byron apaixona-se pela arte de amar e glorifica as virtudes do prazer, enaltecendo o caráter da amizade perenizada.
Ao lado de Mary, sua mulher, Shelley canta em versos oníricos a beleza da vida.
Homero, o poeta, que talvez nunca tenha existido, imortaliza os heróis mitológicos, recriando suas estapafúrdias vidas em inolvidáveis epopeias.
E o que dizer de Virgílio que, em sua epopeia Eneida, é considerado o fundador da latinidade?
Em contrapartida, o contemporâneo maranhense Nauro Machado revitaliza a poesia na intimidade de seu Funil do Ser.
Ao contrário da americana Silvia Plath que, enrustida no casulo de sua intimidade egocêntrica, suicida a si e seus versos.
Antes, à sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais, Casimiro de Abreu, o poeta da saudade, relembra sua felicidade brejeira em lindos e ritmados versos.
Na mesma terra de Vera Cruz, Machado de Assis, símile do que já fizera no romance e nos contos, elege-se também poeta com escorreitos versos.
E das estepes russas, uma voz iracunda reproduz em versos modernistas, Maiakovski defende a revolução comunista, mas depois, traído pelos líderes do partido, se suicida.
Eis que do seio da França embriagada pelo ideal de Parnasso, nasce a poesia lacustre de La Martinne, enfatizando a natureza.
No mesmo passo, nas plagas do novo mundo brasileiro, eis a poesia também parnasiana que se anuncia nos primorosos sonetos de Olavo Bilac, a poetizar o encanto das estrelas.
Outra voz da Rússia nos encanta — os versos de Victor Evituchenko que os declamava sob o aplauso de multidões.
E porque não lembrar o francês Beaudelaire cujos versos violavam a inocência do mundo acadêmico.
Ah, quantas vozes brasileiras não decantaram sonhos, ilusões e aventuras, ilustrando o mundo poético com versos, ora puros ora virulentos, com suas novas estéticas para o Ser da poesia.
Cecília Meirelles com seu cancioneiro sobre o lendário Tiradentes e outros cânticos primorosos que seu estro nos legou. Moacyr Félix, autor de poesia evocativa e apologética, com que sugere a reconstrução do mundo sob nova visão.
Já provindo dos canaviais pernambucanos, ecoa a voz de João Cabral de Mello Neto com seu contundente Morte e Vida Severina, enquanto na mesma linha popular erudita brilha Ariano Suassuna, com sua poética barroco-pitoresca.
Recorde-se agora Márcio Catunda com sua poesia diplomática, mesmo falando sobre escombros e construções, a sugerir a reorganização ética do ser humano.
Na mesma linha, o diplomata João Guimarães Rosa, que produziu o fabuloso Grande Sertão Veredas, nos brinda com o notável Magma, em que se volta para si mesmo com uma poesia personalista.
E não podemos esquecer da Ilha Rebelde, São Luís do Maranhão, cidade supostamente fundada pelos franceses em 1612, de onde de surge a poética modernista de Ferreira Goulart , que se arvorou surpreender a arte com seu impactante Poema Sujo.
Sim, falar de poetas e poesia é salutar, ameniza as asperezas da vida e conforta nosso estro interior, enquanto hoje, infelizmente, vige a vastidão do ignóbil, o belo transformado num mar de excentricidades, mariolas frívolas, a gerar a opacidade acadêmica, influenciada pelo tecnicismo agnóstico.
CDL/Bsb, 28.12.21