RESSAIBO DOS FATOS E DAS COISAS
Murilo Moreira Veras
Noutros tempos, os quais não voltam mais, esse cronista pensou escrever sobre a diuturnidade, fatos corriqueiros, coisas acontecíveis do dia a dia, de somenos, mas interessantes. Não fez mais do que quatro ou cinco linhas num tabloide estudantil, feito à mão.
Sim, coisas do passado, esse passado sombreado de nuvens, algumas letras e um sol brilhando em passos, ainda trôpegos, mas sinceros, vívidos. Era a adolescência, com seus pruridos de encanto e fantasia.
Os amigos de verdade eram poucos, escolhidos naquele verdadeiro espaço de rapazes solertes, barulhentos e infantis, ginasianos do famoso Liceu Maranhense. Depois, quatro anos de estudos, subia-se a escadaria que dava para o andar de cima — o máximo dos máximos, a etapa final, o científico, agora rapazes e moças, estas vindas de colégios femininos.
O folguedo maior, que se destacava do buliçoso convívio das garotas, era, nos intervalos mais longos, dar uma volta na Praça Gonçalves Dias, cinco ou seis quarteirões do Liceu. Comer melancia ou simplesmente ficar a toa e desfrutar a brisa do mar, sob o olhar vetusto do poeta indianista Gonçalves Dias aboletado na sua torre de ébano, ali, no meio de sua praça.
De tarde, ali pelas três ou quatro horas, o sol já morno, o melhor era a turma se encontrar todos os dias em frente à Livraria Estudantil, na praça João Lisboa — e ficar contando lorotas. Muitas vezes o tema era o futebol, que a maioria gostava e vibrava em favor de seu time predileto. Mas havia os que o assunto era os temas gerais, a vida alheia, os namoricos, cinema, literatura.
São recordações que se esvaem no tempo. E nos vem à telha, onde estarão esses velhos camaradas, desaparecidos na linha do tempo, passaram desta vida para a melhor?
E é assim que a vida se desvela, um fio que se desenrola, desenvolto, inescapável no seu trânsito, cujo fim desconhecemos.
Esses amigos, velhos camaradas de conversa, falastrões às vezes, todos parecem que se foram. Um ou outro o destino nos faz encontrar, inesperadamente. Trocamos algumas ideias e desaparecemos em seguida.
São como resquícios do tempo, da vida, fatos e relatos que se desenrolam, perdidos e esquecidos.
Então é à margem desse tecido temporário que nos vem à mente aquele estouvado aforismo, desenterrado da mente, onde jazia escondido — esses Ressaibos dos Fatos e das Coisas, justo agora quando este já vetusto cronista do espaço e do tempo, desfia esses pensamentos.
Onde estão esses companheiros, não o sei, desapareceram pelos umbrais ignotos desta vida. Então me vem à mente aquele filete de pensamento que ousei revolver da mente, uma fita velha de lembrança desse já algo defasado escrevinhador, algo que vem à mente, sempre me enleva e me faz crer que ainda vale a pena viver, assim como sonhar e escrever — é este soneto de Olavo Bilac, quem tiver ainda ouvido ouça e coração não deixe nunca de amar:
VIA-LACTA
Ora (direis) ouvir estrelas!
Certo
Perdeste o
senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las,
muita vez desperto
E abro as janelas,
pálido de espanto...
E conversamos
toda a noite, enquanto
A Via-Láctea, como um
pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol,
saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu
deserto.
Direis agora:
"Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que
sentido
Tem o que dizem, quando
estão contigo?"
E eu vos direi:
"Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter
ouvido
Capaz de ouvir e de entender
estrelas.
Bsb, 31.12.23
Nenhum comentário:
Postar um comentário