quinta-feira, 12 de maio de 2022

 



AS MENINAS REBELDES

                  

                              Murilo Moreira Veras

 

O livro em discussão no próximo dia 26 em nosso Clube do Livro é As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, edição da Companhia das Letras, 2009. Com este são três livros que lemos da autora no Clube. Como é sabido, Lygia faleceu há pouco, tendo sido grande perda nas letras nacionais, ela com 104 anos.

 

1.   Prólogo

 

Este livro foi escrito em 1973, a autora com 55 anos, em plena maturidade, em idade e espírito. Imagina-se que a autora o escreveu sob a atmosfera e cenário do chamados “anos de chumbo” da história política do País — epíteto que lhe tem dado a esquerda para o período do governo de Garrastazu Médici (1969-74). Tirante algumas exceções, artistas e escritores faziam coro contra o governo e a chamada Revolução de 64. Decantava-se a quatro ventos que vivíamos sob uma ditadura de ferro, não importa se o País recebesse benefícios, em economia e atualização. É neste clima e sob essa atmosfera, gerada inclusive pelos grupos subversivos que faziam ações terroristas em diversos recantos do País, que a autora Lygia Fagundes Telles escreve essa novela de 279 páginas. Certamente para acompanhar o séquito de alguns intelectuais que haviam aderido às ideias que diziam mais atualizadas e revolucionárias, provindas da Revolução Cubana, o mundo a encaminhar-se para uma etapa, que diziam progressista e libertária.

 

2.    Enredo

 

Em depoimento, a autora diz que partiu da realidade para a ficção. Trabalhou durante três anos na confecção da novela. É parte da vida de três personagens: Lorena Vaz Leme, Lia de Melo Schultz e Ana Clara Conceição. As três vivem hospedadas num pensionato das freiras Santa Marcelina, em São Paulo. Lorena é a mais intelectual delas, de família rica e tradicional, com propriedades de terras; Lia às vezes chamada Lião, se envolve em luta armada contra a suposta ditadura  junto com Max, seu amante, mas que ainda continua virgem e Ana Clara, a mais bonita de todas, mas detraqué, dependente de droga. Traduzir o imbróglio das três meninas rebeldes, o fio da meada narrativa criada pela autora é que se constitui um problema para o pobre do leitor. Sim, porque a autora utiliza o aclamado monólogo interior, na verdade o famigerado fluxo de consciência (streams of consciousness) utilizado por certos escritores, à guisa de serem  mais modernos que os outros. No pensionato, destaca-se a presença de Madre Alix, que em algumas ocasiões aconselha as três meninas, embora não as queira convertê-las. Elas, as meninas, são todas desmioladas, matriculadas em faculdades, mas pouco frequentam as aulas. Não sofrem restrição e fazem o que lhes dá na telha. Envolvem-se com namorados. No meio de toda essa balbúrdia, através de monólogos intermináveis, o leitor se perde nesse verdadeiro cipoal de pensamentos e elucubrações das três personagens, ora é fala de Lorena, ora é a de Lião se agatanhando com os amantes, cujo pensamento se imbrica com o de Ana Clara e de Lorena, a ricaça que decide desligar-se de sua prole. Como se diz em francês o enredo é um mélange, espécie de desbragamento orgíaco literário, cuja trama parece se dissolver num tropel olímpico de ideias e pensamentos.

 

3.    À Guisa de Apreciação

 

Haja leitura, haja entusiasmo, haja ânimo para desembrulhar essa narrativa. Que verdade seja dita, de Lygia, a escritora que morreu centenária, prefiro os seus contos curtos, mas palatáveis em gênero, número e grau. A autora — penso eu, com a devida vênia — enveredou-se no cipoal literário do fluxo de consciência, aquele modismo de uso e abuso de autores que se autorrotularam, supermodernos, a partir de James Joyce, Virgínia Woolf, William Faulkner, Marcel Proust, Edouard Dujardin. Também na mesma linha se acham José Saramago, Clarice Lispector e Hilda Hilst — esta amicíssima de Lygia. Arrisco a dizer que, nesse livro, a autora quer nos alertar sobre os problemas do mundo moderno. Sim, mas sua ótica é ideológica. Deixa-se imbuir de todos aqueles refrões esquerdistas, àquela época servindo como isca, principalmente ao público jovem, desorientado diante dos acontecimentos. Os militares — os mesmos que conseguiram evitar que o marxismo terrorista tomasse conta do País — não tiveram a devida sensibilidade de orientar a juventude, ao contrário tratou os jovens como também subversivos. Não tardou para que os  chamados intelectuais, os da linha esquerdistas, se rebelassem, quase em massa. Lygia deve ter ido também na onda.

À guisa de exegese, penso que as três meninas representam as três classes sociais: Lorena, é a classe alta, que esbanja arrogância, enquanto quer se alinhar às outras, ombreando-se com as outras classes; Ana Clara é a classe média que não tendo esperança nem força moral e econômica para fazer o contrapeso social, desilude-se e entra no mundo da droga; enquanto Lia, a classe mais baixa, revolta-se contra as injustiças e os desmandos da política, apelando  para a força bruta, o terrorismo — não é atoa que seu amante se chama Max, de Marx.

Não dou descrédito ao livro de Lygia, nem ouso criticar seu talento literário. Sob minha ótica, sempre penso na literatura como arte, até certo ponto, sob a égide da ética e da estética. A atividade literária tenho-a sempre com a finalidade de elevar o sonho humano, portanto não me encho de orgulho de dizer isto — mas o ofício de escrever deve sempre que possível desviar-se da leviandade e do desconstrutivismo.

                                                  Bsb, 12.05.22  

 

 

 

                           

 


sexta-feira, 6 de maio de 2022


 

                                        DIA    DAS    MÃES

 

 

Ser mãe é desfibrar

fibra por fibra o coração.

Isto ou aqueloutro, sempre

o deslindar do coração,

as fímbrias cordas

da emoção.

Mãe é mãe, sempre,

a desfiar todos os liames

que os prendem à devoção.

Mãe é aquela escondida

que afoga às vezes o próprio sonho

a nos desvendar o feitiço

de uma ilusão.

Ser Mãe é assim —

ser tudo para nosso bem.

É a mão que castiga

e logo nos perdoa,

fio da alma, o aconchego do olhar

cansado, a palavra velada

nesse seu amor de mãe.

É a esperança sempre inaudita,

beleza sempre bendita,

 minha Mãe, nossa Mãe

— Maria, a Mãe de todas as Mães.

CDL/Bsb, 8.05.22

 

terça-feira, 3 de maio de 2022

 

 O HOMEM-DE-UM-OLHO-SÓ

 


 

 

Ele só tem um olho — é O Homem-de-um-olho-só. Acontece que todos naquela pequena cidade são cegos. Assim, só ele, O Homem-de-um-olho-só, enxerga. Então, tudo o que os cegos veem é o que ele diz ver.

— O que está vendo, ó homem? — pergunta um cego.

— Vejo que temos um dia de sol. A empregada do vizinho, também cega, vende frutas na barraca de seu pai.

— E o pároco, já passou para a missa?

— Está passando agora, com sua bengala que lhe indica a direção

— E você, Homem-de-um-olho-só, está vendo tudo direito, com seu olho só?

— Muito bem, meu caro, tudo vai na santa paz.

— Nada de novo no front?

E o Homem-de-um-olho-só, com seu gesto  sarcástico de tudo entender, mesmo com um olho só desvendando o que se passa ao redor, a seu modo e do jeito que quer, responde:

— Tudo legal, companheiro, nada de novo sobre a terra.

O padre já entra na pequena igreja, cumprimenta sem ver os que também não o veem.

Enquanto isso, lá fora, a vida da cidade se desenrola aos trancos e barrancos. Um cego é atropelado por um veículo dirigido por um cego. Um menino matreiro e também cego joga bola ao léu, acaba atingindo uma vidraça, o proprietário, cego, ouve os estilhaços e reclama aos berros.

Um cego logo reclama:

— Que confusão é esta, Homem-de-um-olho-só?

— Nada, homem, coisinha desimportante...

No banco da praça, outros cegos, reunidos, conformados com sua própria cegueira, deixam-se levar pelo que um só olho vê, mesmo que lhe falte o outro.

  E assim se arrasta a vida daquele pequeno lugar, sem outras delongas que as que lhes contam o Homem-de-um-olho-só. O que ele diz, dito está.

CDL/Bsb, 3.05.22