sábado, 27 de janeiro de 2024

 

            O CARRO  À  FRENTE DOS BOIS

            E OUTROS DELÍRIOS ANDANTES

 

                   Esqueçamos a desfaçatez da mídia histriônica atual e,  neste prelúdio momesco, aproveitemos para reler alguns clássicos de nossa literatura universal. Permitam-me escolher dois — Dom Quixote de La Mancha de Miguel de Cervantes (1547-1616) e Os Lusíadas de Luís Vaz de Camões (1524-1580). Ambos constituem obras-primas no conceito mundial, pilares dentre outros pilares a enobrecerem o cânone universal.

Nada mais salutar, até mesmo para nossa saúde mental, que nos deleitemos o espírito com essas leituras, diante de tanta desesperança nos dias atuais, desacertos, atrocidades, declínio geral e  violência, de todos os meios e formas, inclusive o ataque à individualidade, vez em quando ocorrida pelos meios políticos e até jurídicos.

Enquanto isso, inventores avançam com seus bricabraques artificiais, os mais espantosos por sinal, embora nenhum deles tenha ousado conseguir a felicidade almejada pelos tecnólogos em sua busca tenaz pela realização da panaceia do Novo Mundo, apregoada pele cientificismo e seus artífices — Elon Musk e seus sequazes.

Retornemos ao classicismo universal de Cervantes e Camões. Ambos viveram no século XVI, antes do chamado século das luzes, o tal  iluminismo dos enciclopedistas Diderot, Rousseau, D’Alembert, Montesquieu e Voltaire.

Cervantes cria aquele personagem fabuloso, Dom Quixote de La Mancha, defensor dos fracos e oprimidos de seu tempo, fazendo justiça com suas próprias mãos. Já Camões promove os feitos  do conquistador Vasco da Gama  na construção do império lusitano, por mares nunca antes navegados — verdadeira odisseia dos “barões assinalados”.

Recapitulemos os fatos em confronto com nossa realidade. Será que essas duas visões, de certo modo simbólicas, não têm muito a ver com nosso tempo, verdadeiro campo de sonhos de incertezas e decepções?

Dom Quixote não seria nosso Vingador do Futuro — aquele que combateria a maldade humana, defensor perpétuo dos “pobres e oprimidos,”  ou seja, o restaurador do inaudito Mundo Novo de Aldous Huxley?

Ora, o Cavaleiro da Triste Figura na verdade sofria das faculdades mentais, desmiolado por ter lido em demasia os feitos extraordinários dos chamados Cavaleiros Andantes, a literatura bizarra de certos autores medievais.

Então a leitura de livros pode ser perigoso, leva à loucura — é o que se depreende, portanto deve ser vigiada. Hitler mandou queimar todos os livros que contrariasse seu regime terrorista. Os tempos mudam, os perigos são os mesmos, às vezes piorados. Os sonhos podem se transformar em utopias ou distopias degeneradas.

Observemos os sonhos em Os Lusíadas. As peripécias dos lusitanos pode enlouquecer os saltimbancos do futuro com poética enganadora. Não seria uma advertência às alucinantes propostas da IA e seus articuladores — Elon Musk e outros artífices?

Então estamos num beco sem saída. Se nos tornarmos um Dom Quixote, criamos um mundo utópico, buscando salvar a humanidade — o que implica a criação dos mitos terríficos, os de Hitler, Stalin e Mao Tse Tung. Ao contrário, se nos tornarmos ávidos de aventuras faustosas, como as de Os Lusíadas, alcançamos o Eldorado ou a Cidade do Sol de Campanela,  a Utopia de Thomas More ou a mais recente A Ilha, de Huxley.

A solução talvez seja unânime. Ler de novo os alfarrábios, os luminosos e verdadeiros humanistas Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho e agora ressuscitar do silêncio Raimundo Lúllio, esses baluartes do saber, da ética e da estética. Esses alfarrábios, por incrível que pareça, respondem pela ascensão do cristianismo, o maior e mais extraordinário processo de humanização do humanoide, inclusive a reabilitação  das mentes. O resto é o resto, como diz a sabedoria popular — colocar o carro à frente dos bois.

Às vezes caminhamos assim: o supérfluo à frente do todo e o carro civilizatório viajando às avessas. Falha o poeta lusitano quando canta “Viajar  é preciso, viver não é preciso”. Não, frutuoso vate — viver é preciso. O carro de nossa experiência é protegido pela direção tomada com Justiça e Amor, desde que capitaneado pelo boi da Sabedoria e da Fé.

CDL/Bsb, 27.01.24

   

 

 

 

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

 

        MACHADO NO SÉCULO 21

 

 


 

Pois é o que lhes digo, os grandes escritores tornam-se imorredouros — por isso é que são chamados de clássicos. Como o foram Shakespeare (que a nosso ver não era um só), Cícero, Cervantes, Camões, Dickens e outros dessa linhagem, dentre os quais, não há negar urge colocar o nosso Machado, o Bruxo do Cosme Velho.

Como sabemos, Machado não chegou a 60 anos e sua grade curricular de escritura é vasta. Só crônicas ele escreveu 500. Era um prodígio o grande escritor da obra prima Dom Casmurro.

Nesse interregno dos dias carnavalescos, calha-nos a ideia de fugir não só dos delírios de Momo, também do marasmo em que nos mergulhamos hoje, sem saída honrosa pelo o que se vê e deglute, basta consultar nosso cenário político e et allia.

Então me valho do nosso Machado e suas miraculosas crônicas de antanho, ai pelos idos de 1888 no seu livro Bons Dias,  ainda escondido das livrarias devido os best-sellers como Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cuba.

Ora, como a ordem do dia hoje é falar da internet, a via mais avançada do mundo e o fetiche que ela provoca, principalmente entre os nossos filhos e netos, oriundos do big boom, encantados e talvez iludidos por esse avatar que é tal da IA, salvadora do mundo. Pois agora esses nossos amiguitos que se dizem donos de tudo, inclusive da própria verdade, quer nos criar uma nova língua — a linguagem mágica da internet. E lá vem o besteirol, a macular  nossa indefesa  Flor do Lácio, o maravilhoso veículo linguístico milenar em que se expressou Camões, Antônio Vieira, Camilo Castelo Branco, também João Francisco Lisboa, Castro Alves e nosso formidável Machado...

Essa nova língua tem o apelido de Net Speak e é acompanhada de signos, emogis, gifs e memes. O tal dialeto eletrônico difere da norma culta, daí surgindo os super neologismos — avatar, deletar, bug e baixar. É a nova língua usada no Maravilhoso Mundo Novo  pelo Grande Irmão de Aldous Huxley.

Sabem qual é o melhor antídoto para essa língua novidadeira? Pois tomem nota, senhores e senhoras — é ler nosso Machado. Olha quanta beleza de estilo. O homem não fraqueja, em 1888, quando escreveu é como trasladá-lo para nosso século, nossos dias. Ali, Machado descreve a vida como ela era — mas é incrível como as coisas não mudaram muito. São crônicas que escreveu sobre tudo, política, crimes ocorridos, comportamentos, vaidades e veleidades. O Machado olhava a vida societária de ontem com seus defeitos, as picuinhas, logros e malogros, não como um carcereiro, um vigilante, a contabilizar erros e defeitos, mas um visionário a nos propiciar um mundo em que todo ser humano não deixa de ser igual em toda parte e qualquer época — um ser frágil, imprevisível, mercê das agruras do tempo e do vento, capaz de sorrir, chorar e se vingar de si e dos outros e, por incrível que pareça esse ser, tão esdrúxulo, foi posto no mundo pelo Criador para sofrer, mas também amar.

Machado acaba de nos lavar a alma e nos  faz ainda crer que vale a pena viver.

CDL/Bsb, 23.01.24

 

 

 

 

 

 

sábado, 20 de janeiro de 2024

 

              SONHO OU REALIDADE

              —  EIS   A   QUESTÃO

 

 

 


 

Era um sonho ou a realidade? Às vezes, sonho se confunde com a realidade. Um homem estava à minha frente e se dizia uma pessoa chamada Lula. Tinha a barba dele, o cabelo desgrenhado e falava para mim.

— Estou cansado de política e pretendo abandonar tudo isso. Sabe — continua ele com o mesmo sotaque do presidente — a gente não obtém tudo o que quer.

Sinto que ele está querendo se confessar, por para fora o que lhe vai no crâneo.

— Sabe, eu fiz o que pude, porque não tenho grandes letras. Não passo  de um simples trabalhador sindicalizado. Eu achava que governar um país era como governar um sindicato, um bando praticamente de analfabetos.

Olha de soslaio para mim que o escuto com certa atenção. Faz uma pausa, como para domar o fôlego, pigarreia.

— Sabe, não tenho letras, mas modéstia aparte sou bom de conversa. Sabe como é, falar com esse pessoal, levar a melhor no papo, isso eu sei fazer, a vida me ensinou.

Continuo imóvel a escutar aquele homem que agora é o presidente da  República. Está malvestido, nada diz que ocupa esse tão importante cargo.

— É isso ai, companheiro, fui como que chutado para esse cargo. O povão parece que quis que eu fosse presidente.

Faz uma pausa para tomar fôlego, vez em quando funga.

— ... sabem, a gente é levado nesse país pra impressionar, tem gente que gosta disto. Sabe, muita coisa que fiz foi pra agradar os outros, levados pelos amigos, os companheiros de partido.

Continuo calado e ele parece se aproveitar para desabafar.

— ... os companheiros me botaram aqui. Pra mim é o mesmo que um sindicato, falo uma porção de besteiras e os companheiros aplaudem. Sei lá, na minha cachola de trabalhador o Brasil é um grande sindicato, os brasileiros não passam de trabalhadores de sindicato. A gente faz tudo pra eles, pede direitos e mais direitos, sabe, os trabalhadores são sacrificados, precisam ser recompensados...

Onde estamos é uma cafeteria, mas parecemos sós. Ele continua tomando seu cafezinho, enquanto continuo calado, apenas escutando seu desabafo.

— É isso, companheiro, tô mesmo muito cansado, sabe, viajei o mundo inteiro falando desse país. Não sei, ninguém me leva a sério. Esse povo ai fora é muito besta. O que querem  é toma lá da cá, para eles somos um país de miserável. Eu quero dizer, sabe, que nós somos ricos de natureza, possuímos os maiores depósitos de água do mundo, mas nada, eles só querem leva a melhor, a gente tem de conversar com esses gringos e eu não sei uma palavra na língua deles. Então, pra me vingar, eu faço galhofa deles. Sabe, certa vez nos Estados Unidos o Obama me chamou: You are the guy . Disseram depois que isto queria dizer — Você é o cara, um idiota.

Ele dá uma gargalhada, enquanto fico a olhar aquele sujeito que diz ser o presidente do País, a roupa em desalinho, espécie de boquirroto, ali à  minha frente e eu a escutá-lo sem dizer nada.

— Sabe, nessa eleição só fiquei rindo desse pessoal que não gosta de mim, que sou isso, que sou aquilo, o certo é que hoje sou o presidente desse País.

Mas isto não é um sonho, no sonho as pessoas mortas não falam, quando o fazem é mal sinal.

 

                  ——  o  ——

 

Nesse estranho sonho — que talvez nem tenha sido um sonho — dou tratos à bola e fico imaginando como o mundo tem dado tantas voltas, é aquele pensamento shakespeareano de há mais coisa entre o céu e a terra do que pensamos com nossa filosofia, não a vã filosofia, como pensam alguns apressados. São as tais voltas no parafuso, os males e os bens se repetem tantas são as voltas que o parafuso da incerteza nos revolve e nos engana.

Ora, também disse certo escritor fantasista que nossa realidade não existe, vivemos todos, o planeta de que tantos nos orgulhamos, num buraco-negro ou então aquele velho enciclopedista que inventou outra norma proveniente lá do iluminismo pós-napolitano e seus desvarios de conquista.

Vem-nos à baila, uma vez mais, o descortínio  daquele velho professor ginasiano, sobre nossa ignorância matemática: consultem os alfarrábios!

CDL/Bsb, 20.01.24